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sexta-feira, 31 de março de 2023

PERSONAGENS EM BUSCA DE UM AUTOR

 

Louve-se em primeiro lugar a persistência e a coragem de Adriana Câmara em adaptar clássicos do teatro mundial para seu teatro imersivo, buscando “sempre escolher espaços específicos para a trama” conforme suas próprias palavras no release do espetáculo atual.

Em 2017 foi a vez de Tio Vânia de Tchekhov que se abrasileirou numa residência rural como Tio Ivan e foi apresentado em um casarão das Oficinas Culturais Oswald de Andrade, seguiu-se As Palavras da Nossa Casa na Casa das Rosas, espetáculo baseado em filmes de Ingmar Bergman.

A adaptação de Seis Personagens à Procura de Um Autor, na concepção do Núcleo Teatro de Imersão, só poderia ser encenada em um teatro e Adriana não fez por menos, conseguindo o Theatro Municipal para sua realização.

Os espectadores percorrem várias dependências do teatro junto com o elenco, encerrando o itinerário no majestoso Salão Nobre onde acontece a cena final. Ou melhor...quase cena final, pois uma surpresa está reservada para o público nas escadarias do teatro.

Nessa adaptação a diretora eliminou alguns personagens, mantendo apenas o Pai, a Mãe e a Enteada da família que procura  um autor, a diretora, um ator, uma atriz e uma rápida aparição da Madame Pace, figura importante no desenvolvimento da trama.

A direção enfatiza o humor em certas cenas como aquelas em que o elenco do teatro procura interpretar os três personagens ali presentes os quais não se conformam em serem representados daquela maneira.

Há também uma ênfase, um pouco forçada a meu ver, na imersão e na interatividade como o pedido para o público ajudar no transporte dos móveis para o cenário e na saída até uma sala para escolher os figurinos que o elenco deve usar para interpretar os personagens.

Mas resta o magnífico texto metalinguístico de Pirandello (tantas vezes imitado, mas nunca igualado) presente em vários momentos, principalmente aquele diálogo entre o Pai e a diretora pouco antes da saída para o Salão Nobre para a realização da cena final onde ele fala da realidade imutável de um personagem.

A diretora Adriana Câmara reserva para si o papel de diretora da peça de Pirandello, o elenco é vivido por Amanda Policarpo e Elmar Bradley, Pat Albuquerque tem pequena participação como Madame Pace e os personagens são interpretados por Daniela Flor (Mãe), Glau Gurgel (Pai) e Letícia Alves em ótima composição como a Enteada.

Restam poucas apresentações no Theatro Municipal (confira a programação no site do teatro) e espera-se que o espetáculo possa continuar sua trajetória em outro teatro da cidade.

31/03/2023

quarta-feira, 29 de março de 2023

O DIA DAS MORTES NA HISTÓRIA DE HAMLET

 

O texto de Bernard-Marie Koltès é frio e racional e a montagem de Guilherme Leme Garcia acompanha as intenções do dramaturgo francês, precocemente morto aos 41 anos em 1989, época em que a aids ceifava vidas aos milhares. Trata-se de um dos primeiros textos escritos pelo autor e aí já se revela o estilo que se consolidaria nas obras da maturidade como Roberto Zucco e Na Solidão dos Campos de Algodão.

 A coerência presente nas intenções do autor e do diretor também se faz notar no belo e equilibrado cenário de Mira Andrade composto apenas de quatro banquetas onde o elenco permanece sentado quando não está em ação, na não menos que arrebatadora iluminação de Aline Santini que surpreende o espectador a cada novo trabalho realizado, nos solenes figurinos de João Pimenta contrastando o escuro (Claudio, Gertrudes e Hamlet) com o claro (Ofélia) e nas interpretações contidas e estilizadas de Tiago Martelli (Hamlet), de Larissa Noel (Ofélia) com potente voz e excelente expressão corporal e dos mais que notáveis Leopoldo Pacheco (Claudio) e Lavínia Pannunzio (poderosa como sempre, interpretando Gertrudes)

A leitura de Koltès limita a essas quatro personagens e à voz do fantasma uma peça que tem mais de quarenta figuras em cena, mas o faz de maneira que revela toda a complexidade da trama shakespeariana, além de acrescentar problemas contemporâneos à narrativa.

