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domingo, 27 de abril de 2025

PRIMAVERA CEGA

        Há um DVD de Chico Buarque intitulado “No País da Delicadeza Perdida”. Igor Iatcekiw, Alejandra Sampaio e Malú Bazán resgatam essa delicadeza no espetáculo “Primavera Cega” em cartaz na “Associação Cultural Zona Franca”, aconchegante espaço teatral administrado pela “Velha Companhia” na rua Almirante Marques de Leão no Bixiga.

    Em um longo processo de maturação que durou quase dez anos Igor foi lapidando, não sem dor, suas memórias junto à sua mãe. Temas áridos e graves como homofobia, machismo e doença de Alzheimer são poeticamente tratados e apresentados com sensibilidade e humanidade contagiantes com a colaboração “suave” das duas diretoras Malú e Alejandra. O resultado exala um afeto que é estendido para o público.

As diretoras Alejandra e Malú

    Não há revolta em cena, nem gritos de indignação, tudo acontece serenamente como na bela cena da construção da casinha para o coelho onde discretamente o público fica sabendo que o pai não aceita a homossexualidade do filho ao impedir que ele coloque uma flor no jardim da casinha. São sutilezas desse tipo que permeiam todo o espetáculo. 

    Kiko Marques e Denio Maués colaboraram na provocação dramatúrgica.

    O cenário minimalista assinado pelas diretoras é belamente iluminado por Adriana Dham.

    E é estranho observar que um ator com o talento de Igor, formado no TUCA em 2006, só faça sua estreia profissional quase vinte anos depois. Antes tarde do que nunca! Queremos você mais vezes em nossos palcos, Igor Ivan!


    Ah! Muito gostoso ver o nome da Cristina Cavalcanti, nossa querida Tina, na identidade visual do projeto, que ela fez lá do outro lado do Atlântico. Saudades sempre! 

    PRIMAVERA CEGA está em cartaz na Zona Franca até 12 de maio com sessões aos sábados e às segundas às 20h e aos domingos às 18h


    27/04/2025


sábado, 26 de abril de 2025

NEBULOSA DE BACO



    “A verdade, onde está a verdade?” questionava Luigi Pirandello (1867-1936) em toda sua obra. 

    Em um brilhante exercício de meta teatro, o dramaturgo curitibano Marcos Damaceno coloca duas atrizes (de verdade!) interpretando duas atrizes que interpretam duas personagens. Em um emaranhado de eu-ela, ela-eu, você-ela, ela-você, ele-eu Damaceno tece uma trama deliciosa de acompanhar, nunca revelando onde está a verdade, que na verdade ninguém sabe onde está. O autor poderia definir ficcionalmente a verdade da trama, mas fiel ao estilo pirandelliano não o faz.

    A proposital repetição das situações poderia soar cansativa, mas a presença de duas grandes atrizes em cena torna o espetáculo extremamente prazeroso.

    O talento de Rosana Stavis é bastante conhecido do público paulistano, mas mais uma vez ela nos surpreende interpretando uma espécie de ensaiadora de uma atriz que prepara a personagem de uma mulher que dialoga com seu padrasto/amante. Em certo momento faz às vezes do padrasto, para dar as deixas para a atriz. De lambuja, Rosana empresta sua bela voz para cantar “I Started a Joke” no final do espetáculo.

    “Ah, se eu tivesse visto que a piada era comigo” diz a canção dos Bee Gees.

    Helena de Jorge Portela é a grande surpresa do espetáculo. Dotada de grande e bela presença cênica e potente voz, ela interpreta a atriz que está insegura com a composição de sua personagem e que não consegue chorar na cena em que isso se faz necessário.

    Os diálogos entre as quatro (ou seis??) figuras em cena são saborosíssimos e Rosana e Helena os interpretam magnificamente.

    A direção de Damaceno é totalmente focada no trabalho das atrizes com a colaboração de Beto  Bruel e seu sempre belo desenho de luz.

    O enigma de uma nebulosa e o mito que Baco representa a dualidade humana entre controle e entrega (conforme dados do programa impresso) justificam o título do espetáculo.

