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segunda-feira, 29 de abril de 2019

DE VOLTA A REIMS




        Em 2016, Pedro Vieira (ator) e Cácia Goulart (diretora) nos impactaram com o visceral Eu Tenho Tudo; a dupla retorna ao Viga Espaço Cênico e volta a nos surpreender com De Volta a Reims.
        A peça de Reni Adriano é inspirada no livro homônimo do filósofo francês Didier Eribon que trata das dificuldades que tem um homem que ascendeu social e intelectualmente de lidar com suas origens humildes. Tema bastante comum a muitos de nós, inclusive ao ator Pedro Vieira que mescla situações de sua vida às confissões de Eribon: Quantas vezes você negou ou, pelo menos, omitiu as profissões de seus pais?  Quantas vezes você se viu agindo e falando como aqueles da classe que agora frequenta? São questões que surgem para o público no desenrolar da peça. A questão homossexual, assim como os crescentes e assustadores movimentos de direita no mundo também são assuntos discutidos no espetáculo.
        A encenação de Cácia Goulart é visualmente muito bonita iniciando com sugestivo jogo de luzes sobre o corpo semidesnudo do ator e utilizando as criativas luzes e vídeos de cena de Bruna Lessa e Cacá Bernardes para compor todo o restante da peça. Há um quê de teatro documentário com eventuais projeções de cenas de família do ator.
        Com sua marcante presença cênica e dicção mais que perfeita (como é bom entender TUDO o que um ator fala em cena!!!) Pedro Vieira    é o eixo do espetáculo, proporcionando ao espectador hora e meia de prazer e de reflexão sobre quem somos, como pensamos e como agimos perante a vida.
        Um viva ao meu pai que era mecânico, à minha mãe que cursou só até o segundo ano do grupo escolar e que, como a mãe do autor, se queixou disso até o fim de sua vida e um viva também a mim que se um dia neguei isso, hoje me orgulho muito das minhas origens.
        Obrigado Cácia! Obrigado Pedro! Valeu a pena enfrentar a chuvarada do final do domingo!

        DE VOLTA A REIMS está em cartaz no Viga Espaço Cênico às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 19h até 26/05. NÃO DEIXE DE VER!

        29/04/2019

domingo, 28 de abril de 2019

APENAS O FIM DO MUNDO



        O filho pródigo à casa retorna e provoca uma revolução emocional em toda a família e nele próprio. O denso texto de Jean-Luc Lagarce (1957-1995) não deixa de ser um drama familiar, tema rico ao teatro burguês, mas está há anos luz desse tipo de teatro, respirando contemporaneidade tanto na forma como no conteúdo.
        Luiz é um escritor introspectivo portador do vírus da AIDS que resolve visitar a família após 12 anos de ausência para revelar sua morte eminente. É recebido com surpresa pela descompensada família (mãe, o irmão Antonio, sua mulher Catarina e a irmã caçula Suzana) que vomita traumas sobre ele.
        Constituida de longos monólogos (os chamados “bifes” na gíria teatral) a peça mostra as tentativas frustradas de Luiz contar a razão de sua visita. O filme de Xavier Dolan (2016) baseado na peça driblava esse fato transformando boa parte do texto em diálogos. A excelente tradução de Giovana Soar é fiel ao original, assim como a encenação do Grupo Magiluth dirigida pela tradutora e por Luiz Fernando Marques Lubi.
        A criativa encenação é itinerante e se utiliza de todos os cantos da sala multiuso do 13º andar do SESC Avenida Paulista, evitando eventual monotonia que os longos monólogos poderiam provocar. Há momentos reveladores como aquele em que o público assiste do alto uma das discussões familiares e outros belíssimos como o monólogo da mãe em frente ao espelho.
        O grupo pernambucano Magiluth amadurece e cresce a cada visita sua pelos palcos paulistanos. Esta montagem atesta mais uma vez a excelência de seus componentes, que desta vez se restringiram à interpretação.
        Pedro Wagner com sua potente voz grave interpreta o personagem mais complexo que, apesar de desencadear a ação, é extremamente passivo ao ouvir os reclamos de seus parentes, limitando-se a olhares tristes e perturbados.
        Mário Sergio Cabral, que evolui como ator a cada dia, empresta seu talento ao irmão Antonio que tem comovente e ultrarrealista monólogo quase ao fim da peça.
        Há bem vindos e delicados toques de humor (jamais caricaturais) na composição das personagens femininas feitas por homens: Catarina, a patética cunhada que talvez seja a única a perceber que algo vai mal com Luiz é interpretada de forma impecável por Giordano Castro. Bruno Parrera é responsável pela irmã Suzana que vocifera com a mãe e Antonio durante todo o tempo. A mãe vivida por Erivaldo Oliveira tem características de uma mater dolorosa que assiste em silêncio o desmoronamento das relações familiares; esses silêncios enquanto os outros se digladiam são um dos pontos fortes do espetáculo.
        Apenas o Fim do Mundo não é espetáculo fácil de ver, se enquadrando naquilo que Nelson Rodrigues chamava de teatro desagradável, mas extremamente necessário. As relações humanas são expostas de forma cruel e devastadora.

