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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

REVISITANDO O CAIS


 
     Contrariando a máxima de Nelson Rodrigues, Cais ou Da Indiferença das Embarcações é um verdadeiro fenômeno (nada burro) de unanimidade. Não há quem não se envolva e não se comova com a saga das três gerações de habitantes de Ilha Grande retratada no delicado espetáculo em cartaz há um ano (com algumas interrupções) no Instituto Capobianco. Com o elenco original e com apresentações aos sábados e domingos às 20h a melhor peça do ano fica em cartaz até 15 de dezembro.

     A pequena (são apenas 30 lugares) e privilegiada plateia compartilha durante três horas (que passam voando) as venturas e desventuras de personagens marcantes e inesquecíveis como Magnolia, Nilmar, Waldeci, Bonifácio, Berenice, Walcimar, Walciano, Juciara, Cachorrinho, Ozório e, é claro, o barco Sargento Evilázio e a boia Roseméri . Tudo isso ao som de uma verdadeira joia que é a trilha sonora de Umanto que pontua e realça toda a encenação sem encobri-la em nenhum momento. As músicas cantadas pelo elenco são também bastante pertinentes ao tema (o mar, o cais).
Marco Aurélio Campos e Patrícia Gordo
 
     Já fiz muitos elogios a esse espetáculo (a que assisti ontem pela quinta vez) que fico até incomodado em fazê-lo mais uma vez, mas quero dedicar algumas palavras a três atores que por razões diversas não citei em outras ocasiões: Marcelo Larotti está perfeito como Nilmar e sente-se a sua falta no segundo ato (assim como a de Virginia Buckowski), Patrícia Gordo (Juciara) e Marco Aurélio Campos (Walciano) que cresceram muito durante a temporada e agora deixam o elenco homogêneo e digno de um prêmio coletivo de interpretação. Poucas vezes fui testemunha de elenco tão coeso e que cumpre seu trabalho com tanto amor e crença de que está realizando um grande serviço ao espectador e ao teatro brasileiro.
     Kiko Marques escreveu um texto poético e belo e o dirigiu com rara competência, além de ser um ótimo ator. Enfim: texto, direção, interpretação, cenário, música; tudo em Cais funciona harmonicamente. O boca a boca tem lotado todas as sessões e os aplausos calorosos e comovidos são uma prova de sua força. É uma lástima que espetáculo desse quilate fique restrito a um pequeno público. Tenho certeza que a Ariane Mnouchkine iria adorá-lo!
     Prometo que não volto a escrever sobre Cais, mas não vou jurar que não vou revê-lo pela sexta vez. No dia em que a temporada encerrar para onde irão essas personagens tão queridas? A efemeridade do teatro as levará ao esquecimento? No meu coração de espectador elas vão viver para sempre.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

RICARDO ENÉSIMO


William Shakespeare (1564-1616)
 

     Junto com Romeu e Julieta e Hamlet, Ricardo III é uma das peças de Shakespeare mais encenadas em São Paulo. Entende-se essa preferência dos encenadores por esta peça, pois a mesma retrata os mecanismos pela luta de poder, luta essa tão cara aos políticos brasileiros. As intrigas palacianas mostradas não devem diferir muito das artimanhas usadas pelos nossos “bravos” homens públicos. A peça também serviu de inspiração para um dos espetáculos mais bem sucedidos de 2003, ao retratar as mazelas da assim chamada “Era Collor”: Os Collegas, encenada pelo grupo Bendita Trupe com direção de Johana Albuquerque.
     A peça foi encenada em 1975 por Antunes Filho com Juca de Oliveira no papel de Ricardo. Após uma longa pausa, ela nos chegou de Minas Gerais em 2000 pelas mãos de Yara de Novaes com uma interpretação fulminante de Jorge Emil (talvez a melhor de todas as que assisti). Em 2006 houve duas montagens quase simultâneas do texto do bardo: uma de Celso Frateschi com o próprio no papel título e outra de Jô Soares com Marco Ricca. Finalmente em 2012 surge a versão para teatro de rua do grupo potiguar Clowns de Shakespeare intitulada Sua Incelença, Ricardo III, dirigida por Gabriel Villela com Marco França. Além disso, há várias versões para cinema, sendo as mais famosas, a clássica de 1955 dirigida e interpretada por Laurence Olivier e Ricardo III – Um Ensaio (1996), uma reinterpretação do texto, dirigida e interpretada por Al Pacino.
Elenco com o diretor Marcelo Lazzaratto
 
