ERA UMA VEZ UM CAIS...
Esta seria uma forma bonita de iniciar
esta matéria, mas este CAIS não ERA, ele É e sempre SERÁ. Eu e você passaremos,
mas CAIS permanecerá porque já nasceu clássico. Baseado nas vivências de vários
verões passados na sua juventude em Ilha Grande e também em relatos obtidos dos
moradores do local, Kiko Marques transformou vida em arte seguindo
intuitivamente com sua alma poética e o seu talento o lema de Ferreira Gullar,
segundo o qual “A arte existe porque a vida não basta”. Kiko escreveu a
primeira grande obra prima do teatro brasileiro do século 21. A segunda metade
do século 20 nos deu três grandes autores que revolucionaram a dramaturgia
brasileira: Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e Jorge Andrade. Kiko Marques, pela
sua poética, pela nostalgia presente, pelo uso da memória como meio narrativo e
principalmente pela compaixão por seus personagens está mais próximo à
dramaturgia de Jorge Andrade, apesar do seu grande salto na forma narrativa em
consonância com a dinâmica dos dias atuais. A fragmentação da trama é muito bem
vinda porque o dramaturgo soube contornar os perigos de transformar esse tipo
de narrativa num baú de ossos onde nenhum espectador consegue decifrar o que é
de quem. Usando o barco Sargento Evilázio como narrador e datando as cenas,
assim como, fornecendo alguns dados para situar o espectador, Kiko permite a
fruição da história que se desloca não cronologicamente por cerca de 50 anos de
três gerações de habitantes da ilha.
Não
bastasse o talento de dramaturgo, Kiko revelou-se o melhor tradutor cênico de
seu texto realizando um espetáculo belo e pungente, avis rara no cenário teatral brasileiro. Muniu-se de um elenco
excepcional e homogêneo, assim como do músico Umanto que realizou um trabalho
que é um exemplo do que deve ser uma trilha sonora (inexplicavelmente esse
verdadeiro tesouro não foi contemplado com nenhum prêmio no ano de 2013), do
cenógrafo Chris Aizner que projetou o belo cais onde se passa toda a ação da
peça e dos bonequinhos criados pelo Grupo Sobrevento que são parte integrante e
importante da história contada.
No dia 11 de agosto de 2014 CAIS saiu
mais uma vez de cena (a peça estreou modestamente no Instituto Capobianco em
outubro de 2012 e sem nenhuma ajuda da mídia foi se impondo pelo boca a boca e
tornou-se um verdadeiro fenômeno no ano de 2013 lotando aquele teatro durante
as várias temporadas que lá cumpriu; circulou pelo festival de Curitiba e pelo
interior de São Paulo e realizou esta temporada na Oficina Cultural Oswald de
Andrade sempre com casas cheias). Assistindo nove vezes ao espetáculo fui
testemunha de momentos chaves de seu percurso: Virginia Buckowski grávida de
oito meses fazendo a Magnólia, Tatiana De Marca a substituindo, retorno da
Virginia trazendo a pequena Anita para sua “estreia” teatral, saídas e entradas
em cartaz, a bela apresentação para público maior em Curitiba, o verdadeiro
convívio com todo o pessoal do elenco e de suporte (as queridas Rosana e
Paulinha), o eterno entusiasmo da Fernanda Capobianco e agora a despedida nesse
11 de agosto que espero tenha sido apenas mais uma saída de cena para um breve
retorno. É claro que esta encenação não vai poder ficar eternamente em cartaz e
um dia vai ter um ponto final. Kiko Marques escreverá, dirigirá e atuará em
outros textos; os atores, os músicos e o pessoal de suporte seguirão seus
caminhos, mas o barco Sargento Evilázio, a doce poita Rosiméri, Magnólia,
Bonifácio, Nilmar, Waldeci, Berenice, Walcimar, Juciara, Walciano, Cachorrinho,
Osório, Andreia Polaca e todos os outros personagens viverão para sempre na
memória e no coração de quem teve o privilégio de com eles conviver.
No final desse último espetáculo Alejandra
Sampaio em mais dos seus gestos generosos agradeceu nominalmente a mim, ao Carlos
Colabone e à Ana Elisa Mattos que segundo ela fomos tijolinhos que colaboraram
para construir a casa. A peça reuniu em torno de si um verdadeiro séquito de
encantados que a reviram muitas e muitas vezes. A pergunta entre esses
iniciados não era “Você viu CAIS?”, mas “Quantas vezes você viu CAIS?”. Fiquei
feliz e orgulhoso com a citação, mas é minha alma que agradece por ter podido morar
nessa casa por todo esse tempo e por ter feito de seus habitantes amigos
verdadeiros. A arte nos aproximou e a vida nos uniu. VIVA O TEATRO!
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