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sábado, 27 de outubro de 2018

NAVALHA NA CARNE NEGRA DE ELZA




        Dois espetáculos em cartaz na cidade revelam grande potência no que se refere à defesa dos direitos humanos e em especial àqueles das mulheres e dos negros e têm muito mais coisas em comum do que aparentam ter: ambos, sem ser panfletário, vão direto ao ponto de maneira clara, objetiva e com muita arte, cada um à sua maneira. Uma peça de teatro de 1967 e a vida de uma grande cantora negra combatente pela vida são as bases para Navalha na Carne Negra e Elza, respectivamente.


        Navalha na Carne Negra. A montagem de José Fernando Peixoto de Azevedo para o texto de Plínio Marcos trás três negros nos papeis de Neusa Sueli, Vado e Veludo e o detalhe que faz toda a diferença na encenação é o tratamento dado ao personagem do cafetão Vado, sempre mostrado como o machão violento e dono da situação em outras montagens. Aqui ele é mais um perdido naquela noite suja e também vítima do submundo onde nasceu e cresceu; sua única linguagem é a violência, que na verdade demonstra sua fragilidade e insegurança. O homossexual Veludo é o mais esperto dos três e o que melhor sabe tirar proveito da situação em que eles vivem.
        É absolutamente sensacional o desempenho de Lucelia Sergio. Suas expressões faciais são impressionantes e muito bem visualizadas pelos closes permitidos pela captação em vídeo. Trabalho digno de constar na lista das melhores interpretações femininas de 2018. Raphael Garcia interpreta Veludo com muita ironia e garra e a apatia de Rodrigo dos Santos vem de seu personagem (Vado) e não de sua interpretação. Três trabalhos exemplares que nada ficam a dever àqueles de Ruthinéa de Moraes, Edgar Gurgel Aranha e Paulo Villaça na antológica montagem de 1967 dirigida por Jairo Arco e Flexa.
        A direção dos atores é valorizada pelo uso da câmera que capta detalhes das expressões de cada um, sendo que a “camera woman” Isabel Praxedes é quase uma quarta personagem da peça, tanto que ela se incorpora totalmente à ação. Azevedo usa também o recurso de repetir algumas cenas no intuito de enfatizar o que elas têm a dizer. O dispositivo cênico também de autoria do diretor é formado por duas telas que mostram as imagens captadas pela câmera, poucos adereços e uma cama bonita demais para o hotel de quinta categoria onde se passa a ação.


        Elza a princípio parece ser mais um musical biográfico como tantos que grassam em nossos palcos, a maioria proveniente do Rio de Janeiro, mas é muito mais. A partir do texto escrito por Vinicius Calderoni e de um roteiro de canções perfeito (a ficha técnica não especifica a autoria desse roteiro) que comenta e costura a ação, Duda Maia cria um musical só com mulheres (sete atrizes e seis musicistas) pautado em movimentação cênica vibrante das atrizes (marca registrada de Duda, haja vista seu trabalho em Auê), uso de adereços baratos e criativos (baldes e alguns carrinhos), cenário de André Cortez e excelente direção musical comandada por Pedro Luís. O texto mostra as agruras vividas por Elza Soares e sua luta constante para enfrentar os limões que a vida lhe deu, sempre os transformando com muita garra em uma limonada. Peço perdão pela frase clichê, mas é a que mais se adequa a essa grande mulher. São sete atrizes/cantoras interpretando Elza e as pessoas que passaram pela sua trajetória, todas elas excelentes tanto nas falas como no canto. Vozes amplas e sonoras que ecoam esplendorosamente no grande auditório do Teatro Paulo Autran do SESC Pinheiros. Larissa Luz é o destaque natural por incorporar a personagem de maneira impressionante, mas seria injusto não mencionar o belíssimo trabalho das outras seis intérpretes e das musicistas.
        A reação do público é emocionante com aplausos de pé em vários momentos do espetáculo.