    Depois da experiência radical com a bem sucedida “A Aforista”, a Cia. Stavis-Damaceno nos oferece este belo exercício de meta teatro que irá agradar a todos, mas principalmente aqueles habituados com o linguajar teatral. 

    “Toda atriz tem que brilhar” diz o texto em certo momento e Rosana e Helena o fazem, iluminando cada espectador com seus talentos.


    NEBULOSA DE BACO está em cartaz no CCBB até 08 de junho, com sessões às quintas e sextas às 19h e aos sábados, domingos e feriados às 17h.


    26/04/2025


TRANSFIGURATION


O dicionário define transfiguração como o “ato de (se) transformar, metamorfose/alteração da figura, das feições, da forma”.

E é exatamente isso que o multiartista (pintor, escultor, fotógrafo e performer) Olivier de Sagazan (1959) faz diante dos olhos hipnotizados do público que em profundo silêncio acompanha sua performance.

Vestido com um sóbrio terno, ele senta-se diante de potes com tinta e os elementos naturais (terra, fogo, ar e água) e inicia as metamorfoses tornando-se um porco nazista, uma mulher nua acuada e tantas outras figuras que muitas vezes lembram personagens saídas de um quadro de Francis Bacon. O público atônito acompanha essas transformações realizadas apenas com a manipulação dos materiais disponíveis.

Três grandes placas metálicas móveis situadas atrás do artista provocam barulho ensurdecedor ao receberem materiais jogados por ele. Essas placas vão se tornando uma tela viva, realizada diante do incrédulo público. Enquanto isso, o artista vai abandonando seu terno, que fica totalmente inutilizado ao final da performance.


Um visagismo radical, ou melhor, visagismos em transformação poderia ser a definição desse trabalho perturbador. A experiente visagista Louise Helène estava sentada ao meu lado e saiu do espetáculo visivelmente emocionada com aquilo que viu.

Artaud, Grotowski e Bacon dizem presente nessa inusitada performance, experiência totalmente nova, mesmo para um velho com 81 anos de idade e mais de 60 como espectador.

São só mais cinco sessões até o dia 04/05 no SESC Belenzinho. Sexta e sábado (19h) e domingo (17h).

CORRA!


26/04/2025


segunda-feira, 21 de abril de 2025

RESTINGA DE CANUDOS


TIJOLO CONTA ANTONIO CONSELHEIRO

Assim como o Arena tinha a série Arena Conta..., a Cia. do Tijolo faz algo parecido desde sua fundação em 2008 com uma trajetória digna e consistente. Vou chamar essa trajetória de TIJOLO CONTA:

- 2008 – TIJOLO CONTA PATATIVA DO ASSARÉ: Cante Lá Que Eu Canto Cá/Concerto de Ispinho e Fulô.

- 2013 - TIJOLO CONTA GARCIA LORCA: Cantata Para Um Bastidor de Utopias.

- 2014 – TIJOLO CONTA PAULO FREIRE: Ledores de Breu

- 2016 - TIJOLO CONTA DOM HELDER CÂMARA: O Avesso do Claustro.

- 2022 – TIJOLO (RE)CONTA PAULO FREIRE: Corteja Paulo Freire.

- 2023 – TIJOLO CONTA MARIA VALERIA REZENDE: O Voo da Guará Vermelha.

- 2025 – TIJOLO CONTA ANTONIO CONSELHEIRO: Restinga de Canudos.


A arte tem de ter algo que me tira do chão e deslumbra.

(Ferreira Gullar)

Pura arte! “Restinga de Canudos” surpreende, deslumbra e nos tira do chão desde a primeira cena quando se adentra o espaço cênico e o grupo demostrando garra e uma alegria contagiante entoa uma das belas canções de Jonathan Silva que fazem parte do espetáculo.

