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sábado, 22 de setembro de 2018

EU ESTAVA EM MINHA CASA E ESPERAVA QUE A CHUVA CHEGASSE



        Jean-Luc Lagarce (1957-1995) escreveu J’Étais Dans Ma Maison et J’Attendais Que la Pluie Vienne em 1994, um ano antes de sua morte, que ele já pressentia, pois estava contaminado pelo vírus da aids desde 1986. A peça trata de uma eterna espera tal como aquela de Estragon e Vladimir no clássico Esperando Godot de Beckett. Aqui, são cinco mulheres denominadas pelo autor como “a mais velha de todas”, “a mãe”, “a filha mais velha”, “a segunda” e “a mais nova” que após esperarem anos a fio pela volta do neto, filho e irmão, continuam a esperar que ele saia de uma espécie de coma na qual entrou quando de sua volta ao lar e assim possa relatar como foi sua vida de aventuras nos anos em que esteve fora depois que foi expulso pelo pai, agora já falecido.
        Eu havia assistido a uma montagem da peça em 2007 no Sesc Paulista com direção de Marcelo Lazzaratto da qual gostei e tenho boas lembranças dos trabalhos de Miriam Mehler como “a mais velha de todas” e de Carolina Fabri (sempre ótima) como “a filha mais velha”. Consultando as anotações da época constato minha admiração pela obra com a ressalva de achá-la muito longa e do texto ser belo, porém verborrágico.


        Onze anos depois, o mestre Antunes Filho utiliza-se da mesma tradução de Maria Clara Ferrer reduzindo-a quase pela metade e adaptando-a segundo sua concepção cênica, Com isso o que era bom ficou ainda melhor.
        Um espaço cênico cheio de cadeiras que simbolizam o vazio da eterna espera é aos poucos invadido por aquelas cinco mulheres de vida solitária cujos desejos e motivações o espectador vai aos poucos descobrindo, ou melhor, imaginando.
        Apesar de árido, o texto de Lagarce é bastante poético e Antunes imprime mais poesia em sua bela encenação, haja vista, a primeira cena onde “a filha mais velha” (interpretação primorosa de Fernanda Gonçalves, filha do saudoso Enio Gonçalves) faz talvez o mais belo monólogo de toda a peça. Louvem-se, de passagem, as perfeitas dicção e emissão de vozes das atrizes fazendo com que o espectador não perca uma palavra do texto, qualquer que seja sua posição na plateia (coisa que anda rara em nossos palcos).
        Há muita simbologia na encenação de Antunes e apesar do encenador solicitar no programa que não interpretemos a peça, não há como não imaginar o porquê do gesto lembrando a saudação fascista quando as mulheres se encontram, o porquê da bandeira vermelha carregada pela “mais velha de todas” (TFP?), o porquê do ritual de tirar e por objetos de uma caixinha e mesmo o porquê daquele contorno superior pintado com flores muito coloridas que contrasta com a aridez do resto do cenário. Antunes joga todos esses porquês e a imaginação do espectador que preencha os vazios como quiser.
        O texto remete (sem perder sua grande originalidade) ao já citado Esperando Godot, ao filme O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled) de 1970, dirigido por Don Siegel e também a A Casa de Bernarda Alba de Garcia Lorca. Todas essas obras com certeza eram de conhecimento do autor.


        Do elenco afinadíssimo, destaque para a visceral interpretação de Suzan Damasceno, figura trágica da “mãe”, cujas expressões vão do autoritarismo à imensa tristeza. A figura lembra muito a personagem Bernarda Alba da obra de Lorca citada acima.
        O caprichado programa, com trechos dos monólogos das cinco personagens e textos do autor e do encenador, tem várias ilustrações e entre elas, uma do quadro No Leito da Morte de Edvard Munch. O lancinante grito de revolta/impotência/indignação dado na cena final pela “mais nova” nos leva àquele que é quadro mais famoso do pintor norueguês.
        E por último fica a questão: o que aconteceria com aquelas mulheres se o “caçula” acordasse?
         Grande Mestre Antunes, sempre nos surpreendendo e nos tirando do chão.

        EU ESTAVA EM MINHA CASA E ESPERAVA QUE A CHUVA CHEGASSE é uma produção do CPT/Sesc e do Grupo de Teatro Macunaíma. Em cartaz no Teatro Anchieta às sextas e aos sábados às 21h e aos domingos às 18h. Até 16/12/2018

        22/09/2018. Início da primavera.



3 comentários:

  1. Cetra, eu estava procurando alguém que tivesse gostado daquela montagem do Lazzarato. Achei: era você. Espero que o Antunes tenha feito coisa melhor.

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  2. Suas observações me instigam a assistir a peça.

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  3. O talento de Antunes é incontestável; e você, com esta esta primorosa crítica, assina embaixo, essa minha afirmação. Ansioso para assistir, e apreciar o trabalho de duas colegas do CPTzinho'2017 - Fernanda e Daniela.

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