        APENAS O FIM DO MUNDO está em cartaz no SESC Avenida Paulista só até o próximo domingo, dia 05 de maio, mas a próxima semana contará com várias sessões extras. Além das sessões já previstas no feriado (01/05) e no domingo às 18h e de quinta a sábado às 21h, as sessões extras sempre às 17h ocorrerão na quinta, na sexta e no sábado. CORRA E GARANTA SEU ESPAÇO NA CASA DA FAMÍLIA DO LUIZ!

        28/04/2019

sábado, 27 de abril de 2019

AS CANGACEIRAS – GUERREIRAS DO SERTÃO



                O dramaturgo pernambucano Newton Moreno está de volta a um universo que lhe é caro: o sertão nordestino e os seres que ali (sobre)vivem. Moreno já visitou esse cenário em espetáculos memoráveis como Agreste, Assombrações do Recife Velho e Memórias da Cana e agora a ele retorna para contar a luta de um bando de mulheres contra a opressão exercida sobre elas pelos homens da região. O texto é ágil e poético e encontra igual dinamismo na bela tradução cênica de Sergio Módena.
        A encenação de Módena não tem tempos mortos com dinâmica entrada e saída de cena dos grupos antagonistas (mulheres versus homens). A itinerância das personagens e essa movimentação do elenco têm grande aliado no sóbrio e criativo cenário de Marcio Medina que também se movimenta durante todo o espetáculo e é emoldurado pelas luzes criadas por Domingos Quintiliano. Destaque para os figurinos criados por Fábio Namatame que parecem ter vindo diretamente do sertão nordestino para o palco do SESI. A coreografia de Erica Rodrigues se adéqua às características das atrizes e atores que não são dançarinos, mas que se saem muito bem nos números de conjunto.
        A trilha sonora assinada pelo autor e por Fernanda Maia tem uma perfeita adequação entre as letras e as melodias e por sua beleza merece uma gravação que sobreviva à montagem da peça. A direção musical impecável de Fernanda Maia se concretiza com as interpretações dos músicos presentes no fundo do palco.
        O elenco feminino (sete cangaceiras) afinadíssimo tem a sempre ótima e versátil Amanda Acosta á sua frente como a líder combativa Serena, mas dá chance a ótimos momentos de Luciana Lyra e Carol Badra (impagável como a Zaroia), duas remanescentes do grupo Os Fofos Encenam, do qual o dramaturgo também faz parte. Do elenco masculino (seis cangaceiros) se sobressaem Marco França como o selvagem Taturano e Pedro Arrais, responsável por alguns momentos de humor, como o engraçado Volante. São destaques, mas cabe ressaltar que os treze intérpretes são muito talentosos e o resultado de suas interpretações é coeso e harmonioso, mérito que também precisa ser dividido com o diretor Sergio Módena.
        Como se vê tudo funciona neste espetáculo que louva a liberdade e a dignidade não só da mulher, mas de todo ser humano. A cena final é uma das mais catárticas apresentadas nos nossos palcos nos últimos tempos. Com lágrimas nos olhos e uma vontade imensa de lutar pelos seus direitos, o público abandona a sala de espetáculos entoando as palavras da última canção e com esperança no coração.