A morte conduz a cena, pois a peça concentra a ação no dia em que morrem Claudio, Gertrudes e Hamlet, sendo que Ofélia já havia partido anteriormente.

Não havendo mais ninguém para falar, só resta o silêncio! 

Em tempo: o belo e informativo programa contém fotos preciosas em branco e preto do elenco creditadas a João Pacca, além de uma sem créditos do dramaturgo Koltès.

O DIA DAS MORTES NA HISTÓRIA DE HAMLET está em cartaz no SESC 24 de Maio até 09 de abril com sessões às quintas e sextas às 20h, aos sábados às 17h e 20h e aos domingos às 18h. 

29/03/2023

terça-feira, 28 de março de 2023

3x1 TEBAS

 

Daquelas surpresas que fazem o gaudio do espectador!

Eu já havia me deliciado com Fuente Ovejuna (2017) e Conto de inverno (2019) da companhia Sem Querer de Tentativas Teatrais, as duas últimas peças da Trilogia da Taverna iniciada em 2015 com O Inspetor Geral, todas elas apresentadas na Sala Espelho do extinto e saudoso Viga Espaço Cênico em belíssimo cenário criado por Kleber Montanheiro.

Depois de uma parada forçada devido à pandemia da covid, eis que a trupe liderada por Juliano Barone volta com toda a energia com esse excelente 3x1 Tebas que apresenta de uma só vez a Trilogia Tebana de Sófocles (497 A.C. – 406 A.C.) em uma sofisticada adaptação da dramaturga Solange Dias que inclui novos textos e canções. Solange faz recorte preciso na trilogia dando ênfase à principal e mais perfeita delas que é Édipo Rei apresentando em sequência versões mais condensadas de Édipo em Colono e Antígona.

O grupo define-se como especializado em teatro para a juventude, mas este espetáculo transcende qualquer classificação etária atingindo jovens e adultos, característica aliás que já se percebia em seus outros espetáculos.        

        Elenco afinadíssimo de jovens e experientes atores pertencentes à companhia encarrega-se junto com os veteranos Luiz Amorim (Tirésias) e Joca Andreazza (Creonte), das principais personagens das três tragédias: Marcus Veríssimo (Édipo), Juliana Arguello (Antígona), Monique Fraraccio (Ismênia), Pedro Casali (Teseu), Edi Cardoso (Jocasta) e Dani Duarte (Polinices). O côro, também afiado, comenta a ação ora falando, ora cantando as composições do diretor musical Wagner Passos. A parte instrumental é executada ao vivo por um grupo de cinco músicos.

        É gratificante e emocionante ver os veteranos Luiz Amorim e Joca Andreazza contracenando com o elenco mais jovem e ainda mais gratificante testemunhar as viscerais interpretações de Marcus Veríssimo, Juliana Arguello e Monique Fraraccio.

        Nota-se o cuidado na produção do espetáculo nos mínimos detalhes: cenário com cordas que delimitam o espaço e figurinos de Kleber Montanheiro, iluminação precisa de Gabriele Souza, máscaras criadas por Jair Correia e direção de movimento por Bruna Longo. Cada um desses itens somado à excelência na interpretação e na direção de Juliano Barone revelam o alto nível profissional do trabalho que não pode se restringir a essa curta e pouco divulgada temporada.

        O espetáculo é uma coprodução dos núcleos Educatho e Sem Querer de Tentativas Teatrais e está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade APENAS até o próximo sábado, dia 1º, portanto CORRA!! Sessões de quarta a sábado às 15h, com sessão extra na quarta às 19h30.

        IMPERDÍVEL.

        28/03/2023

SERTÃO SEM FIM


Na ocasião em que assisti à versão virtual de Sertão Sem Fim, muito impressionado com o espetáculo escrevi o seguinte:

Para contar a história da brava guerreira Bastia era necessário gente também guerreira e dessa equipe talentosa resultou “Sertão Sem Fim”.

