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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

BOCA DE OURO


Foto de João Caldas Filho

        Costumo escrever a matéria de um espetáculo um ou dois dias após a ele ter assistido, mas quando o deslumbramento é muito grande procuro dar um tempo, esperar a poeira baixar e então voltar a ele, com menor perigo de adjetivar demais. Já faz uma semana a que assisti Boca de Ouro e ainda me sinto tocado pela beleza e perfeição da leitura de Gabriel Villela para o texto de Nelson Rodrigues, que, assim como A Falecida, tem sólida estrutura dramatúrgica, seja na determinação dos personagens, no desenvolvimento da trama ou no final surpreendente. Tudo funciona no texto que faz perfeito retrato do subúrbio carioca e a encenação de Villela, sem abandonar a estética do encenador, tem ar e ambiente que condizem com o original de Nelson Rodrigues. Ao contrário de outras montagens do diretor, são poucos os elementos em cena: várias mesas, cadeiras e copos simulando cabaré da Lapa e uma poltrona no meio da cena que terá diferentes funções durante a apresentação. O toque barroco, característico de Villela, fica por conta dos figurinos coloridos e esplendorosos (cenário e figurinos são assinados pelo diretor).
        Nesse cenário, sob a luz inventiva de Wagner Freire e ao som de músicas de diversas épocas do cancioneiro popular brasileiro interpretadas por Mariana Elisabetsky desfilam e agem as personagens criadas por Nelson Rodrigues.
        Lavínia Pannunzio, dona de imenso talento já comprovado em inúmeros trabalhos, merece destaque especial como Guigui, a personagem que conduz a trama contando três versões do assassinato de Leléco (Claudio Fontana, ótimo, lembrando vocal e corporalmente de Luís Mello em Paraíso Zona Norte (1989). Mel Lisboa cresce a cada nova interpretação, sua Celeste tem ao mesmo tempo a sensualidade e a agressividade pedida pelo autor, além da voz de poderoso alcance. Chico Carvalho empresta sua irreverência ao repórter Caveirinha e diverte na pele da granfina Maria Luísa. Leonardo Ventura tem ótima máscara como o velho corcunda Agenor, marido de Guigui, mas parece menos à vontade no concurso de seios do que suas “companheiras” Cacá Toledo e Guilherme Bueno. Malvino Salvador, buscando novos caminhos, se sai bem como o protagonista. Mariana Elisabetsky tem bela voz apesar de indesejável trinado nos momentos mais agudos. Jonatan Harold se incumbe do piano e de algumas figurações. Louvem-se a coesão e o espírito de conjunto do elenco, além da perfeita emissão de voz que torna o todo audível na complicada acústica do Tucarena.
        Na trilha sonora cabem tanto clássicos (Cidade Maravilhosa) como canções contemporâneas (De Frente Pro Crime) e até Bang Bang (My Baby Shot Me Down) todas elas adequando-se e comentando a ação.
        Boca de Ouro é espetáculo que beira a perfeição. Villela conseguiu, de maneira criativa e talentosa, transformar a tragédia carioca de Nelson Rodrigues em impactante melodrama expressionista, sem trair a intenção do autor.
        E não se pode deixar de comentar sobre o inventivo uso dos dedais que exercem várias funções durante a peça.


        BOCA DE OURO está em cartaz no Tucarena às sextas e sábados às 21h e domingos às 18h30.
        ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!

17/08/2017


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