A dramaturgia de Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante, resultado de alguns anos de pesquisa, procura revelar o que há ainda de vida, naquela cidade submersa nas águas do açude de Cocorobó que um dia foi Belo Monte e que buscou uma utopia liderada por Antônio Conselheiro. Lembrei de um trecho da belíssima “Futuros Amantes” de Chico Buarque:

“E quem sabe, então

Belo Monte será

Alguma cidade submersa

Os escafandristas virão

Explorar sua casa

Seu quarto, suas coisas

Sua alma, desvãos


Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização”

Além de muito belo e lúdico, o espetáculo é bastante didático fazendo uma verdadeira linha do tempo desde o início do século até 1897, ano da destruição de Canudos. Esta cena e algumas outras são comandadas por duas professoras deliciosamente interpretadas por Karen Menatti e Odilia Nunes. Essas duas atrizes são presenças marcantes em todo o espetáculo.

Odilia Nunes

Karen Menatti

Outro achado dessa montagem é o embate de Conselheiro com Euclydes da Cunha, autor do livro “Os Sertões” que descreve a saga de Canudos. Numa cena memorável Conselheiro (Dinho Lima Flor) e Euclydes da Cunha (Rodrigo Mercadante) expõem seus pontos de vista em um duelo verbal eletrizante.

A energia de todo o elenco irradia para a plateia e é inegável o grande talento de Karen, Odilia, Jonathan, Rodrigo e Dinho que também dirige o espetáculo.

Tudo funciona neste magnífico trabalho da Cia. do Tijolo. A sensível direção de Dinho Lima Flor harmoniza a atuação do elenco que interpreta e canta muito bem acompanhado por um excelente grupo de músicos, com o cenário criado pelo grupo e Douglas Vendramini, com os desenhos de Artur Mattar projetados com um antigo projetor de slides. Destaque também para a movimentação dos atores (Viviane Ferreira) e a manipulação dos bambus.

Importantíssima também a intervenção da Professora Silvia Adoue esclarecendo muita coisa sobre o assunto.

Diante de tantas qualidades, não hesito em afirmar que até agora "Restinga de Canudos" é o melhor espetáculo apresentado nos palcos paulistanos nesta boa temporada de 2025. 

Dinho Lima Flor

A temporada no SESC Belenzinho termina no próximo domingo sempre com casas lotadas. Pela importância e pela beleza do espetáculo, seria MUITO IMPORTANTE, que o SESC prorrogasse a temporada por mais algumas semanas.

Uma única ressalva: o espetáculo dura quase três horas sem intervalo. Um pequeno intervalo para as necessidades do público seria bastante útil.

Sextas e sábados: 20h/Domingos: 17h

IMPORTANTE, NECESSÁRIO E ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL

21/04/2025


domingo, 20 de abril de 2025

ELISA EM FUGA


    “Virginius (Narrativa de um advogado)” é um conto de Machado de Assis (1839-1908) escrito em 1864, que serve de base para o segundo ensaio sobre o terror de José Fernando Peixoto de Azevedo para a “Sociedade Arminda”. O primeiro ensaio aconteceu em 2023 a partir de “Pai Contra Mãe”, outro conto de Machado de Assis.

    Em um espetáculo de uma hora, Azevedo utiliza os primeiros vinte minutos para denunciar o espírito preconceituoso e escravagista ainda presente nos dias de hoje por meio de uma Elisa contemporânea ensanguentada que teve sua tia presa e torturada em 1974 – auge da repressão da ditadura - ao ser confundida com um estudante.

O restante do espetáculo concentra-se na apresentação do conto quase literalmente. 

    Thaina Muniz revela muita garra e muito talento tanto na narração como na interpretação do conto, acompanhada por Samurai Cria que a persegue com uma câmera durante todo o espetáculo e pela potente trilha sonora executada ao vivo por Agá Péricles. As imagens captadas por Cria são editadas ao vivo por Soma resultando em visual poderoso que reflete o terror pretendido pela encenação. 


    Com tais elementos Azevedo cria mais um espetáculo cujas características lhe são comuns: uma fusão perfeita da atuação com cenas captadas ao vivo. 