O talento inicia com o ótimo texto de Rudinei Borges dos Santos que mostra a luta de uma mulher em um sertão sem clichês, passa pela direção enxuta de Donizeti Mazonas que tão bem captou o clima proposto por Rudinei com a grande ajuda da incrível cenografia de Eliseu Weide, iluminada por Hernandes de Oliveira, embalada pela majestosa - sim, eu escrevi, majestosa – trilha sonora de Gregory Slivar e culmina, é claro, com a pungente interpretação de Tertulina Alves, na verdade a guerreira Mór do espetáculo.

Muita adjetivação? Pode ser, mas o espetáculo me deixou de quatro e não havia outra maneira de me expressar.” 

Na noite de ontem assisti com muita emoção ao espetáculo com todo o esplendor que só o teatro que é completo quando é presencial possui e toda a adjetivação acima se multiplicou.

Nada mais significativo para comemorar o Dia Internacional do Teatro. 

Fotos de Keiny Andrade

28/03/2023

               

A HERANÇA – PARTE 2

 

Em 1963/1964 uma peça realista com grande elenco (12) levava muito público ao Teatro Oficina, onde era apresentada com direção de Zé Celso Martinez Corrêa. Trata-se de Pequenos Burgueses de Máximo Gorki. A propaganda e as chamadas para a peça afirmavam que todo o espectador iria se identificar com algum dos personagens da peça.

Estamos em 2023, sessenta anos depois, e as chamadas para A Herança, outra peça realista com grande elenco (por coincidência, também 12, sem contar a participação especial de Miriam Mehler, que por sinal participou da montagem histórica do Teatro Oficina) tem suas chamadas nas redes sociais também afirmando que sempre haverá uma identificação do espectador com algum dos personagens.

É natural que em um espetáculo de cunho realista, onde há forte relacionamento entre o grande número de personagens, surjam situações e reações que remeterão a algum momento da vida de cada um dos espectadores, daí a identificação. 

A parte 2 da peça começa de forma promissora em cena que Eric (Bruno Fagundes) apresenta seu futuro marido, o conservador Henry (Reynaldo Gianecchini), para seus amigos gays. Há uma acirrada discussão entre o republicano Henry e os amigos de Eric, todos democratas. O mais radical dos rapazes é aquele interpretado por Haroldo Miklos (excelente) que ao fim da conversa e com a saída de Henry, aconselha Eric a desistir do casamento, ao que Eric retruca:

- É a minha vida!

E o rapaz responde:

- É o meu país!

Cena política forte que infelizmente não é levada adiante, pois neste momento o dramaturgo Matthew López ao oscilar entre terminar a peça com um cunho político ou manter o tom pessoal, escolheu a segunda opção, se restringindo às questões pessoais dos homossexuais pequeno burgueses novaiorquinos.

Sendo assim acompanha-se a saga de Eric e seus companheiros até a partida deste para a casa herdada de Walter (personagem de Marco Antônio Pâmio que morre na parte 1) onde encontra uma senhora, aqui interpretada por Miriam Mehler, em cena feita sob encomenda para comover, pois tudo que toca no assunto “morte provocada pela aids” comove. Bela participação da atriz que sabe dosar a dramaticidade da cena com toques de humor. Miriam é merecidamente ovacionada em cena aberta.

Se na parte 1, os grandes destaques eram Pâmio e Primot, nesta parte 2, além da citada cena de Miriam, Primot domina totalmente em cada cena em que aparece, tendo interpretação marcante digna de ser lembrada entre as melhores do ano.

Pâmio comparece mais discretamente apenas em sonho do personagem Leo, como E.M. Forster, autor do livro Maurice que causou grande impacto no jovem vivido por André Torquato, menos vibrante nesta parte 2, apesar de ter significativo momento quando se divide entre os dois personagens que interpreta (Adam e Leo).

Bruno Fagundes segue com um Eric tímido e choroso, mas convence no papel, sendo uma bem-vinda revelação.

O elenco coadjuvante continua ótimo, cada um tendo bons momentos tanto interpretando como narrando cenas, com destaque para Haroldo Miklos na cena citada acima.