        AS CANGACEIRAS – GUERREIRAS DO SERTÃO está em cartaz no Teatro do SESI de quinta a sábado às 20h e aos domingos às 19h até 04/08. Entrada gratuita. NÃO DEIXE DE VER.

        27/04/2019


sexta-feira, 26 de abril de 2019

A NOITE DOS DESESPERADOS




        O meu amigo e crítico de cinema Luiz Gonzaga, eventualmente escreve sobre os espetáculos teatrais a que assiste. Luiz inicia matéria sobre a peça Apenas o Fim do Mundo da seguinte maneira: “DI-LA-CE-RAN-TE! A-VAS-SA-LA-DOR! Me digam: como é que a gente não explode depois de ver... Não! Me enganei! A gente explode, sim. Eu explodi
        Hoje sou eu que entro na seara de Luiz escrevendo sobre uma experiência cinematográfica e pedindo licença para iniciar com a mesma frase:
        DI-LA-CE-RAN-TE! A-VAS-SA-LA-DOR! Me digam: como é que a gente não explode depois de assistir a A Noite dos Desesperados? Não! Me enganei! A gente explode, sim. Eu explodi!
        Trata-se de um dos filmes que mais me marcaram. Está entre os 20 melhores filmes da minha vida de cinéfilo. Devo ser masoquista, pois é também um dos filmes mais cruéis e mais tristes a que já assisti. Vi pela primeira vez no início dos anos 1970 (o filme é de 1969) e depois só o revi na telinha da TV, sempre com o mesmo impacto.
        Eis que, em apenas duas sessões, ele está sendo apresentado em excelente cópia na telona do Centro Cultural São Paulo, que tem ótima projeção. A primeira sessão ocorreu na quarta feira, dia 24/04 e a próxima será no domingo, dia 28/04 às 17h30. Conclamo todos seres humanos para essa experiência DILACERANTE e AVASSALADORA. E não expluda (ou exploda), quem for capaz!
        O título original do filme They Shoot Horses, Don’t They? é o mesmo do romance de Horace McCoy, no qual é baseado. Em português seria algo como Mas Se Mata Cavalos, Não É? Por sinal, título bem mais rico e significativo do que A Noite dos Desesperados.
        A ação do filme acontece durante a grande depressão americana dos anos 1930 em uma maratona de danças, onde os participantes são submetidos a  torturante competição com o objetivo de ganhar 1500 dólares, prêmio para o último casal resistente. Há momentos quase insuportáveis de se aguentar como aqueles das duas corridas a que o grupo é submetido. O filme é uma clara metáfora às privações e manipulações que o ser humano tem de suportar para poder sobreviver e depois de 50 anos continua atualíssimo.
        Um elenco estupendo dá vida às pobres personagens ali presentes: Susannah York é uma aspirante a atriz que tenta colocar glamour naquele mundo sórdido (sua cena de loucura no chuveiro é antológica), Gig Young interpreta o frio e calculista mestre de cerimônias, Michael Sarrazin é o sensível rapaz meio caipira que faz dupla dançante com Gloria, a personagem sofrida de Jane Fonda que tem a maior interpretação de sua carreira e, quiçá, uma das maiores de toda a história do cinema. Testemunhar o trabalho de Jane Fonda neste filme reveste-se de verdadeira descida nas profundezas da alma humana. Experiência inesquecível. O restante do elenco é impecável, cabendo destacar o marinheiro de Red Buttons, a garota grávida de Bonnie Bedelia e seu marido Bruce Dern.