        As duas peças, como se vê, têm muito em comum no conteúdo, apesar de diferirem totalmente na forma e no desfecho. Enquanto Navalha na Carne é bastante pessimista concluindo que aquela vida não passa de “um monte de bosta fedida”, Elza, por outro lado, mostra que apesar de todos os tombos sofridos, a protagonista (e a mulher na vida real) sempre “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Dois grandes espetáculos para pensar o tempo presente.

        NAVALHA NA CARNE NEGRA – Cartaz do Centro Cultural São Paulo às sextas e aos sábados (21h) e aos domingos (20h). Até 11/11.

        ELZA – Cartaz do SESC Pinheiros de quinta a sábado (21h) e domingo (18h). Até 18/11.

        27/10/2018       

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

AI - 5




        Ontem dediquei o dia a relembrar um dos momentos mais tenebrosos da nossa história recente: a promulgação do ato institucional número 5 pelo General Costa Silva, então presidente da ditadura que nos foi imposta pelo golpe civil-militar de abril de 1964. É de conhecimento geral os verdadeiros anos de terror provocados pela aplicação de tal ato e os dois eventos a que assisti tratam de sinalizar a ato em si e suas consequências. Uma exposição e uma peça de teatro que se complementam e que curiosamente foram idealizadas e realizadas em separado. Organizadas por dois visionários, dois Paulos de sobrenomes muito parecidos Miyada (exposição) e Maeda (peça), os dois acontecimentos são de suma importância para o momento que estamos vivendo, momento esse que dependendo do resultado das eleições dp próximo domingo pode fazer reviver os anos de terror da ditadura instalada no Brasil por 20 anos (1964-1985).

        AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar é a exposição em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até o próximo dia 04 de novembro. Por meio de documentos e de obras de arte (cinema, teatro, artes plásticas) realizadas no período testemunhamos as barbaridades ocorridas como tortura, desaparecimento e morte de opositores do regime, assim como, a censura imposta aos artistas que corajosamente tentavam denunciar o que estava acontecendo. A lista dos artistas participantes da exposição inclui cerca de 100 nomes.

        AI-5 - Reconstituição Cênica da Reunião do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 1968. Com esse longo título Paulo Maeda coloca no palco os integrantes de tal reunião que sob a liderança de Costa e Silva aprovaram o ato. Trata-se de poderoso exemplo de Teatro Documentário que estarrece o mais preparado espectador. Sim, nossos brasileiros são capazes disso, me obrigando a discordar do conceito de “homem cordial” do Mestre Sérgio Buarque de Holanda. Com o intuito de amenizar a aridez do texto e torná-lo mais atual o encenador permite a introdução de cacos e brincadeiras relativas ao presente durante os discursos dos ministros, fato que enfraquece a proposta, uma vez que não é preciso nada mais que o próprio texto para mostrar como estamos infelizmente, próximos daquela realidade, haja vista os discursos de Costa e Silva e de Médici, que são ditos tal como ocorreram. A figura do vice-presidente Pedro Aleixo, único opositor do ato, é mostrada de forma patética e muito bem representada pelo ator Paulo Goya. A ficha técnica apresentada no mini programa da peça não mostra a relação ator/personagem, mas cabe destacar o trabalho do ator que representa Costa e Silva.

        LEMBRAR É RESISTIR. É importantíssimo que jovens vejam a exposição e a peça e conheçam um pouco desse lado escuro da nossa história e que os mais velhos relembrem como foi duro viver naqueles anos de chumbo. QUE A HISTÓRIA NÃO SE REPITA! E para tal me vem à memória o nome de uma música do Ivan Lins: DEPENDE DE NÓS!

        AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar é a exposição em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até o próximo dia 04 de novembro de terça a domingo das 11h às 20h. Ingressos grátis.