A feia cenografia assinada pelo diretor Zé Henrique de Paula é composta de placas de madeira encostadas no fundo do palco e de araras com roupas dispostas nas duas laterais. A meu ver, esteticamente seria mais interessante um palco nu do que essa solução.

Figurinos assinados por Fábio Namatame e iluminação sempre competente de Fran Barros. A discreta trilha sonora é de Fernanda Maia.

A Herança não vai ficar como revolucionária na história do teatro, mas é bem construída como texto e tem bela tradução cênica brasileira realizada por Zé Henrique de Paula.

Ressalte-se que as mais de seis horas de duração não pesam param o espectador, que acompanha com bastante interesse o dia a dia e os dramas de Eric, Toby, Walter, Henry, Adam, Leo e seus amigos.

Você se identificou com algum deles? 

A HERANÇA está em cartaz no Teatro Vivo até 30 de abril 

27/03/2023

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 20 de março de 2023

ENQUANTO VOCÊ VOAVA, EU CRIAVA RAÍZES

 

      Paradoxalmente, para este espectador, este espetáculo sem palavras é um imenso grito parecido com aquele famoso do quadro de Edward Münch. Grito de pavor, de revolta e de indignação em face dos tempos em que vivemos. As poderosas imagens oferecidas “ecoam” em meu corpo até bem depois do final do espetáculo.

Acompanho a carreira dessa dupla formidável (André Curti e Artur Luanda Ribeiro) que compõe a Cia. Dos à Deux desde 1999, ocasião em que assisti no SESC Ipiranga, entre surpreso e maravilhado, ao seu primeiro trabalho que levava o mesmo nome da companhia. Na verdade, eu já havia visto André Curti muito antes, em 1986, quando muito jovem foi escalado para fazer uma velha de 80 anos, a mãe de Bernarda Alba, na peça de Garcia Lorca!!! Por mera curiosidade, segue abaixo uma foto do programa com o ator composto para a personagem.

Mas voltemos a Enquanto Você Voava... Todos os espetáculos da Dos à Deux são de alguma maneira radicais, mas este é o mais radical entre os radicais. Excluindo objetos de cena e tramas tradicionais, André e Artur assinam a direção, a dramaturgia, a cenografia, a coreografia e são os magníficos performers utilizando basicamente seus corpos. A narrativa se completa com a potente música original de Federico Puppi, com as imagens criadas por Miguel Vassy e Laura Fragoso, a incrível iluminação assinada apenas por Artur e a importantíssima contrarregragem feita por Iuri Wander.

O espetáculo é onírico e subjetivo e se presta a muitas interpretações às quais procuro fugir para não dar a minha, porém, não posso me furtar de comentar a epifânica cena final que poderia representar um acasalamento entre seres vivos que até então um voava enquanto o outro criava raízes; ou a união dos seres em um único ser universal ou ainda a fusão do corpo com a alma (esta linda opção Artur Ribeiro soprou no meu ouvido ao final do espetáculo!).

 

Uma gratificante surpresa é oferecida ao público após os entusiasmados aplausos merecidamente recebidos por essa excelente dupla que não vinha a São Paulo desde 2017 quando apresentou Gritos no CCBB. 

ENQUANTO VOCÊ VOAVA, EU CRIAVA RAÍZES está em cartaz no SESC Santo Amaro até 02/04 com sessões às quintas e sextas às 21h, aos sábados às 20h e aos domingos às 18h.

Fotos de Nana Moraes e Renato Mangolin.

ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!! 

20/03/2023

 

domingo, 19 de março de 2023

CORO DOS AMANTES

Tiago Rodrigues (1977), ator / encenador / dramaturgo / produtor português de renome internacional, atualmente diretor artístico do Festival de Avignon, sacudiu o público da MITsp2020 com seu espetáculo By Heart; seu outro grande sucesso Sopro, também estava programado para o mesmo evento, mas foi cancelado por conta da pandemia que se instalou no mundo naquele fatídico março de 2020. Tive a oportunidade de assistir a uma apresentação filmada de Sopro que só confirmou o talento e a criatividade do encenador e dramaturgo.

