FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO (FIT) DE RIO PRETO
2017
É
grande a expectativa em torno da edição deste ano do FIT RIO PRETO que se
realiza de 06 a 15 de julho. Depois de ser (des)organizado e desmoralizado por vários anos pela gestão
anterior e atingir o fundo do poço no último ano, eis que ressurge tal qual
Fênix, agora sob a batuta do competente Jorge Vermelho e de novo com o
patrocínio do Sesc, que nos últimos anos havia se retirado do evento por razões
facilmente imagináveis.
A
programação é poderosa: vários títulos internacionais aparentemente muito
atrativos, espetáculos nacionais adultos e para crianças e jovens e espaço para
os trabalhos dos grupos da cidade em “Cena Rio Preto). É de tirar o fôlego!
Da
programação “espetáculos nacionais adultos” fazem parte oito montagens já
testadas com muito sucesso de público e de crítica em São Paulo, além de
SUASSUNA O AUTO DO REINO DO SOL, espetáculo de abertura apresentado pela Cia.
Barca dos Corações Partidos que encantou São Paulo em 2016 com AUÊ. Publiquei
matérias sobre elas e faço aqui uma compilação das mesmas para quem se
interessar.
GRITOS
Difícil
de explicar e de definir, mas muito fácil de elogiar “Gritos”, novo espetáculo
da “Companhia Dos à Deux” formada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, ora
em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. A tênue e bela iluminação
direciona o olhar do espectador para aquelas figuras que ilustram os três
poemas gestuais (é assim que o grupo define as cenas) que tratam de amor,
preconceito e guerra. A penumbra e até a escuridão têm função estética,
revelando um teatro “noir”, bastante
diferente de certo tipo praticado em nossos palcos. Os dois atores auxiliados
por um contrarregra manipulam bonecos e máscaras criando surpreendente efeito
visual. A mais pungente é a última cena onde mãe refugiada de guerra perde seu
filho durante a fuga. Lindíssimo na forma e tocante no conteúdo, GRITOS merece
ser visto
IRACEMA VIA IRACEMA
Quantas
Iracemas viajam naquele ônibus que tem ponto na Praça Roosevelt? Quantas
daquela Iracema você já encontrou e até desprezou pelas ruas da cidade? Ela
mesma pergunta “Perdeu alguém parecido comigo?”.
A
pesquisa conjunta das companhias Agrupamento
Andar 7 e Trupe Sinhá Zózima
resultou nesse espetáculo que tem forte interpretação de Luciana Ramin e
direção de Anderson Maurício a partir do texto de Suzy Lins de Almeida.
A
encenação é composta de vários flashes da vida dessa mulher marginalizada e
semi analfabeta, mas dona de muita coragem e perspicácia para enfrentar os
inimigos que encontra pela sua sofrida vida. Apesar de se ressentir de mais
forte amarração entre esses flashes, a peça flui de maneira vigorosa em função do
trabalho da atriz e dos detalhes da encenação: o ônibus como personagem, os
adereços de cena, a iluminação cenográfica de Tomate Saraiva, os figurinos e a
trilha sonora com canções que emolduram os vários momentos da vida de Iracema,
incluindo até uma bonita versão de India,
cantada pela própria atriz, na cena em que a personagem vai a um programa de
rádio.
Luciana
Ramin tem porte e talento e entrega-se com muita coragem à sua personagem,
despindo-se de qualquer pudor para personificar a sua Iracema. A atriz sabe
interagir com o público, além de contornar muito bem certas interferências de
algum espectador mais afoito.
Desta
vez o encenador Anderson Maurício optou por manter o ônibus da Sinhá Zózima parado durante a
apresentação. A meu ver, solução cênica correta, pois a interação com o cenário
externo torna-se mais forte como as investidas de Iracema junto aos passantes e
também com o surpreendente momento final.
TRILOGIA ABNEGAÇÃO
ABNEGAÇÃO
1 – UM ESPETÁCULO ESTRANHO
Desde seu título esta peça nos distancia de qualquer
raciocínio lógico. Abnegação? As cinco personagens não têm absolutamente nada
de abnegadas e nem o gesto suicida de uma delas pode ser assim chamado.
O texto instigante de Alexandre Dal Farra beira o absurdo ao
não esclarecer o que está acontecendo com aquelas pessoas pertencentes a um
determinado grupo (partido político? empresa? alguma confraria?) que se
digladiam em torno de fatos que o público desconhece até o final do espetáculo.