     Eis que agora a peça é escolhida para a abertura do ambicioso Projeto 39 de Alexandre Brasil que pretende montar a íntegra da obra teatral de Shakespeare no prazo de uma década.
Imara Reis, Chico Carvalho, Mayara Magri
     A exuberante encenação de Marcelo Lazzaratto está pautada no funcional e bonito espaço cenográfico criado por Kleber Montanheiro. Poucas vezes se presencia diálogo tão harmônico entre direção e cenografia. Todo o teatro é ocupado pelos atores em sua aventura de contar a saga do rei maldito e as cenas principais acontecem num grande tablado redondo de madeira que avança para a plateia. Não se pode dizer o mesmo dos figurinos bastante irregulares de Marichilene Artisevskis (em alguns casos tem-se a impressão que os atores trouxeram de casa as roupas usadas em cena).
Elenco masculino. No destaque, Marcos Suchara
     Peça com personagens fortes e bem definidas, Ricardo III dá oportunidade para grandes interpretações. Todo o elenco masculino de apoio aproveita esta chance apresentando ótimos desempenhos, com destaque para Marcos Suchara (que interpretou Catesby na versão de Jô Soares) como Buckinghan e Evas Carretero como Catesby. As importantes personagens femininas são vividas por Renata Zhaneta (vigorosa como a Rainha Margareth), Imara Reis como a Duquesa de York (ilumina o palco com sua poderosa voz nas breves cenas em que aparece), Maria Lucia Nogueira como Lady Anne(com uma forte interpretação na primeira cena com Ricardo) e Mayara Magri como a Rainha Elisabeth (presença destoante em relação ao homogêneo elenco, com uma interpretação equivocada à base de recursos televisivos).
Chico Carvalho
     Por último, mas talvez o mais importante: Chico Carvalho. Presença perturbadora em cena dando vida a um Ricardo contraditório e frágil em sua aparente segurança em relação aos meios que dispõe para conquistar o poder. O ator usa nuances de voz e de gestual (não se prende às deformações físicas da personagem) para nos dar um retrato completo dessa figura tão asquerosa, mas também muito humana. Com certeza uma das grandes interpretações masculinas do ano que por justiça deveria ser indicada para muitos prêmios.
     Texto, direção, cenografia e elenco fazem deste novo Ricardo III um espetáculo obrigatório, malgrado a duração do espetáculo que exige uma corrida do espectador-pedestre até o metrô (o espetáculo dura – incluindo intervalo – duas horas e trinta e termina às 23h30).
     Por se tratar de um espetáculo apresentado num teatro de bairro a preços populares seria interessante que houvesse um painel na sala de entrada com o nome das personagens e a relação entre elas (a pouca familiaridade com os nomes em inglês e com a relação entre Yorks e Lancasters  pode dificultar a completa fruição do texto).

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

CONTRAÇÕES


 

     Com o título inadequado de Contrações está em cartaz em São Paulo uma nova montagem da peça O Contrato de Mike Bartlett. A encenação anterior cumpriu temporada relativamente curta e obscura (apesar de suas qualidades) no Instituto Capobianco em 2011 depois de ter participado da mostra da Cultura Inglesa e foi dirigida por Zé Henrique de Paula tendo Sergio Mastropasqua no papel do gerente e Renata Calmon como a subordinada. Desta vez numa produção do Grupo 3 de Teatro e com direção de Grace Passô o espetáculo está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil.
     Trata-se de um texto cruel do dramaturgo inglês que leva a uma situação limite o embate entre uma gerente autoritária, impessoal e cumpridora de maneira religiosa das normas da empresa e uma funcionária que em função da subsistência aceita todos os desmandos ditados pela superiora. Emma, a funcionária, abdica do seu relacionamento e do próprio filho para garantir o seu emprego sob as ordens da tirânica gerente.
 
Débora Falabella e Yara de Novaes
     O fato dos papéis serem interpretados por duas mulheres dá uma conotação diferente à peça. Ficam evidentes as frustrações “românticas e sexuais” da reprimida gerente perante o caso amoroso que a subordinada está vivendo. Na versão anterior transparecia um desejo do gerente pela subordinada e o assédio não era só moral, mas também sexual. Cabe imaginar como seria a peça se interpretada por dois homens ou ainda se a gerente fosse mulher e o subordinado um homem. Tais possibilidades valorizam ainda mais o ótimo texto de Bartlett .
 
     Voltando à encenação ora em cartaz é um verdadeiro prazer testemunhar as interpretações de Débora Falabella e Yara de Novaes. Débora desempenha uma subordinada que tudo faz para manter o seu emprego e só consegue extravasar seu ódio pela situação tocando desesperadamente uma bateria (interessante recurso da direção), enquanto Yara de Novaes - uma diretora de carreira consolidada - mostra recursos de grande atriz ao desempenhar com garra e uma ponta de ironia a gerente tirânica. A montagem de Grace Passô enfeita desnecessariamente o bolo com um prólogo e uso de cores e ruídos para identificar os assuntos relativos a romantismo e sexo, por outro lado, a sua direção das atrizes é perfeita.
 
Grace Passô, a diretora
     Não é sempre que surge a oportunidade de tomar conhecimento de um excelente texto contemporâneo na interpretação iluminada de duas grandes atrizes, portanto, aproveite!
 
     Contrações está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil aos sábados, domingos e segundas até 09 de dezembro.