Eis que agora, por iniciativa da Cia. Santa Cacilda temos a oportunidade de conhecer Coro dos Amantes, o primeiro texto teatral de Tiago Rodrigues escrito em 2007 e revisitado por ele 13 anos após a sua criação.

        Trata-se de texto bastante poético mostrando a relação de um casal, Ela e Ele, desde a interrupção abrupta da assistência de Scarface com Al Pacino na TV por conta de um grave ataque de asma sofrido por Ela até o dia a que todos um dia chegam. Os diálogos são mesclados por solos e por textos ditos em conjunto o que exige uma sincronia muito forte entre os intérpretes.

        Raquel Anastásia e Igor Kovalewski entregam-se de corpo e alma na interpretação de Ela e Ele, alternando momentos de tensão e tristeza a outros de felicidade, alegria e paz. A movimentação cênica assim como o gestual são criações de Raquel e Igor que também assinam a precisa direção do espetáculo. Para as belas cenas de textos ditos em conjunto contaram com as práticas de coro de Roberto Moretho e a assistência na parte vocal coube a Madalena Bernardes.

        A peça é emoldurada pela música do maestro Paulo Maron que é executada ao piano pelo compositor e que dialoga com a cena completando a intenção da mesma.

        A cuidadosa produção conta ainda com Marichilene Artisevskis na assinatura dos figurinos e com Jorge Leal no desenho e operação da luz.

        É muito difícil não se emocionar com o espetáculo em momentos como aquele da sala de espera ao lado de um centro cirúrgico onde àquele que espera “só resta a esperança” e com a belíssima cena final que, veja você, se passa em uma floresta!

        Coro dos Amantes é um espetáculo intimista, muito bem realizado nos mínimos detalhes e que merece uma melhor divulgação para que chegue até aquela/aquele espectadora/espectador sensível que com certeza irá se apaixonar e se emocionar com a saga desse casal tão próximo a cada um de nós.

        Para entrar em contato com a criativa dramaturgia de Tiago Rodrigues e para presenciar as luminosas interpretações de Raquel e Igor NÃO DEIXE DE VER Coro dos Amantes que está em cartaz no Auditório do 3º andar do SESC Pinheiros até 01 de abril de quinta a sábado às 20h.

        19/03/2023

       

sexta-feira, 17 de março de 2023

NEY MATOGROSSO – HOMEM COM H

Com o ressurgimento dos musicais, grassaram por nossos palcos muitos espetáculos biográficos, a maioria vinda do Rio de Janeiro, pincelando superficialmente a vida de cantoras e cantores com canções que fizeram parte do repertório dos biografados e que têm algo a ver com o momento apresentado em cena.

Espetáculos muito bem sucedidos como Somos Irmãs (1999), Tim Maia - Vale Tudo (2013) e Elis - A Musical (2014) foram acompanhados por dezenas de outros bastante fracos e descartáveis.

Ney Matogrosso – Homem Com H não foge à regra. Apresenta fatos notáveis da trajetória de Matogrosso ilustrados por canções que foram (ou não) interpretadas por ele e que se encaixam na ação.

O curioso é que a dramaturgia detalha desde a juventude do cantor passando pela procura de um lugar ao sol (ele queria ser ator), pelo tempo com os Secos e Molhados e pela carreira de solista, mas se detém abruptamente no início dos anos 2000 quando Ney gravou o disco com músicas de Cartola, encerrando o espetáculo com um belo texto de autoria de Caio Fernando Abreu homenageando o cantor. Nada se informa sobre a vida de Ney até os dias de hoje. Esse tipo de musical biográfico termina com a morte do biografado, mas neste caso ele está muito bem vivo e o texto poderia contemplar alguma coisa do período que vai do início dos anos 2000 até hoje.

Havia duas opções para os autores da peça: escrever um texto dramatúrgico se aprofundando no pensamento bastante sério e consistente do carismático cidadão Ney Matogrosso ou um texto leve salpicando superficialmente fatos de sua vida com canções. Claramente Emilio Boechat e Marília Toledo fizeram a segunda opção e a direção também de Marília em parceria com Fernanda Chamma vai na mesma direção seguindo a cartilha dos musicais biográficos.

