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sábado, 18 de abril de 2020

MEMÓRIAS DE UM ESPECTADOR APAIXONADO


 
 
Grandes descobertas musicais e culturais através do teatro e do cinema.

         Nestes tempos de recolhimento nossas lembranças mais remotas vêm à tona e depois que escrevi sobre como descobri Begin the Begin e Cole Porter, tenho pensado muito sobre como a música teve fundamental importância em minha formação de receptor/espectador.  Uma viagem desde a primeira infância até os dias de hoje demonstram como tomei contato e descobri a beleza da música em muitos espetáculos a que assisti.
 

         Eu morava na Rua Joaquim Ferreira, travessa da Rua Carlos Vicari, próximo        de onde hoje está o SESC Pompeia e ia constantemente visitar a Nonna Carmella, minha avó paterna que morava do outro lado da rua, onde hoje está o supermercado Sonda.        Todo sábado o Nonno Mimi (apelido de Domenico) jogava baralho com o Benjamin, o Menegho (também apelido de Domenico) e outros companheiros e lembro que eles fumavam muito tanto charuto como cachimbo e cuspiam numa escarradeira de madeira cheia de areia; o cheiro daquele fumo me vem ao olfato até hoje, setenta anos depois, assim como a visão nada agradável daquela escarradeira.
         Eles jogavam baralho na copa enquanto eu e a nonna ficávamos na cozinha ouvindo rádio e dividindo uma garrafinha de guaraná da Brahma, que se distinguia daquele da Antartica por ser mais azedinho (agora o paladar me trouxe outra lembrança!). A nonna ouvia uma novela que tinha o patrocínio do Óleo de Peroba e o prefixo da mesma era uma música lacrimosa chamada A Lenda do Beijo. Essa talvez seja a lembrança musical mais antiga que eu tenho. Devia ter cerca de sete anos e já tinha experiência sensorial considerável!
 

         Nessa época eu fazia de vitrola uma caixa vazia de sabão Campeiro na qual rodava discos de papelão cantando para minha outra nonna (Agnesa) ouvir.
         Mais tarde meu pai comprou uma vitrola de verdade e com ela os primeiros bolachões em 78 rpm: A Ilha das Lágrimas (música muito triste cantada em italiano que levava meu pai, em geral durão e circunspecto, até as lágrimas e que, apesar de muito pesquisar, nunca consegui encontrar), canções de Nicola Paone alegres (Ue, Paesano/Signora Maestra) ou tristes (Babbo, si me vuoi benne, damme la mamma mia).
         Certo dia ele chegou com dois discos que continham o Bolero de Ravel em três dos lados e O Poeta e o Camponês no quarto lado. Aquilo foi uma revelação para mim e posso dizer que essa foi a minha verdadeira entrada para o mundo maravilhoso da música.
 

 
         As novelas da Rádio São Paulo que minha mãe ouvia eram recheadas de músicas dramáticas para embalar as emoções que elas queriam transmitir e muito mais tarde descobri que muitas dessas músicas pertenciam a obras de Tchaikovsky e, quem diria, Mahler!
          Preciso confessar que a descoberta da música clássica tem muito a ver também com os dois LPs ‘S Concert de Ray Conniff que apresentavam versões pobres e popularescas de grandes obras clássicas, mas que me despertaram a curiosidade para procurar conhecer essas obras no original.
 

         E a memória vai trazendo outras situações onde a descoberta de certas músicas me trouxe grandes surpresas e alegrias.

         Como não se lembrar da primeira vez que ouvi as canções de Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal ao assistir extasiado a Arena Conta Zumbi em 1965? E no mesmo ano a descoberta de Chico Buarque com a trilha de Morte e Vida Severina?
 

         Em 1967, a antológica encenação de Marat/Sade por Ademar Guerra vinha acompanhada da magnífica trilha de Richard Peaslee, curiosamente não creditada na ficha técnica do espetáculo. Segundo Yan Michalski “essa música ocupa um lugar de enorme destaque dentro do espetáculo, sendo mesmo responsável por uma parte importante de sua magia”. Durante anos cantarolei essas canções, até que tive acesso à sua versão original presente no filme homônimo de Peter Brook.
 