        A meu modo de ver, Sydney Pollack realizou com este trabalho o grande filme de sua vida.

        26/04/2019
       


domingo, 21 de abril de 2019

A CIDADE DOS RIOS INVISÍVEIS



A arte tem de ter algo que me tira do chão e deslumbra
(Ferreira Gullar)

        Sou espectador desde que me conheço por gente e por estes olhos já passaram mais de 4000 espetáculos de teatro, mesmo assim é muito gratificante quando nos deparamos, nos surpreendemos e nos deslumbramos com o trabalho de um grupo que desconhecíamos, apesar dele já estar na estrada há oito anos (o coletivo foi formado em 2011). Trata-se do Estopô Balaio que apresenta no momento a quinta temporada de A Cidade dos Rios Invisíveis, da qual tive o privilégio de assistir à 81ª apresentação. 

No trem - A caminho

        Misturados aos passageiros comuns do percurso tomamos um trem da CPTM na Estação Brás com destino ao Jardim Romano, local onde será apresentado o espetáculo que na verdade já começa na viagem, onde os espectadores munidos de fone de ouvido e MP3 escutam textos inspirados em A Cidade Invisível de Ítalo Calvino, admiram e absorvem a paisagem e ainda presenciam as intervenções de três atores. Particularmente tocante é a passagem pela comunidade de Tiquatira que foi destruída pelo fogo em 2010 e hoje, qual fênix, ressurgiu das cinzas ocupando área a perder de vista pela janela do trem.

A recepção em Jardim Romano

        Depois de 40 minutos chega-se ao destino onde somos recepcionados por uma banda que irá conduzir o cortejo pelas ruas e becos do bairro, tristemente lembrado pelos constantes e trágicos alagamentos dos quais foi, é e, se depender dos órgãos públicos, será vítima.

O som
O cortejo

        Após visitar a sede do grupo para um descanso, uma tapioca e um xixi, voltamos a percorrer as memórias dos moradores da região por meio do impecável trabalho do elenco que é auxiliado pelos habitantes e pela deliciosa participação de uma dezena de crianças. Muita emoção ao ouvir a história do menino cujo pai comprou um bote para circular pelas ruas alagadas, do Júnior que tem um rio passando sob seus pés e que perdeu a irmã Jurema que também participava da encenação, da Jacira com seu bolo de chocolate e do Seu Antonio que guarda muitas lembranças da companheira Raimunda. Vidas difíceis de pessoas abandonadas pela sorte e pelos governos que deveriam zelar pela vida de seus cidadãos. Apesar de mostrar situações tristes e revoltantes, a peça tem tamanho tom poético que até o olhar nos cavalos escarafunchando o lixo à beira do rio na cena final reveste-se de poesia e encantamento.


Seu Antonio

Essa foto de Seu Antonio com Anna Zêpa me remete a um quadro de Almeida Júnior

        É difícil descrever tudo o que acontece nas mais de duas horas que caminhamos pelas ruas do Jardim Romano, mas não se pode deixar de comentar a beleza dos últimos momentos onde o elenco louva o rio, senhor de tantas tristezas, mas também de tantas alegrias. A tarde estava linda e o sol se punha do outro lado do rio. Tomamos o caminho de volta com muita emoção e revolta no coração, sem poder conter as lágrimas que espetáculo tão pungente insistia em provocar.



        A dramaturgia bem amarrada e a direção do espetáculo levam a assinatura de João Batista Júnior.
        Fica difícil destacar a participação deste ou daquele elemento em grupo tão homogêneo que além dos atores conta com dançarinos que fazem performances nas ruas, com o grupo incansável de produção que percorre o trajeto carregando equipamentos de som em um carrinho e finalmente com as crianças que participam ativamente do espetáculo sabendo de cor a marcação, trechos do texto e as letras das canções. Haja coração!