O grande diferencial desse espetáculo é o notável desempenho de Renan Mattos como o biografado. Além de cantar muito bem no mesmo tom de voz de Ney Matogrosso, ele acompanha o mesmo no gestual e é bom intérprete. Matheus Paiva tem uma emocionante participação como o companheiro Marcos e Vinicius Loyola só convence quando canta (muito bem!) as canções do saudoso Cazuza.

Os outros participantes do elenco desempenham vários papeis e não há como não destacar a presença do grande ator Vitor Vieira que acostumamos ver em papeis sérios e dramáticos e que aqui chega até a dançar e a cantar.

A coreografia assinada por Fernanda Chamma é bastante esquemática e nada acrescenta à beleza do espetáculo, ao contrário do cenário de Carmem Guerra, bastante prático e funcional. Os belos figurinos do protagonista, inspirados naqueles de Ney, são de autoria de Michelly X, visagismo idem de Edgar Cardoso.

Um grande destaque para a excelente banda que acompanha todo o espetáculo e que tem direção musical de Daniel Rocha.

Ney Matogrosso – Homem Com H se propõe como divertimento, quase como um show, e atinge plenamente seu objetivo.

 

O espetáculo cumpriu longa temporada no 033 Rooftop- Teatro Santander em 2022 e agora está em cartaz do Teatro Procópio Ferreira até 23 de abril às sextas (20h30), sábados (15h30 e 20h30) e domingos (19h).

 

17/03/2023

 

 

sexta-feira, 10 de março de 2023

A HERANÇA – Parte 1

 

Tem vezes que meia peça vale por uma peça inteira e este é o caso dessa notável primeira parte do longo texto do dramaturgo norte americano de origem latina Matthew López que apesar de relativamente jovem (45 anos) tem profícua carreira como dramaturgo e roteirista, tendo inclusive escrito o texto de um musical ora em cartaz na Broadway baseado na deliciosa comédia Quanto Mais Quente Melhor (1959) dirigida por Billy Wilder.

A Herança foca sua ação no mundo gay nova iorquino (que poderia ser o brasileiro) pós aids contando a relação do tímido Eric (Bruno Fagundes) com o arrivista escritor Toby (Rafael Primot) e suas amizades incluindo um grupo de amigos (o elenco coadjuvante), o vizinho mais velho Walter (Marco Antônio Pâmio) e o também arrivista Adam (André Torquato). O personagem Henry (Reynaldo Gianecchini) aparece quase no fim desta primeira parte, após a morte do seu companheiro.

A ação linear é contada de maneira original onde interpretação e narração se confundem criando ambiente propício para o distanciamento e consequente reflexão do espectador.

A peça tem momentos marcantes como o poético e longo solo de Pâmio, merecedor de palmas em cena aberta, seguido da tocante cena de conjunto onde o elenco cita o nome de pessoas que foram contaminadas pela aids que fecha o primeiro ato da Parte 1. Corajosa também é a cena em que Adam (Torquato) descreve para um incrédulo e excitado Toby (Primot) o que lhe aconteceu em uma sauna gay em Barcelona.

Todo o elenco está afinadíssimo com destaque para o quarteto protagonista Pãmio (insuperável), Primot (excelente como o irrequieto e visceral Toby e dando um show em cena mesmo portando muletas, pois quebrou o pé no palco, um dia antes da estreia), Torquato (uma bem vinda surpresa a cada papel que interpreta) e, propositalmente por último, Bruno que tem a chance de se mostrar um grande ator como o inseguro e tímido Eric, além do grande mérito de ter trazido esse importante texto para nossos palcos.

A participação especial da querida Miriam Mehler deve acontecer na Parte 2, algo ansiosamente esperado por todos que admiram essa grande atriz.

Esta Parte 1 tem um intervalo de 15 minutos e depois uma pausa de 5 minutos, sendo que o total do evento ultrapassa as três horas. O mesmo deve acontecer com a Parte 2, mas garanto que ninguém olha para o relógio durante todo esse tempo, nem boceja, porque a peça  é muito boa e envolvente.

Direção primorosa de Zé Henrique de Paula.