O já citado suicídio do líder no final da primeira parte vai mover toda a ação
da segunda, onde os “sobreviventes” que se aproveitaram da situação remoem os
seus remorsos.
O uso de dois praticáveis (que remete à solução cenográfica
usada em Les Éphémères do grupo
francês Théâtre du Soleil) é bastante
interessante, com a ressalva que a troca de cenário no praticável à direita da
plateia desvia a atenção do público do
que está acontecendo em cena.
O grande trunfo do espetáculo é o elenco e nota-se que os
diretores (Dal Farra e Clayton Mariano) concentraram suas atenções nas
interpretações cheias de silêncios e gestos enigmáticos. Transitando por frases
soltas e ações inconsistentes (pelo menos para o público) eles atuam com
energia e verdade passando uma verossimilhança daquilo que é, senão
inverossímil, pelo menos, racionalmente incompreensível. Todos estão ótimos,
mas é necessário destacar o vigoroso trabalho de Vitor Vieira, que já havia nos
brindado em 2012 com uma grande interpretação em Mateus 10.
Este corajoso trabalho da companhia Tablado de Arruar com
toda sua estranheza, surpreende e faz refletir sobre a situação do Brasil
atual. “Surpreender” é sinônimo de bom teatro e “refletir” é sinônimo de um
salutar engajamento, prova que o Tablado de Arruar não está brincando em
serviço.
O espetáculo tem 2h10 de duração e talvez merecesse alguns
cortes na primeira parte como também no número de charutos fumados por André
Capuano!
ABNEGAÇÃO
2
UM
SOCO NO ESTÔMAGO!
Assisti
a Abnegação 2 pela primeira vez em um
dia particularmente infeliz para o público (um sério problema na linha azul do
metrô por volta das 19h deixou toda a cidade congestionada) e também para o grupo
Tablado de Arruar (um refletor foi danificado e todas as cenas
de fundo foram prejudicadas). Isso aconteceu no dia 30 de abril de 2015 na Oficina
Cultural Oswald de Andrade e quando não acontece a esperada comunhão entre espectador
e ator algo sai fora dos eixos. Saí do espetáculo sem confirmar as boas
expectativas que tinha em relação a esse novo trabalho de Alexandre Dal Farra (Abnegação 1 foi para mim um dos melhores
textos brasileiros da temporada de 2014), mas sentindo que ele tinha potencial
para dar bons resultados.
Na
última semana revi o espetáculo agora no simpático Armazém Cultural e o que vi
foi, no meu ponto de vista, uma outra peça.
Abnegação 2 tem o subtítulo de O Começo do Fim e declara-se inspirada
no caso do assassinato em 2002 de Celso Daniel que foi prefeito de Santo André.
É dividida em dois planos: a vida pública e a vida privada (as cenas deste
plano é que ficaram prejudicadas na primeira vez a que assisti a montagem).
Tudo é corrupção, conchavo político e muita libertinagem (drogas, traições públicas
e privadas). Enquanto as podridões do plano público são apresentadas em tom
histérico, aquelas do plano privado são ditas à meia voz com os atores
semiestáticos, mas em ambas fica patente a sordidez de que é capaz o ser humano
em busca de poder e privilégios. A peça é um soco no estômago e não deixa pedra
sobre pedra. O ser humano é tratado como mera mercadoria a base de troca tanto
no sexo como na aquisição de valores e na luta pelo poder. Com a situação
política atual creio que já estamos não mais no começo, mas a meio caminho do
fim.
Há
quem diga que o espetáculo é uma virulenta crítica ao PT, o que não deixa de
ser verdade, mas a sua abrangência é muito mais ampla: as intrigas palacianas
apresentadas fazem parte de toda a política brasileira.
Os
diretores Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano optaram por uma montagem
literalmente suja: Jorge (a personagem que vai ser assassinada) cobre-se de
cerveja para depois bêbado ser “lavado” com detergente; José (um dos
articuladores do crime) banha-se em cocaína e por aí a fora. Tudo é muito
exteriorizado nas cenas do plano público levando os espectadores a um
proposital incômodo enquanto a pior forma de sedução é mostrada nas cenas do
plano privado, o que também não deixa de provocar um mal estar. Neste plano os
dois papeis femininos têm alta importância, algo que havia me escapado na
primeira vez e as atrizes Ligia Oliveira e Alexandra Tavares desempenham seus
papeis com garra e coragem. Vinicius Meloni sai-se bem, principalmente, no seu
monólogo final, mas sua dicção em certos momentos dificulta a compreensão do
texto. André Capuano é um ótimo ator, mas sua interpretação over over para uma personagem que já é over perde impacto no decorrer da ação.