    O conto de Machado de Assis é repleto de divagações do advogado, como também de diálogos entre ele e outros personagens. A figura de Elisa aparece pouco, no entanto na versão de Azevedo a atriz concentra todos os personagens, algo que dá muita força para o resultado final. Enquanto retira o sangue que lhe cobre o corpo a atriz pede para o público ler o julgamento de Julião, o assassino.

    A excepcional interpretação de Thaina Muniz reforça a grandeza deste importante trabalho de Azevedo, onde o recado é claro: O TERROR É BRANCO.


    ELISA EM FUGA – segundo ensaio sobre o terror está em cartaz no Ágora Teatro até 04 de maio de quinta a sábado às 20h e domingos às 19h.

    ATENÇÃO: Nos dias de chuva, as obras do metrô estão ocasionando um alagamento na rua do teatro que impede a chegada no mesmo. A melhor e única opção é chegar pela Av. Brigadeiro e ir a pé pela passagem ao lado da Pizzaria Moraes.


    19/04/2025


segunda-feira, 14 de abril de 2025

DOIS PAPAS

 

    Originalmente “Dois Papas” é um romance do neozelandês Anthony McCarten. Ele mesmo fez o roteiro do filme homônimo e a adaptação teatral, cuja tradução para o português de Rui Xavier está em cartaz no SESC Santo Amaro.

    A peça mostra os encontros do Cardeal argentino Jorge Bergoglio (1936-), eleito Papa Francisco em 2013 com o então Papa Bento XVI (1927-2022), sendo Papa de 2005 a 2013. O que há de verdade e o que há de ficção nesses encontros restará como um segredo do escritor.

    A consistente dramaturgia é dividida em quatro partes:

        - Na primeira toma-se conhecimento das ideias e intenções do Papa Bento por meio de seu encontro com Irmã Brigitta.

        - Na segunda usa-se o mesmo recurso para apresentar Cardeal Bergoglio que dialoga com Irmã Sofia.

        - O primeiro encontro entre as duas figuras acontece na terceira parte onde florescem os vários conflitos em virtude da diferença de opiniões entre os dois.

        - Na quarta e última parte os encontros são mais amigáveis e levam ao desfecho onde Bergoglio torna-se Papa Francisco.


    A bela tradução cênica de Munir Kanaan é marcada pelo foco no trabalho dos atores e pela grande atenção nas cores: o branco na arquitetura cenográfica de Eric Lenate que pode atingir outras nuances coloridas quando iluminada por Beto Bruel ; nos figurinos de Carol Roz predominam o branco, o preto e o vermelho. Tudo isso resulta em espetáculo visualmente muito bonito.

    A atração também está nos intérpretes a começar pelas duas atrizes que interpretam as freiras interlocutoras dos “papas”. Carol Godoy como a jovial Irmã Sofia e Eliana Guttmann que tem presença marcante em cena como Irmã Brigitta.

    Para os papeis dos “papas” era necessário intérpretes talentosos e carismáticos e a escolha não poderia ter sido melhor: Zécarlos Machado (Papa Bento) e Celso Frateschi (Cardeal Bergoglio) têm um grande momento de suas carreiras nesse duelo interpretativo do qual quem sai ganhando é o público ao presenciar essa magia que só o teatro pode oferecer. 

    O embate da cena do primeiro encontro entre eles é digno de estar em qualquer antologia teatral e já coloca essas interpretações entre as melhores do ano.

    Pelas mãos de Munir Kanaan e dos dois atores, um tema que poderia ser árido resulta em um belo, importante e palatável espetáculo que enriquece a temporada teatral de 2025.

            DOIS PAPAS está em cartaz no SESC Santo Amaro até 27/04 com sessões às sextas e sábados às 20h e aos domingos às 18h.

           ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!

14/04/2025


domingo, 13 de abril de 2025

PAI CONTRA MÃE ou VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO?

 

    Machado de Assis não é lembrado pelos textos teatrais que escreveu, porém, as adaptações de seus romances e contos têm rendido bons espetáculos. 

    É o caso do conto “Pai Contra Mãe” que resultou em uma brilhante montagem de José Fernando Peixoto de Azevedo (“Ensaio Sobre o Terror”) em 2023 e agora inspirou Jé Oliveira para escrever a dramaturgia de “Pai Contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?”

