A
montagem que está sendo apresentada pela Cia. Coexistir de Teatro no Cemitério
do Redentor, mais do que nos fazer penetrar nas trevas em companhia de Orfeu e
do barqueiro Caronte é uma viagem pela mitologia grega uma vez que Orfeu
encontra, entre outros, Prometeu, Ariadne e Hermes em sua longa jornada pelo
reino dos mortos em busca da sua amada Eurídice.
No
belo texto escrito pela diretora Patrícia Teixeira e por Caio Bragha, o
tratamento é na segunda pessoa do plural, “como convém aos deuses e aos poetas,
diria Alberto Caeiro”. Esse tratamento reforça a solenidade das falas e em
nenhum momento soa artificial. Outro belíssimo momento que poderia soar falso é
aquele em que Orfeu ao passar pelo Tártaro e ouvir o lamento dos seus
habitantes entoa:
-
Por amor andei já/Tanto chão e mar/Senhor, já nem sei.
Se o amor não é mais/Bastante pra
vencer/Eu já sei o que vou fazer/
Meu Senhor, uma oração/Vou cantar
para ver se vai valer.
Quem diria que a canção Reza de Edu Lobo e Ruy Guerra iria se
encaixar tão bem na boca do atormentado herói grego? E desse modo os autores
construíram um texto que em momento nenhum soa pedante ou pretensioso. Tudo
flui harmoniosamente nos conduzindo a profundas reflexões sobre o significado
da vida e da morte.
A
encenação de Patrícia Teixeira é de uma beleza comovente. O público é acolhido
na porta do cemitério e a seguir adentra o primeiro espaço cênico onde o
simpático grupo vestido com roupas claras o recebe sorrindo e fazendo uma breve
introdução do que virá a seguir.
Entregando
o óbolo a Caronte este se certifica que somos almas mortas e dá permissão para
que iniciemos a viagem em companhia do único ser vivo no barco: Orfeu. Pelas
alamedas do cemitério sobriamente iluminadas (belo trabalho de Beato Tem Prenafeta)
fazemos o percurso indicado no mapa abaixo:
Entramos
em contato com as moiras, passamos pelo Érebo (equivalente ao purgatório da tradição
católica), cruzamos penosamente o Tártaro (equivalente ao inferno) ao som dos
lamentos lancinantes dos seus habitantes e finalmente chegamos aos Campos
Elíseos (equivalente ao paraíso) onde ninfas tomam vinho e fazem amor com
Dionísio. Ao chegar ao Palácio existe o confronto de Orfeu com Hades onde o primeiro
implora pela volta da amada ao mundo dos vivos. Por interferência de Perséfones
o Rei concorda desde que Orfeu não se volte para traz durante esse retorno.
Orfeu
conseguirá seu intento? Não olhará para traz? A cena final do espetáculo tem
tamanho impacto que seria verdadeiro crime quebrar o encanto e descrevê-lo
para quem ainda vai assisti-lo.
O
elenco é bastante homogêneo e tem excelente rendimento em cena. Pela relevância
das personagens cabe destacar os trabalhos de David Carolla (Orfeu), Caio
Bragha (Caronte), Roberto Farias (Prometeu) e principalmente Carla Dias
(Hermes) que dá o toque de humor ao denso espetáculo. Destaque também para a
voz poderosa de Cleber Martins como Hades.
O
Teatro da Vertigem já havia nos conduzido a igrejas, hospitais, presídios e ao
Rio Tietê; agora Patrícia Teixeira e sua Cia. Coexistir nos levam a um
cemitério, o único lugar onde poderia ser encenada a sua peça. Experiência
única, muito difícil de ser traduzida em palavras.
A
JORNADA DE ORFEU já se inscreve como um dos melhores momentos da temporada
teatral de 2015 e precisa ser visto por quem ama o teatro e a vida, pois é
preciso entender a morte, superar a perda e cumprir o luto para que se possa valorizar
a vida.
Em
cartaz no Cemitério do Redentor aos sábados às 21h e aos domingos às 20h até 26
de abril. Av. Doutor Arnaldo 1105 (esquina da Rua Cardeal Arco Verde).
Telefone: 3493-2452.
01/04/2015
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