        AI-5 - Reconstituição Cênica da Reunião do Conselho de Segurança Nacional de 13 de dezembro de 1968. Cartaz do Casarão do Belvedere toda terça feira às 20h30 até dezembro de 2018. Pague quanto puder.
        Obs: O dia 13 de dezembro de 2018, data oficial do aniversário de 50 anos do AI-5 cai em uma quinta feira e seria uma data politicamente excelente para a apresentação do espetáculo. Fica a sugestão.
       
        24/10/2018
         


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

AS BRASAS



        Com esse título o húngaro Sándor Márai (1900-1989) escreveu um dos seus mais importantes e populares romances. Trata-se do encontro depois de mais de 40 anos de dois homens que foram amigos íntimos e cujo motivo da separação é algo ainda não esclarecido. O romance escrito em boa parte na forma de diálogo não deve ter dado muito trabalho para Duca Rachid e Julio Fischer fazerem a transposição para a linguagem teatral, aliás, muitíssimo bem realizada.
        Os diálogos envolventes são ditos com maestria pelos dois atores Herson Capri e Genézio de Barros que interpretam Henrik, o visitado e Konrad, o visitante; respectivamente. O visitado tem uma série de questões pendentes com o visitante que envolve uma caçada e uma mulher (Kriztina, que foi esposa do primeiro). Além de certas rememorações do passado, a peça passa-se em tempo real durante a breve visita de Konrad a Henrik. Há uma bela e discreta participação da cellista Nana Carneiro da Cunha que além de tocar a trilha original de Marcelo Alonso Neves faz intervenções como a esposa Kriztina.
        A ação da peça passa-se no castelo habitado por Henrik e que foi palco no passado dos fatos relembrados nessa noite onde deveriam acontecer revelações, mas que por opção do autor, elas não acontecem ficando as mesmas na imaginação do leitor/espectador.


        Não tenho nada contra atualizar ambientes cênicos quer para dar um toque contemporâneo à montagem, quer por mera economia de produção, mas é necessário haver harmonia e certa beleza, coisa que não acontece com o cenário de Bia Junqueira formado por tubos escuros, sacos plásticos pretos, uma mesa flutuante, uma vasta faixa iluminada que representa uma lareira e duas poltronas. No meu modo de ver esse cenário empobrece a bela montagem dirigida com sobriedade por Pedro Brício. A iluminação de Renato Machado atenua esse problema.

Capa do livro editado pela Companhia das Letras que sugere um cenário para o castelo de Henrik.

        Com pouco menos de uma hora o espetáculo de Pedro Brício prende a atenção pela força do texto, pelas interpretações de Herson Capri e de Genézio de Barros, pela intervenção musical de Nana Carneiro da Cunha e pela movimentação dos atores no espaço cênico que nunca deixa a ação se tornar monótona.

        AS BRASAS está em cartaz no SESC Santana às sextas e aos sábados às 21h e aos domingos às 18h até 04 de novembro. NÃO DEIXE DE VER.