    Jé Oliveira do “Coletivo Negro” optou por uma extensão do conto fazendo uma relação das personagens do original ambientado no início do século XX (Arminda e Cândido) com figuras contemporâneas (Zaíra e Osvaldo).

    A peça é dividida em um prólogo onde aparecem as situações e personagens do conto de Machado de Assis. Na parte 1 são apresentadas as personagens contemporâneas e a parte 2 é a história propriamente dita e que consta da sinopse.

    Atuações impecáveis de Aysha Nascimento (Arminda/Zaíra) e Raphael Garcia (Cândido/Osvaldo). Flávio Rodrigues tem atuação muito “over” para um narrador que costura todo o espetáculo e que é responsável por dirigir a pergunta ao público “Você está me ouvindo?”

    O elenco canta as canções as composições originais de Jé Oliveira e Jonathan Silva acompanhados pelos músicos Lua Bernardo, Maurício Pazz e Thiago Sonho.

    A trama deixa clara a questão da escravidão que ainda ecoa nos dias da hoje como é ilustrado com o tratamento dado a uma mulher negra (Zaíra) ao ser acusada de ter feito um roubo no supermercado.

    Espetáculo forte e importante ao qual faria bem uma enxugada principalmente na parte 2 que se estende além do necessário e uma contenção na interpretação do narrador.

    Parabéns “Coletivo Negro”!

PAI CONTRA MÃE ou VOCÊ ESTÁ Me OUVINDO? Está em cartaz no Teatro Anchieta até 27/04 de quinta a sábado às 20h e domingos às 18h.

13/04/2025





sábado, 12 de abril de 2025

CARNE VIVA


 Texto/interpretação, movimentação e visagismo do elenco/ cenário/adereços/figurinos/iluminação/trilha sonora/projeção de imagens. 

    Não é fácil harmonizar todos os elementos que compõem um espetáculo teatral. Essa é a função atribuída ao encenador (diretor) que muitas vezes negligencia um ou outro elemento prejudicando o resultado final.

    Luh Mazza revela uma notável maturidade na direção do texto de sua autoria em cartaz no SESC 24 de maio.

    Conheci o trabalho de Luh em 2016 quando assisti a “Kiwi”, dirigido por ela, depois assisti a uma versão virtual de “Carne Viva” em 2021, dirigida por Reginaldo Nascimento. Meu conhecimento profissional de Luh limitava-se a esses dois trabalhos, dai a minha surpresa com o alto nível da atual direção. Pesquisando sobre sua carreira tomei conhecimento dos muitos trabalhos realizados por ela nos vinte anos em que está na ativa.

    Quando assisti à versão virtual de “Carne Viva” escrevi algo que voltei a sentir ao presenciar esta versão no teatro e reproduzo o texto a seguir “O texto foi escrito por Luh Maza ainda adolescente e quando ainda atendia por Luciano. Realço isso porque é bastante importante saber que a virulência do texto contra o machismo e a sensibilidade da mulher que perpassam toda a ação da peça tenham brotado da imaginação de alguém que era visto como um rapaz. Isso só pode ter ocorrido porque, independentemente do corpo, a alma de Luh já era feminina.”

    Luh retrata o universo feminino com crueza, mas com delicadeza. Na versão atual Luh distribuiu o monólogo original para três atrizes.

    O espetáculo inicia com uma belíssima cena da silhueta das atrizes e daí em diante a beleza não abandona mais o palco. 

    A maturidade da direção está em conciliar os elementos citados no início desta matéria: o cenário formado por uma mesa com um espelho d’água de autoria da própria autora, a belíssima iluminação de Aline Santini, a potente trilha sonora composta pelo português Bruno Moraes, os figurinos pretos e brancos assinados por Telumi Hellen e Mari Morais, o visagismo assinado por Louise Helène e a precisa movimentação cênica das atrizes orquestrada por Bruna Longo.