        A CIDADE DOS RIOS INVISÍVEIS está em cartaz às sextas, sábados e domingos até 09 de junho. Saídas do Espaço Cultural da Estação Brás às 14h. Ingressos pelo site do coletivo: www.coletivoestopobalaio.com.br

        ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!

       IMPORTANTE: O coletivo tem sede no local onde são realizadas oficinas, sessões de cinema e palestras para o pessoal do bairro. Ali também podem ser vistas fotos e reportagens sobre o alagamento da região. Publicações do grupo estão disponíveis para venda.





        21/04/2019

sexta-feira, 19 de abril de 2019

GLÓRIA




        A multiartista de teatro Eloisa Vitz é uma guerreira: escreve, dirige, atua e mantém com seu Grupo Gattu, o Teatro do Sol, aconchegante espaço teatral localizado no bairro de Santana, a cinco minutos do metrô Santana.
        Acaba de estrear naquele local a peça Glória, quarto espetáculo de tetralogia de Vitz que inclui os títulos Amor, Fortuna e Graça, todos eles já encenados pelo grupo.
        O grupo também tem em seu repertório várias peças de Nelson Rodrigues, entre elas a obra prima A Falecida, montada com excelente resultado em 2017, tendo Eloisa no papel de Zulmira.
        Glória conta uma divertida história passada em uma ilha onde a pitonisa Gal (Mariana Fidelis) disputa o governo do local com a líder comunitária Rigola (a sempre excelente Miriam Jardim). A emoção disputando com a razão, o coração versus o cérebro, onde nem tudo é o que parece ser. Circulam por ali Lori, assistente deslumbrado de Gal (Daniel Gonzales), Alba (Laura Vidotto), Átor (Jailton Nunes) e Thelma, uma habitante da ilha que é muito feliz e não sabe por que (personagem de Eloisa Vitz que me lembrou da canção Felicidade de Luiz Tatit). Numa trama simples e gostosa que a dramaturga declara estar baseada no realismo fantástico assistimos ao embate das duas candidatas até o final onde uma delas sairá vencedora. Apesar do ar descontraído a peça não deixa de dar cutucadas no triste momento pelo qual o país está passando por meio de algumas falas da personagem Rigola e também pela alienação criada nos habitantes da ilha pela pitonisa Gal.

Miriam Jardim, Mariana Fidelis e Laura Vidotto

        Para manter esse clima meio irreal, a encenadora vale-se do cenário de Heron Medeiros, formado por vários níveis de cortinas que são manipulados pelos atores e que ao longo da história podem tornar-se objetos de cena e figurinos.
        Glória é puro divertimento... Mas faz pensar! E isso ótimo.
        Fica como sugestão ao grupo, a realização de uma mostra onde seria apresentada a “tetralogia filosófica”, assim chamada pela autora.
        O acolhimento continua sendo um dos grandes trunfos do Grupo Gattu. O público é recebido com muito carinho, atenção, respeito e um cafezinho; em seguida é acomodado na sala de espetáculos e ao final da peça pode dar um abraço no mais que simpático e sorridente elenco. Exemplo a ser seguido por muitos teatros que tratam o público de maneira fria e indiferente.
        GLÓRIA está em cartaz com entrada franca de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 19h no Teatro do Sol à Rua Damiana da Cunha, 413. Reservas: 95679-2626 e 3791-2023.