Vitor Vieira brilha no papel de Jorge; ele é um ator de forte presença cênica e
suas atuações junto ao Tablado de Arruar
tornam-se cada vez mais poderosas. Sua interpretação em Abnegação 2 vem juntar-se a outros notáveis trabalhos masculinos
deste ano : Chico Carvalho (Consertando
Frank), Daniel Costa (Urinal),
Danilo Grangheia (Krum), Eduardo
Mossri (Cartas Libanesas) Gustavo
Gasparani (Ricardo III), Jarbas Homem
de Mello (Chaplin) e Marcos Breda (Oleanna).
Segundo
o dicionário “abnegação” significa “desinteresse, renúncia, desprendimento,
devotamento”. Esta aí mais uma ironia do dramaturgo ao dar esse título à peça.
Abnegação 2 junta-se a Abnegação 1 e a Os Collegas (peça do ano 2003 da Bendita Trupe injustamente
esquecida) na denúncia das intrigas e sujeiras da política brasileira (curiosamente
um tema pouco tratado pelos nossos dramaturgos) e precisa ser vista por quem
acredita que tomando conhecimento e refletindo sobre o assunto possa contribuir
para mudar esse lamentável estado de coisas.
O
fôlego de Alexandre Dal Farra é bastante forte e como ainda há muita sujeira a
ser mostrada ele já tem Abnegação 3
em preparo.
ABNEGAÇÃO III
CENAS DA VIDA PRIVADA DE UM PAÍS À BEIRA DO CAOS.
Em
Abnegação II, as cenas dividiam-se em
públicas (extremamente dinâmicas) e privadas (semi-estáticas). Nesta Abnegação III que trata da vida privada,
os encenadores Clayton Mariano e Alexandre Dal Farra resolveram radicalizar
optando por deixar os atores sentados com os braços estendidos ao longo do
corpo, dando vida às falas das personagens apenas com suas expressões faciais e
vocais. Pouquíssimas vezes e em momentos necessários para o desenvolvimento da
ação eles se debruçam para frente, ficam em pé ou caem no chão. Há de se convir
que tal solução cênica poderia resultar em espetáculo, no mínimo cansativo, mas
os diretores, sabedores da força e do talento do seu elenco, apostaram e o
resultado é surpreendentemente dinâmico e envolvente. Um emblemático pano
vermelho cobre todo o fundo do palco.
O
texto de Alexandre Dal Farra, dividido em nove cenas, visita cinco famílias de
várias classes econômico-sociais todas elas envolvidas, de alguma maneira, com
o PT. A partir da 6ª cena as quatro primeiras voltam a aparecer em momentos
diferentes, ficando a quinta (Na casa de um oficial) como um divisor entre os
dois tempos ocorridos. Diálogos ágeis entremeados com longas falas (“bifões”,
como se diz, na gíria teatral) dão vigoroso painel da situação do Brasil no
momento em que se preconizava a agonia do PT (2014). Curiosamente, se na
leitura do texto os “bifões” chegavam a incomodar, na encenação eles funcionam muito
bem em função da maneira como são interpretados pelos atores.
Poucas
vezes temos a oportunidade de ver em nossos palcos elenco tão coeso e
talentoso. Os seis atores, utilizando-se quase que apenas de seus recursos
faciais e vocais passam para o público toda a emoção e o ridículo de certas
situações. A ironia presente é responsável por risos nervosos e também irônicos
do público.
Ligia
Oliveira tem seu melhor momento como a patética Adriana, empregada de uma
família de herdeiros ricos. É difícil acreditar que seja a mesma pessoa que
encarnou a espevitada perua de peruca longa em Abnegação II.
Antonio
Salvador entra para a trilogia apenas nesta última e empresta todo seu talento
para as várias personagens que interpreta.
André
Capuano despoja-se das interpretações exageradas das duas primeiras “abnegações”
e usa máscaras variadas para dar vida a seus personagens.