        15/10/2018

domingo, 14 de outubro de 2018

CARMEN – A GRANDE PEQUENA NOTÁVEL – O RETORNO



REDONDINHA, REDONDINHA

        Na manhã de ontem levei minha neta Laura de cinco anos no CCBB para assistir ao espetáculo sobre Carmen Miranda dirigido por Kleber Montanheiro, ao qual eu já havia assistido na estreia. Escrevi matéria na ocasião em meu blog http://palcopaulistano.blogspot.com/2018/09/carmen-grande-pequena-notavel.html, elogiando o trabalho, mas apontando algumas arestas. Menos de um mês depois as arestas desapareceram por completo e o espetáculo está redondinho. O elenco cresceu muito estando bem mais harmonioso, além de se deslocar com maior desenvoltura pelo pequeno palco do CCBB movimentando as seis letras que fazem belo efeito ao formarem palavras que têm a ver com a ação, mas que insistem em esconder as belas pinturas de Victor Grizzo. As intervenções humorísticas adquiriram forma mais suave, moldando-se à delicadeza que é o tom da montagem; nesse aspecto cabe lembrar o momento do “Rebola Bola” na qual Luciana Ramanzini rouba deliciosamente a cena, sem tirar o brilho da interpretação de Amanda Acosta.
        Amanda Acosta é o acontecimento deste 2018! Indicada ao prêmio de melhor atriz do primeiro semestre pela APCA por seu maravilhoso desempenho em Bibi - O Musical volta a ter um desempenho fenomenal podendo repetir a dose nas indicações do segundo semestre.
        A cena que revela a morte da grande cantora é belíssima e tem ótima resolução cênica embalada por um dos grandes sucessos de Carmen.
        CARMEN – A GRANDE PEQUENA NOTÁVEL está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil aos sábados às 11h até 26 de janeiro de 2019. Espetáculo que nos traz muito amor e muito humor nestes tempos tão conturbados. Leve as crianças e não se emocione se for capaz.
        Ah! A Laura adorou o espetáculo!

        14/10/2018

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sábado, 6 de outubro de 2018

AS IRMÃS SIAMESAS



        Em nome da contemporaneidade tenho visto muitos Shakespeares histéricos, Tchekhovs mais que gritados; urrados. Será que é necessário berrar um texto clássico para provar que ele é atual e reflete essa realidade de ódio que o Brasil está vivendo? Vejo um grande equívoco nessa postura e foi com o desagradável eco dessas últimas experiências que me dirigi ao Teatro Aliança Francesa para assistir a As Irmãs Siamesas cujas atrizes eu não conhecia e minhas únicas referências eram o autor José Rubens Siqueira (Prêmio APCA de melhor autor em 1987 com esta peça) e o diretor Sébastien Brottet- Michel (ator nos dois espetáculos do Théâtre du Soleil que foram apresentados em São Paulo em 2007 e 2011).
        Que diferença! Ao se apagarem as luzes da plateia a silhueta de duas mulheres sobre um fundo de cor bege clara já antecipa a beleza e a delicadeza do que está por vir.
        Duas irmãs conversam após a morte da mãe numa cidade do interior. Uma se emancipou e foi morar em São Paulo, a outra permaneceu na cidade do interior, casou, teve um filho, ficou viúva e cuidou da mãe até a sua morte. Em um jogo de atração e rejeição as duas conversam sobre o que a vida fez com elas remexendo memórias e as roupas de um baú. Dentro desse baú há outro menor que contém objetos e cartas que foram da falecida. A própria casa representada no cenário por um grande baú é a principal caixa de memórias dessas duas mulheres que, cada uma à sua maneira, são muito solitárias e frágeis.
        A encenação de Brottet-Michel prima pela delicadeza. Tudo é harmonioso desde os figurinos de Kene Heuser cujas cores combinam com as nuances que o cenário de Marisa Rebolo vai adquirindo por meio da belíssima iluminação de Rodrigo Alves. Creio que alguém que não entendesse uma palavra do espetáculo se encantaria com a movimentação das atrizes nesse espaço e com a envolvente trilha sonora de Wayne Hussey.


        E por falar em atrizes, mais uma grata surpresa. Além de terem o aspecto físico apropriado para seus papeis (Nara Marques é bastante alta e exuberante e Cinthya Hussey é bem mais baixa e tem aparência frágil), elas têm excelente desempenho jogando muito bem com as mudanças de estado de espírito requeridas pelas personagens. Não há a mais forte ou a mais fraca e em cada momento é uma delas que “está ganhando o jogo”.  
        As Irmãs Siamesas é de uma beleza ímpar e conta bonita história de amor fraternal que um cordão umbilical insiste em manter. Excelente antídoto para o veneno que a realidade está nos injetando. IMPERDÍVEL!

        AS IRMÃS SIAMESAS está em cartaz no Teatro Aliança Francesa às sextas e aos sábados às 20h30 e aos domingos às 19h.

        06/10/2018