    A tudo isso se somam aa interpretações das atrizes: Mawusi Tulani empresta sua bela voz para várias intervenções / Tenca Silva, que já havia causado grande impressão em Agro Peça, volta a brilhar com sua poderosa presença em cena / Christiane Tricerri põe sua grande sensibilidade à disposição da personagem que interpreta.


    Carne Viva é exemplo de teatro total onde todos elementos têm igual importância e se somam para resultar em um espetáculo magnífico.


    Fotos de Ariela Bueno

    CARNE VIVA está em cartaz no SESC 24 de maio até 20/04 com sessões às quintas (19h), sextas e sábados (20h) e domingos (18h). Sessão extra no dia 19 /04 (sábado) às 17h.


    12/04/2025


terça-feira, 8 de abril de 2025

CANÇÂO INDIGESTA


     Há 46 anos assisti “Mãos Sujas de Terra”, se não me engano no Teatro Aplicado, onde hoje é Teatro Bibi Ferreira. A peça de forte conteúdo social era produzida pelo recém fundado “Grupo Apoena” do Luiz Carlos Moreira. 

     O tempo passou, em 1993 o grupo passa a se chamar “Engenho Teatral” criando um teatro móvel para apresentar espetáculos em vários locais da periferia da cidade. Posteriormente o grupo se instala em um terreno da Vila Carrão e ali coloca de forma permanente seu teatro, sempre fiel ao seu posicionamento socio - político objetivando formação de público e apresentando espetáculos sempre voltados ao esclarecimento e à reflexão do público sobre os temas tratados.

     2025. Sempre fieis aos seus objetivos Moreira e Irací Tomiatto estão em cartaz com dois espetáculos Festa (aos sábados às 19h) e Canção Indigesta (aos domingos às 18h).

     Quem faz o simpático e caloroso acolhimento ao público é Moreira.

     A seguir entra-se no espaço cênico, onde uma mesa com comidinhas veganas, suco de melancia e cerveja nos espera. 

     “Canção Indigesta” questiona como os poderosos usaram a mídia e a publicidade para transformar necessidades dos cidadãos em desejos de consumo. Cinco intérpretes em cena vão desfilando os fatos, ora com raiva, ora com bom humor, colocando em primeiro plano um perdido e manipulado Zé Ninguém.

     A dramaturgia do espetáculo foi criada coletivamente e o texto final é de autoria de Moreira. 

     O elenco formado por Irací Tomiatto, Maria Clara Haro, Michelle Gabriolli, Dinho Hortêncio e João Victor de Morais se desdobra na interpretação das várias cenas e canta (muito bem!) as músicas compostas por Lucas Vasconcelos.

     A ida ao “Engenho Teatral” é um prazer sempre renovado e a certeza de assistir a um espetáculo que nos diverte e nos faz refletir sobre as mazelas contemporâneas.

     08/04/2025



segunda-feira, 7 de abril de 2025

EU FIZ POR MERECER


O TEMPO E O VERBO DE PLÍNIO MARCOS


 Amo os atores e por eles amo o teatro 

e sei que é por eles que o teatro é eterno

(Plínio Marcos)

Corrente da memória: então é assim, alguém que tem lembranças de fatos vividos no teatro e conheceu outros artistas resolve transmitir suas memórias para outras pessoas, as quais irão passar adiante essas histórias formando uma rede de preservação da MEMÓRIA DO TEATRO. 

Oswaldo Mendes, profundo conhecedor da vida e obra de Plínio Marcos (1935-1999), generosamente resolveu transmitir parte desse conhecimento por meio dessa  deliciosa e comovente “quase” revista musical onde ele reconta histórias das quebradas do mundaréu.

Em cenário simples e bonito de Carlos Palma, os veteranos e experientes Oswaldo Mendes e Walter Breda juntam-se ao surpreendente Fernando Rocha para narrar as histórias, como também emprestam suas vozes para as falas do repórter do tempo mau que foi a ditadura brasileira.


       De lambuja interpretam belas canções que ilustram aquilo que está sendo contado. 

Tudo acontece de maneira informal e espontânea para a fruição do público.