Alexandra
Tavares, parecendo muito mais jovem, com seu cabelo cortado rente, tem dicção
clara e consegue parecer uma menina ou uma velha (a mãe de uma das cenas) com
igual desenvoltura.
Amanda
Lyra é um vulcão em cena, sendo responsável pela maior parte das falas
engraçadas da peça.
E
finalmente Vitor Vieira, ator que confirma mais uma vez (se isso fosse
necessário!) seu grande talento e versatilidade.
Muitos
elogios? Pode ser, mas todos verdadeiros e muito necessários. Se houvesse algum
prêmio dedicado a elenco o meu voto iria com certeza para este trabalho onde
predomina a ideia de coletivo.
Com
15 anos de existência, só tomei contacto com a Tablado de Arruar em 2012
quando assisti ao impactante Mateus 10.
A partir daí surgiu Abnegação que deu
origem à trilogia que ora se encerra. Trilogia corajosa onde um grupo
nitidamente de esquerda faz crítica feroz do partido de esquerda que levou o
país à situação ora vivida por todos nós.
Antes
do início do espetáculo, um amigo e eu comentávamos a situação dramática que
ora vivemos, pelo fato de não haver perspectivas de luz no fim do túnel, pois
este túnel só tem políticos corruptos e arrivistas. E essa falta de luz é muito
bem metaforizada ao final do espetáculo com o black out que ocorre na casa pobre e com a ausência dos atores no
palco. Soco no estômago, como Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano sabem muito
bem dar!
BLANCHE
MAIS UMA DO MESTRE ANTUNES
Antunes
Filho volta a surpreender a começar pela escolha de um homem para interpretar
uma das personagens femininas mais importantes e icônicas da dramaturgia
mundial. Ela surgiu em 1947 no teatro norte americano pelas mãos de Jessica
Tandy e foi imortalizada no cinema por Vivien Leigh (1951). No Brasil Blanche
Dubois já foi vivida por Henriette Morineau (1950), Maria Fernanda (1965), Eva
Wilma (1974), Tereza Rachel (1986), Leona Cavalli (2002) e Maria Luisa Mendonça
(2015); agora é a vez de Marcos de Andrade trazer à luz a frágil e sofrida
personagem.
Retomando
e radicalizando a estética de A Falecida
Vapt Vupt encenada em 2009 o encenador volta a apresentar um espetáculo no
Espaço CPT iluminado apenas com as lâmpadas do local, sem uso de refletores e
com reduzidos objetos de cena. O único recurso extra-interpretação usado é a
inserção de algumas músicas para ilustrar a ação (trilha sonora selecionada por
Raul Teixeira). A casa da irmã Stella não tem portas (as cortinas do espaço
servem como tal); a campainha é ouvida pelo som de quem a toca; os atores
mimicam o comer, o beber e o lavar a louça. Tudo se passa como se fosse um
ensaio... mas não é um ensaio! Coisas do Mestre Antunes que como sempre
resultam em algo inovador e surpreendente.
Falado
em fonemol (qual seria a diferença com gromelô?)
a ação torna-se totalmente compreensível para quem conhece a peça de Tennessee
Williams uma vez que esta é seguida quase à risca. Para facilitar o
acompanhamento da trama é fornecido ao público um roteiro com a sinopse da
mesma cena por cena.
Há
a clara intenção de denunciar a violência física e moral com mulheres e
travestis e isso é evidenciado com a ênfase na cena do estupro muito bem
estilizada pelo diretor.
Com
tal radicalismo na encenação a peça exige muito dos atores que são praticamente
o único recurso cênico da mesma. Marcos de Andrade compõe uma Blanche perfeita;
sem afetações e maneirismos inúteis ele comunica ao público a graça e a
fragilidade da personagem emocionando na medida certa. Outro bom destaque é
Alexandre Ferreira com seu patético Mitch. Andressa Cabral se sai bem como
Stella, mas falta a Felipe Hofstatter a brutalidade exigida para interpretar
Stanley Kowalsky, coisa que fica mais patente com o figurino “arrumadinho”
usado por ele (fica difícil acreditar que Stanley use aquele robe de chambre). O restante do elenco
cumpre o seu papel.
Volto
a repetir que a interpretação de Marcos de Andrade é tão perfeita que após o
estranhamento inicial, esquecemos que estamos diante de um homem travestido,
mas sim perante uma frágil senhorita perdida, à procura de um bonde chamado
desejo.