        19/04/2019
       
         

terça-feira, 9 de abril de 2019

TRANSAMAZÔNICA


        Transamazônica segundo o programa da peça homônima é uma “estrada que liga nada a lugar nenhum”, projeto megalomaníaco de governos prepotentes que causou enorme e irreversível dano ao meio ambiente e aos habitantes da região. O dramaturgo paraense Rudinei Borges dos Santos nos propõe uma viagem por vários trechos dessa estrada especificando o quilômetro e a cidade visitada.
        Em um prólogo, cinco capítulos e um epílogo o público toma conhecimento de sete situações vividas por colonos, indígenas, pistoleiros e crianças narradas e interpretadas com garra pelos atores Geraldo Fernandes e Leandro Lago. As narrativas são acompanhadas por canções regionais e pelo som hipnotizante criado ao vivo pelo carismático Juh Vieira cuja presença e som são tão envolventes que chegam a desviar a atenção do espectador.
        Com sua veia poética e facilidade em lidar com as palavras Rudinei trata de assuntos sérios e até trágicos com muita delicadeza e beleza, haja vista o belíssimo e triste capítulo Iraxeru onde o espírito de uma menina retorna ao local onde era sua aldeia e esta não existem mais e até aquele dos pistoleiros onde se cita de passagem o assassinato de uma, assim chamada, freira comunista, referência à missionária Dorothy Mae Stang (1931-2005) sobre o assassinato de quem o dramaturgo tinha a intenção de escrever uma peça, mas foi impedido de viajar à BR-230 por notícias de violência na região. Esperemos que isso ainda venha a ocorrer, para que o teatro também se torne testemunha desse trágico fato que aconteceu em 2005 na localidade de Anapu (Km 2375 da estrada, segundo a peça).
        O cenário sóbrio de Telumi Hellen é um espaço cênico vazio com um longo pano vermelho ao fundo, talvez simbolizando todo o sangue já derramado na região. A iluminação de Decio Filho direciona a ação dos atores.
        O programa, além de bonito, contém o texto completo da peça.

        TRANSAMAZÔNICA está em cartaz na SP Escola de Teatro às sextas, sábados e segundas às 21h e aos domingos às 19h até 22/04. Ingressos gratuitos.

        09/04/2019


domingo, 7 de abril de 2019

ENTRE



        Quantas vezes NÓS somos confrontados com a própria passividade/covardia diante de fatos que ocorrem aos nossos olhos como agressões a terceiros, desmandos dos poderosos, atos preconceituosos?  As justificativas são sempre as mesmas: “Não tenho nada com isso”, “Não quero interferir”, “Tenho medo das consequências” ou simplesmente não justificamos nada e continuamos deitados em nosso berço esplêndido.
        Ao colocar os três irmãos que estão reunidos para organizar a festa de bodas de ouro dos pais sentados junto com o público e ao fazê-los dirigir as falas de um ao outro para as pessoas da plateia, os diretores Yara de Novaes e Carlos Gradim nos põem no olho do furacão e apontam o dedo para nossas reações aos fatos apresentados.
        As frágeis relações familiares apresentadas no primeiro quarto da peça são só uma introdução para o mote principal que é a reação dos irmãos diante do que está acontecendo no apartamento vizinho. A peça é um libelo contra a violência doméstica, mas seu conteúdo pode ser extrapolado para qualquer tipo de passividade do homem contemporâneo diante das barbaridades que acontecem à sua volta.
        A peça de autoria de Eloisa Elena tem ótimas soluções cênicas desde o cenário de André Cortez feito todo com cadeiras de plástico branco, passando pelos laços que prendem materialmente os irmãos em suas relações familiares e as rubricas ditas em coro pelo elenco. Dignas de nota também a trilha sonora de Dr. Morris e a iluminação de Guilherme Bonfanti.
        Cláudio Queiroz e Alexandre Cioletti encarregam-se dos dois irmãos. Cioletti é o Irmão 1, meio irresponsável e pobre e Queiroz é o arrogante Irmão 2, bem sucedido materialmente e acreditando que tudo pode ser resolvido com dinheiro. Ambos realizam ótimas composições e dão suporte para o magnífico trabalho de Eloisa Elena que é a residente no local da reunião e que, conhecedora das agressões sofridas pela vizinha, além de não fazer nada, procura esconder o fato dos irmãos, fechando janelas e tapando buracos. O seu monólogo final com as luzes da plateia acesa são mais um alerta para a nossa passividade.
        Os vizinhos ouvidos em off são interpretados por Lavínia Pannunzio e Joca Andreazza. E preste atenção: como bom voyeur você pode testemunhar as agressões na saída do teatro.
        Esta corajosa encenação de Yara de Novaes e Carlos Gradim a partir da peça de Eloisa Elena enriquece o currículo do Barracão Cultural, que já nos ofereceu, entre outros, os memoráveis A Mulher Que Ri (2008), Faca nas Galinhas (2012) e On Love (2017).
        Pela maneira como é enfocada, a peça também poderia se intitular NÓS, tanto no sentido do pronome (todos NÓS somos passivos), como naquele do substantivo (os NÓS que nos une por meio dos laços que prendem os irmãos). É curioso notar que o grupo tem uma peça com esse nome para estrear em maio.
        ENTRE realiza temporada relâmpago no Itaú Cultural até este domingo (07/04) e segue para a Oficina Cultural Oswald de Andrade de 11 a 20 de abril, sempre com ingressos gratuitos. NÃO DEIXE DE VER.