Voltarei a esse importante espetáculo após assistir à Parte 2. 

A HERANÇA está em cartaz no Teatro Vivo até 30 de abril, com a seguinte distribuição das partes:

De 09/03 a 23/03 – Parte 1 de quinta a sábado às 20h e aos domingos às 18h.

A partir de 24/03 – Parte 1 às quintas (20h) e sábados (20h) e Parte 2 às sextas (20h) e domingos (18h).

Haverá duas sessões duplas nos dias 08/04 e 22/04 com a Parte 1 às 16h e a Parte 2 às 20h. 

10/03/2023

quinta-feira, 9 de março de 2023

ESTUFA – UM FALSO TESTEMUNHO

 

Foto de Priscila Prade

O abuso sofrido por centenas de mulheres pelo médium João de Deus e o descaso da justiça diante das denúncias são os temas desse importante espetáculo que traz no sub título a maneira como a justiça denominou as acusações feitas pelas vítimas.

Esses assuntos são tão prementes e graves que discutir como a ficção e a arte os trata torna-se secundário e até constrangedor.

Esse grupo de mulheres guerreiras e corajosas liderado pelo trio Lauanda Varone (idealizadora e intérprete), Angela Ribeiro (dramaturga) e Erica Montanheiro (diretora) é responsável por colocar em cena a traumática experiência vivida por Lauanda na Casa Dom Inácio de Loyola dos 13 aos 28 anos.

Para amenizar a exposição de tema de tal gravidade houve a opção de ambientar a cena em uma estufa repleta de belas plantas, não faltando, porém, a presença traiçoeira das carnívoras, metáfora quiçá, do homem predador.

A plateia dos homens é separada daquela das mulheres e na maior parte do espetáculo a atriz se dirige ao lado masculino, como que o responsabilizando pelos atos contra as mulheres.

A dramaturgia de Angela Ribeiro é vigorosa tanto na introdução quando a performer comenta sobre as plantas quanto na parte central do espetáculo que trata dos abusos por ela sofrido. Um corte nessa longa parte introdutória faria muito bem à montagem.

Erica Montanheiro realiza um maduro trabalho como encenadora, harmonizando de forma brilhante a movimentação cênica da atriz e de suas duas auxiliares proposta por Bruna Longo com a iluminação, como sempre muito criativa e bela, de Aline Santini; a direção de arte (inclui o cenário?) de Joyce Roma e a cuidadosa parte audiovisual da peça assinada por Julia Rufino.

Lauanda Varone tem interpretação visceral e apaixonada, como não poderia deixar de ser, pois trata-se de verdadeira catarse dos problemas e traumas que ela enfrentou na realidade. Na visão deste espectador ela deveria iniciar a apresentação em tom menor e ir num crescendo até o momento de falar dos abusos quando toda sua energia deveria estar à flor da pele. Iniciando o espetáculo em tom grandiloquente e de certa maneira jocoso, a atriz não tem muito para onde ir no momento da explosão dos fatos.

É bonita e muito útil a participação de Ana Tolezani e Eduarda Maria que atuam tanto na contrarregragem como emoldurando a cena.

A estreia do espetáculo no Dia Internacional da Mulher é emblemática e deve servir como um marco na luta pelos direitos de justiça não só para as mulheres, mas para todo ser humano.

Era secundário e constrangedor, mas assumi o risco e tratei desse importante trabalho que essas poderosas mulheres colocaram em cena. 

ESTUFA está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade de 3ª a 6ª às 20h e aos sábados às 15h e às 18h. Ingressos gratuitos.

09/03/2023

 

 

sexta-feira, 3 de março de 2023

BANCO DOS SONHOS – Primeira visita

 

Há muito o que se pensar, falar e/ou escrever sobre Banco dos Sonhos, uma obra de Kiko Marques que mais uma vez nos surpreende e nos tira do chão.

Conforme previ em matéria escrita dias atrás, o espetáculo revela muito mais do que uma sinopse pode conter. Na verdade, o universo criativo de Kiko Marques e da Velha Companhia é tão amplo que simples palavras dificilmente irão captar todas as nuances e camadas que esta instigante obra possui.