Aquelas e aqueles que fazem e/ou amam teatro vão rir e chorar com esse delicioso espetáculo.


        Próximas apresentações:

Espaço Barra-SP

       Rua Barra Funda, 519

       próximo ao Metrô Marechal 

       Sábado, 12 de abril, 20h

      Domingo, 13 de abril, 18h

      Grátis


NÃO DEIXE DE VER!


07/04/2025


sábado, 5 de abril de 2025

LADY

     Os palcos paulistanos têm o privilégio de ter em cartaz no momento dois importantes espetáculos que dialogam entre si trazendo ao público um pouco da memória (tão desprezada!) das nossas artes.

      Enquanto Othon Bastos dá uma aula de teatro falando de sua carreira no SESC 14 Bis, Susana Vieira repassa sua vida e trajetória na televisão brasileira no recém estreado “Lady” no Teatro Vivo. Cada um à sua maneira.

Em “Lady” uma atriz se prepara para interpretar Lady Macbeth na peça de Shakespeare e conversa com o público nos intervalos dos ensaios. O bem elaborado roteiro de Vana Medeiros intercala cenas da tragédia com momentos da vida e da obra de Susana proporcionado ao público duas horas de bom teatro.

Susana tem completo domínio do palco tanto quando assume ares shakespearianos ao criar cenas da tragédia como na espontaneidade ao falar de sua vida e de sua trajetória na televisão brasileira. Susana é irreverente e debochada na medida certa, criando uma rara empatia com o público que a acompanha com um brilho nos olhos.

Há muita sinceridade em seus relatos, não poupando críticas a situações e pessoas (sem nominá-las) e falando abertamente sobre doença e seu relacionamento tóxico com o último companheiro. Susana comove e faz rir, dependendo do caso.

Em certo momento a atriz cita Dulcina, Tônia Carrero, Bibi Ferreira e Marília Pêra, grandes inspiradoras para ela; aliás cabe lembrar a semelhança dela com Marília na dosagem certa de humor, deboche e ironia em seus trabalhos, algo raro mesmo nas melhores atrizes brasileiras.

“Lady” é criado por um verdadeiro trio de ouro feminino: Vana Medeiros como autora, Leona Cavalli como diretora e Susana Vieira brilhando como atriz.

O TRIO DE OURO: Vana, Susana e Leona

O papo ao final do espetáculo só comprova a simpatia e a espontaneidade de Susana. Cheguei até a contar a ela que a tirei para dançar em um daqueles baile de formatura tão comuns nos anos 1960. Ela era uma jovem muito bonita com um vestido rodado branco lembrando aquele modelo de Maria no baile de “West Side Story” e já tinha uma certa fama participando da “TV de Comédia” na TV Tupi. Eu, um jovem bobinho terminando o colegial criei coragem e a tirei para dançar. E ELA ACEITOU!!!

E saímos rodando pelo salão ao som dos boleros tocados pela orquestra do Enrico Simonetti e sob os olhares incrédulos de meus colegas de colégio: “Olha, o Zé está dançando com a Susana Vieira!”


LADY está em cartaz no Teatro VIVO de quinta a sábado às 20h e domingos às 18h.

DELÍCIA DE EPETÀCULO!!

05/04/2025


sexta-feira, 4 de abril de 2025

TUDO ACONTECE NUMA SEGUNDA FEIRA DE MANHÃ

 

Vinicius Piedade é um artista inquieto sempre procurando retratar em cada nova obra as mazelas da nossa sociedade. 

Nessa trilogia que ele chama de “Pessoas trabalhando” e que inicia com a presente peça, ele põe em foco a perversidade que pode estar presente em uma entrevista para admissão a um emprego. Pode ser um jogo terrível entre dominador (o entrevistador) e dominado (o candidato) e sempre acontece às segundas feiras, dia da semana que as empresas, normalmente, dedicam à seleção de pessoal.

Sabiamente o dramaturgo situa a ação em área que lhe é familiar, uma entrevista de teatro: um ator pleiteia um papel numa peça. O jogo de rato e gato está formado e Vinicius brinca com a situação fazendo um exercício de meta teatro saborosíssimo dando chance para atuações marcantes ao elenco, formado por ele mesmo e Evas Carretero.