        Um bom começo para NÓS lutarmos contra nossa passividade é nos juntarmos com todos aqueles que estão gritando/lutando contra o fechamento das Oficinas Culturais, entre elas, a icônica Oswald de Andrade.

        07/04/2019

       

sábado, 6 de abril de 2019

VAMOS COMPRAR UM POETA



        Há um novo espetáculo em cartaz na cidade dirigido por Duda Maia (Auê, Elza e os infantojuvenis A Gaiola e Contos Partidos de Amor). Trata-se da adaptação teatral que Clarisse Lissovsky fez do livro do escritor e músico português Afonso Cruz (1971). No programa da peça há excelente texto que o autor enviou para o grupo, do qual reproduzo uma parte a seguir:
        Escrevi o Vamos Comprar o Poeta numa altura em que Portugal atravessava uma (mais uma) crise financeira e como acontece amiúde, a cultura é a primeira a sofrer. Durante esses anos, o ministério da Cultura foi extinto. Há uma frase atribuída a Churchill, que apócrifa ou não, tem toda a pertinência nesse contexto. Durante a Segunda Guerra Mundial sugeriram cortar o financiamento das artes para sustentar a guerra e Churchill terá respondido: Nesse caso estaríamos a combater para quê?”
        Mas Churchill é Churchill e Dória é Dória e Bolsonaro é Bolsonaro!! Por isso urge que você adulto leve seus pequenos para que juntos curtam e reflitam sobre o que diz este lúcido espetáculo que trata da importância da cultura e da poesia para o alimento da alma humana.
        Tudo contado com maestria e delicadeza por Duda Maia que coloca três atores em cena que se movimentam entre três gangorras numa coreografia dinâmica e bela (marca registrada da encenadora), além de cantarem e interpretarem as personagens da menina, seu irmão, os pais e o poeta; trabalho excelente de Letícia Medella (carismática com seus gestos e olhar iluminado), Luan Vieira (o gracioso irmão às voltas de encontrar palavras para conquistar uma garota) e Sergio Kauffmann (o delicado poeta).
        A peça fica naquela zona cinzenta entre teatro infantil e teatro adulto que dificulta a divulgação e a programação da mesma nos horários teatrais. Isso aconteceu com Carmen, a Grande Pequena Notável que foi apresentada também no CCBB nesse mesmo ingrato horário das 11h da manhã do sábado. Vamos Comprar Um Poeta tem que ampliar seus horários de apresentação e deve ser divulgada como uma peça que se destina não só aos jovens, mas, principalmente, aos adultos que parece que andam esquecendo que cultura é fundamental.
        Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até 31/08. IMPERDÍVEL!

        06/04/2019