Uma segunda visita aos delírios de Benedita me deixarão mais à vontade para escrever sobre.

Por enquanto fica a sensação e a certeza de ser testemunha privilegiada do nascimento de mais um potente trabalho da Velha Companhia com interpretações absolutamente incríveis de Alejandra Sampaio, Virginia Buckowski, Maristela Chelala, Marília Santos, Valmir Sant’Anna, Mateus Matilde Menezes e Kiko Marques.

Alejandra e Kiko

Kiko e Marília

Valmir e Mateus

Maristela e Virginia

Virginia, Alejandra e Maristela já têm lugar garantido nas listas das melhores interpretações femininas do ano! Valmir se mostra ator cada vez mais poderoso com sua belíssima voz e Marília e Mateus são gratíssimas surpresas. A participação de Kiko em cena é pequena, mas extremamente significativa.

Visualmente belíssimo, o espetáculo conta com cenário e figurinos de João Pimenta, a abençoada iluminação de Marisa Bentivegna e as incríveis imagens criadas por vídeografismo e vídeo mapping por André Grynwask.

ADENDO: Conforme informação que acabo de receber de Marisa Bentivegna, a concepção do cenário é de Kiko Marques e não de João Pimenta como citado acima.

ADENDO 2: Acabo de receber mensagem "fresquinha" da querida Virginia Buckowski afirmando que o cenário da peça é de Kiko Marques e João Pimenta. 

E o que dizer da cena final com Benedita de costas e o espectador solitário sentado na outra plateia do teatro do SESC Pompeia? Você já presenciou muita coisa bela na vida, mas garanto que esta é uma daquelas insuperáveis e inesquecíveis. 

BANCO DOS SONHOS está em cartaz até 02 de abril no SESC Pompeia de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 18h.

ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL! 

03/03/2023

 

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

O BEIJO NO ASFALTO – 2023

 

Fotos de Kim Leekyung 

As rubricas de O Beijo no Asfalto são para o leitor da peça, tão estimulantes quanto os diálogos.

Pérolas como “em mangas de camisa, os suspensórios arriados, com um escandaloso revólver na cintura” para descrever o delegado Cunha e mais ainda “Amado Ribeiro tem toda a aparência de um cafajeste dionisíaco” aparecem já na primeira página do texto e seguem por toda a leitura tanto para descrever outros personagens como para definir ações dos mesmos (“Dona Matilde, apoplética de satisfação”, “Dona Judith, crispada de timidez”). Nelson não chama de black out o escurecimento das cenas, mas de TREVAS!

Realmente a leitura do texto é um espetáculo à parte e essas rubricas devem fazer as delícias do encenador e do elenco que irão montar a peça.

O diretor Bruno Perillo retorna agora com essa bem sucedida montagem estreada em 2019, com modificações no elenco: Lucas Frizo interpreta o Comissário Barros; Carolina Haddad assume com bastante propriedade o papel de Dália; Gustavo Trestini interpreta Aprígio com toda a angústia requerida pelo personagem e Iuri Saraiva tem a chance de mostrar mais uma vez o seu talento ao incorporar a “cafajestice dionisíaca” ao seu Amado Ribeiro. O restante do elenco permanece o mesmo de 2019 com algumas alterações no gestual e na movimentação cênica.

Escrevi sobre a apresentação de 2019 e, em linhas gerais, acredito que itens lá observados continuam válidos para esta de 2023. 

https://palcopaulistano.blogspot.com/2019/11/o-beijo-no-asfalto.html

Malgrado certo preconceito em relação ao homossexualismo, O Beijo no Asfalto (1961), junto com A Falecida (1953) e Toda Nudez Será Castigada (1965), forma, a meu ver, o melhor núcleo dentre as tragédias cariocas escritas por Nelson Rodrigues e a montagem de Bruno Perillo dignifica o texto, tanto em seus diálogos quanto em suas insuperáveis rubricas. 

O BEIJO NO ASFALTO está em cartaz no Teatro Itália apenas às quartas feiras às 21h até 26 de abril.

NÃO PERCA! 

02/03/2023