PROJETO BRASIL
Não
é fácil escrever sobre esse instigante espetáculo da Companhia Brasileira de
Teatro (Curitiba). Trata-se de 16 cenas denominadas pelo encenador Marcio Abreu
de discursos verbais e não verbais onde as mostram as mazelas desse bRASIL com
letra minúscula: preconceitos, muita violência, individualismo exacerbado. A
cor preta predomina nos figurinos, no geométrico e belo cenário e nas bexigas
pretas que ao estourarem remetem aos tiros que matam tantos inocentes no dia a
dia violento de nossas metrópoles. Para a criação do texto o grupo valeu-se de suas
próprias improvisações além de discursos de Christiane Taubira (ex-ministra de
Justiça da França) e de Pepe Mujica (ex-presidente do Uruguai). Marcio Abreu
assina o texto final.
Rodrigo Bolzan tem um dos melhores momentos
de sua sólida carreira de ator e Giovana Soar, além do imenso desgaste físico
com tombos e agressões físicas, está ótima na interpretação em libras da letra
da música Um Índio de Caetano Veloso
e, principalmente, no emocionante monólogo (discurso 15) quase ao final da
peça. Nadja Naira e Felipe Storino (músico) completam o elenco. Apesar de tudo
a peça acredita no homem. Em que homem não se sabe, mas em um homem que talvez
virá (Virá que eu vi). Eis as
palavras com que a peça se encerra:
-
Depois do futuro, o fim como começo.
- Há muitos mundos no mundo.
- Sonhar outros sonhos.
- Só o homem nu compreenderá.
- Ele flutua.
JACY
“Fale de sua aldeia e estará falando do mundo”.
A frase de Tolstoi se encaixa como uma luva no espetáculo Jacy do grupo potiguar Carmin. A primeira boa surpresa está em estarmos
assistindo a espetáculo criado fora do eixo Rio-São Paulo e a segunda, melhor
ainda, é que se trata de excelente e criativa montagem.
Uma
frasqueira encontrada ao acaso na rua pelo ator/dramaturgo/diretor Henrique
Fontes é o início de tudo. A abertura revelou objetos, cartas e documentos
pertencentes a Jacy. Um homem? Uma mulher? De posse do cartão de um taxista o
grupo iniciou processo de investigação detetivesca até chegar em Sara,
cuidadora de uma senhora de nome Jacy que morreu aos 90 anos em Natal e o resto
é história!
A
montagem mostra o processo de investigação, assim como, a vida dessa senhora
nascida em 1920 que teve vida nada espetacular a não ser ter vivido em épocas
conturbadas como a segunda guerra mundial e a ditadura militar e também ter se
apaixonado e casado por capitão americano.
São
dois atores em cena: Quitéria Kelly e Henrique Fontes, auxiliados por Pedro Fiúza
que opera som e luz, além de manipular imagens e adereços que são projetados em
tela ao fundo do palco. Os recursos são extremamente simples, mas os resultados
são muito criativos e significativos. O texto escrito por Pablo Capristano e
Iracema Macedo sofreu tratamento dramatúrgico por Henrique Fontes e Pablo
Capistrano. A direção de Henrique Fontes é sóbria focando toda a atenção no
trabalho dos atores. Quitéria Kelly, além da bela presença, apresenta com
versatilidade tanto cenas narradas como interpretativas, o mesmo podendo se
dizer de Henrique Fontes. Os desenhos que o ator faz mostrando Jacy se curvando
com a idade é um dos momentos mais belos a que já presenciei no teatro (vide
foto acima).
As
citações da situação política potiguar, assim como, de fatos acontecidos no
passado revelam uma universalidade que faz jus à frase de Tolstoi citada no
início desta matéria. Em vários momentos do espetáculo, os atores comentam
ironicamente algo parecido com “Mas agora as coisas mudaram...”. Pois é!!
Jacy faz pensar e também comove pela
simplicidade com que foi concebido ao contar história trivial que podia ter
ocorrido com qualquer um de nós. Excelente exemplo de teatro documental (gênero
que corre o risco de resultar monótono e tedioso) que precisa ser visto.
O
Grupo Carmin completa dez anos neste janeiro e tem respeitável currículo como é
mostrado no programa da peça. Espera-se que São Paulo tenha a oportunidade de
assistir a outros trabalhos do grupo.
14/06/2017
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