São duas cenas distintas onde cada um assume uma ou outra função e dentro da mesma cena pode haver troca de papeis. Pode parecer complicado, mas na representação isso é um prazeroso exercício para o espectador que se mantém atento e curioso até o final.

A diretora Silvana Garcia foca toda a sua atenção no vigoroso embate entre os atores que acontece em um palco quase vazio iluminado por César Pivetti.

Todo destaque para as interpretações vigorosas e apaixonadas de Vinicius Piedade e Evas Carretero que se saem muito bem tanto na agressividade e prepotência do dominador como na passividade e obediência do dominado. As reações mudas de Carretero às ações de seu opositor são um espetáculo à parte.

TUDO ACONTECE NUMA SEGUNDA FEIRA DE MANHÂ está em cartaz apenas até domingo (06/04) no Itaú Cultural com sessões de quinta a sábado às 20h e no domingo às 19h. Em maio volta ao cartaz para mais cinco sessões na Biblioteca Mário de Andrade. 

È muito pouco para espetáculo tão bom. Por isso, programe-se!

        Fotos de Danilo Ferrara

04/04/2025


terça-feira, 1 de abril de 2025

UM TARTUFO e A MAGIA DO TEATRO


     A “Companhia Teatro Esplendor” do Rio de Janeiro para comemorar seus 15 anos de existência resolveu montar um clássico do teatro francês escrito em meados do século XVII: Tartufo de Molière (1622-1673). 

     Nos ensaios o diretor Bruce Gomlevsky propôs ao grupo que improvisasse as cenas sem se ater ao texto escrito, recurso bastante usado nesse estágio do processo criativo.

     Algo que ninguém esperava é que essas improvisações evoluíram de tal maneira que estavam superando o que poderia resultar em uma montagem tradicional. 

     Só a magia do teatro e o talento e a criatividade daqueles que o fazem podem explicar o resultado arrebatador desse processo: UM TARTUFO! 

     Gomlevsky transformou um clássico em um dos espetáculos mais radicais e contemporâneos que os nossos palcos já viram, sem ser infiel ao conteúdo original, mas recriando-o e atualizando deixando claro os perigos do fanatismo e da crença em falsos mitos ,tão em voga no Brasil de hoje.

     O impacto visual do início remete às encenações de Tadeuz Kantor (em especial a “A Nossa Classe”) para enveredar, a seguir, para o expressionismo alemão. estética que acompanha todo o espetáculo, nas cores dos figurinos, do cenário e na caracterização do elenco. A potência da encenação é reforçada pela trilha sonora realizada a partir das músicas do compositor esloveno Borut Krzisnik  que evolui junto com a movimentação corporal precisa do elenco. O resultado é eletrizante.

     A história do fanático e servil Orgonte e do seu explorador, o falso monge Tartufo, é contada sem uma única palavra e torna-se compreensível mesmo para quem não conhece o original de Molière.

     Em uma coreografia precisa e harmônica o elenco movimenta-se no palco de maneira brilhante.

     Pela importância dos papéis de Orgonte (Gustavo Damasceno que já havia interpretado “Outra Revolução dos Bichos”) e de Tartufo (impressionante caracterização de Yasmin Gomlevsky) tornam-se os destaques, mas é importante ressaltar a excelência de Thiago Guerrante, Ricardo Lopes, Victoria Reis, Glauce Guima, Lucas Garbois e Gustavo Luz nos demais papéis.

     “Um Tartufo” não é apenas para ser recomendado pelas suas inúmeras qualidades, mas para alertar que se trata de uma experiência poucas vezes vista em nossos palcos e que deve obrigatoriamente ser vista por aqueles que se interessam pelos possíveis caminhos das artes cênicas.

     A peça cumpriu uma curta temporada em quatro fins de semana no Teatro D Jaraguá, mas urge que volte ao cartaz em São Paulo pelo seu alto valor artístico e renovador.

     31/03/2025