 
            Em 1971 levei um gravador portátil no Circo Irmãos Tibério para gravar as belas músicas de Múrilo Alvarenga Júnior que compunham a trilha de O Evangelho Segundo Zebedeu de autoria de César Vieira.
 


 
         Encantado com a trilha de O Balcão, a encenação histórica de Victor Garcia realizada por Ruth Escobar em 1970, tive que fazer uma peregrinação por lojas de disco (as saudosas Breno Rossi e Bruno Blois) para descobrir que se tratava da Missa da Coroação de Mozart.
 

         De uma maneira ou de outra tenho todas essas músicas comigo para ouvi-las e relembrar os grandes momentos em que tomei conhecimento delas. Uma exceção e grande frustração é a hipnótica trilha de O Terceiro Demônio (1972) de Carlos Hartlieb e Hermes de Aquino que não foi gravada e que nunca mais tive acesso. Recordo-me agora de outra trilha potente realizada com instrumentos de percussão curiosamente composta por um italiano, Frederico Pietrabruna, encenador do estranho e malogrado Os Gigantes da Montanha em 1969; esta também só ficou na lembrança (eu havia feito uma gravação amadora da mesma que se perdeu entre tantas fitas cassete que me desfiz)
 

         Em relação a gravações amadoras realizadas dessa maneira em salas de teatro ou de cinema, fiz o mesmo com a trilha do filme Um Dia, Um Gato (1963). Essa música (um dos mais belos solos de fagote que já ouvi em toda minha vida) tornou-se uma verdadeira obsessão e cinquenta anos depois eu ainda estava procurando por ela em lojas de disco de Praga quando visitei a República Tcheca em 2002. Tudo em vão. Pouco reprisado no cinema, só realizei meu sonho quando foi lançado o DVD com o filme que chego a colocar no DVD player só para ouvir a música durante os créditos iniciais.
 

         Em 1985 foi a vez de descobrir outra maravilha. Uma música mágica era o fundo musical da entrevista com Jorge Luis Borges realizada por Walter Salles para o programa Conexão Internacional na extinta TV Manchete. Que música era aquela? A Mariana lembra que dias depois ao assistir ao filme Koyaaniskatsi junto com ela no antigo Cine Majestic (hoje dividido nas três salas do Espaço Itaú-Augusta) em certo momento eu dei um pulo na poltrona e exclamei que aquela era a música que eu estava procurando. Vi nos créditos que se tratava de Philip Glass e a partir daí virei um grande admirador dele e da música minimalista.
 

         Em 1989 reencontrei a emocionante música dos filmes bíblicos tão em voga nos 1950. No memorável e incomparável Paraíso Zona Norte, Antunes Filho ilustrou os dramas das personagens rodrigueanas Zulmira e Tuninho de A Falecida e Seu Noronha, Aurora e Silene de Os Sete Gatinhos com músicas de Os Dez Mandamentos, Ben-Hur e O Manto Sagrado e é inacreditável que mistura tão insólita tenha dado tão certo.
 

         Da icônica Walk on the Wild Side de Lou Reed eu tomei conhecimento no Rio de Janeiro em 1995 coreografada pela divina Eloina no show de travestis A Noite dos Leopardos.
 
 
 
         Que eu me lembre a última música que conheci através de uma peça de teatro foi a linda Why Does My Heart Feel So Bad de Moby que ilustrava magnificamente a emocionante cena final de Os Sete Afluentes do Rio Ota em 2003.
 


         Gonzaguinha dizia que a arte da vida está em sermos eternos aprendizes e eu nos meus 76 anos quero ainda muito me surpreender com o que a arte tem para me oferecer, quer seja através da música, que é o objeto desta matéria, mas também do teatro, do cinema, da dança, da literatura, das artes plásticas, da fotografia e da escultura.

         Vivemos tempos difíceis, mas como escreveu Nietzsche, a arte existe para que a realidade não nos destrua.
 
         ARTE É CULTURA!

         18/04/2020

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