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segunda-feira, 30 de maio de 2022

A MORTE E A DONZELA

 

 

Quem sofreu o peso das botas de uma ditadura, mesmo que não tenha sido preso ou torturado, compreenderá o porquê dos traumas e da revolta da personagem Paulina na peça A Morte e a Donzela.

Escrita em 1991 nos estertores do terrível governo Pinochet no Chile a peça mostra um casal que sofreu os desmandos do regime e que é visitado por um senhor que é reconhecido pela voz como o médico que comandou as torturas impostas à mulher Paulina. O marido Gerardo faz parte de um Comissão da Verdade que irá investigar os   envolvidos com os crimes do antigo regime e procura ter uma atitude mais ponderada comparada à violenta reação da esposa.

O autor Ariel Dorfman nasceu em 1942 na Argentina, passou a infância nos Estados Unidos e depois viveu no Chile até a derrubada do governo Allende; como exilado passou algum tempo fora do Chile até o retorno em 1991 quando escreve de forma contundente e direta sobre as consequências dos horrores da ditadura chilena na peça A Morte e a Donzela.

Há exatos 30 anos a peça foi montada no Brasil por José Wilker, tendo Xuxa Lopes no papel de Paulina, Tony Ramos como o marido Gerardo e Otávio Augusto como o médico Roberto Miranda e não havia ocasião mais propícia para que ela voltasse à cena, haja vista o momento delicado e perigoso pelo qual passamos com o atual presidente muito propenso a reviver os tempos ditatoriais no país.

A iniciativa partiu dos jovens integrantes da Laia do Teatro, egressos do Teatro Escola Célia Helena e a direção coube a Laerte Mello.

A produção modesta, mas muito bem realizada, conta com cenários e figurinos do diretor e tem como principal trunfo a contundência do texto, defendida bravamente pelos três jovens atores.

André Barreiros interpreta Roberto Miranda, o suposto torturador de Paulina, inicialmente jovial e simpático nas conversas com Gerardo e tenso e defensivo quando confrontado com as reações da mulher. O inicialmente conciliador Gerardo é representado com dignidade por Victor Barreto. Toda a tensão da trama é conduzida pela personagem Paulina. Ao ver em cena, aquela atriz, tipo mignon, com voz delicada achei que ela não iria dar conta do recado. Ledo engano! Aline Pimentel domina a cena com muita energia e talento dando total verossimilhança às reações violentas de uma mulher que foi ultrajada por um regime odioso e repressor, representado ali por Roberto Miranda.

O final aberto proposto pelo diretor Laerte Mello é um grande achado da montagem.

Todos, principalmente os jovens, deveriam assistir a este importante espetáculo, uma verdadeira lição sobre os perigos de uma ditadura e suas terríveis consequências. 

Em cartaz no Espaço Parlapatões até 26 de junho aos sábados às 16h e aos domingos às 19h. 

30/05/2022

terça-feira, 24 de maio de 2022

CABARET DOS BICHOS - PRESENCIAL

Foto de Ronaldo Gutierrez

A DUPLA

Ela tem o dom e o talento para a linguagem musical e ele tem o dom e o talento para a linguagem cênica. A junção dos dons e os talentos da dupla Fernanda Maia e Zé Henrique de Paiva já nos ofereceu dezenas de espetáculos memoráveis, entre eles, Senhora dos Afogados (2007), As Troianas (2009), Nossa Classe (2013), Preto no Branco (2014), Urinal (2015), Chaves (2020), Sweeney Todd (2022) e os muito bem sucedidos virtualmente Cabaret dos Bichos e Brenda Lee e o Palácio das Princesas em 2021.

Eis que para o gaudio do público paulistano os dois últimos têm suas estreias presenciais no aconchegante Teatro do Núcleo Experimental totalmente remodelado na forma de um cabaré para abrigar os dois espetáculos. Cabaret dos Bichos estreou em 23/05/2022 e Brenda Lee estreia em 09/06/2022.



CABARET DOS BICHOS


Foto de Arnaldo D'Ávila

Teatro que é teatro de verdade pressupõe o olho no olho e as respirações em conjunto dos atores e dos espectadores e esse espetáculo que teve uma bela versão on line (vide matéria: (https://palcopaulistano.blogspot.com/2021/10/cabaret-dos-bichos.html) realiza-se plenamente agora na versão presencial.

A montagem presencial reforça o caráter político da obra de George Orwell (1903-1950) com várias referências à situação caótica do nosso país em função desses seres abjetos que estão no poder e oferece um final impactante que deixarei de escrever sobre, para não ser um desmancha prazer (ou um “spoiler” como preferem alguns).

O espaço na forma de um cabaré com mesinhas e cadeiras onde os espectadores se acomodam (há também uma arquibancada ao fundo para abrigar mais público), orquestra (vibrante e maravilhosa!) ao vivo e ambiente esfumaçado é o ideal para abrigar a história da granja onde ocorre uma revolução dos animais provocada pelos maus tratos e opressão impingidos pelos humanos. A cenografia de Cesar Costa e a iluminação de Fran Barros são os maiores responsáveis pela criação desse ambiente que envolve o espectador desde sua entrada no mesmo.

Um elenco jovem e afinado em conjunto com uma saborosa e afinada banda liderada por Fernanda Maia é responsável por nos contar a história dessa revolução e suas consequências.

É difícil escrever sobre este ou aquele componente do elenco preparado por Inês Aranha: Amanda Vicente, Bruna Guerin, Dan Cabral, Dennis Pinheiro, Fabiana Tolentino, Flávio Bregantin, Fernando Lourenção e Pedro Silveira são todos ótimos e cada um tem um momento de destaque, mas não há como salientar, pelas próprias características da personagem do narrador, o brilhante desempenho de Pedro Silveira que também interpreta o Major Porco (na versão on line, Zé Henrique interpretava esse personagem).  A notar também a importante participação especial de Rodrigo Caetano ao final do espetáculo.

Pedro Silveira - Foto de Ronaldo Gutierrez

A ficha técnica revela as/os autoras/autores do ótimo visagismo (Louise Hélène), dos formidáveis cabelos e maquiagens (Dhiego Durso), da criativa coreografia (Gabriel Malo) e da direção audiovisual do sempre competente Laerte Késsimos, como também os importantes assistentes de cada uma dessas funções e os operadores de som e luz.

Tudo isso orquestrado por Zé Henrique de Paula que assina a dramaturgia, as letras e a direção e por nossa Midas Fernanda Maia responsável pela bela música original e pela direção musical.

Ficha técnica para nenhum Jerome Robbins ou Bob Fosse ou Stephen Sondheim botarem defeito.

SALVE NOSSO TEATRO que nessas boas mãos NUNCA VAI MORRER! 

CABARET DOS BICHOS está em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental até 22 de junho às segundas, terças e quartas às 21h com duração aproximada de duas horas (incluindo 15 minutos de intervalo)

VAI PERDER??? 

24/05/2022

 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

JACKSONS DO PANDEIRO - PRESENCIAL

 

Quem conhece a Barca dos Corações dos Partidos sabe o que está perdendo não indo assistir a Jacksons do Pandeiro, quem não conhece fica aqui um conselho: corra para adquirir o seu ingresso porque a temporada é curta e você está arriscando a perder um dos mais deliciosos espetáculos da temporada.

Tão solar quanto as canções do paraibano Jackson do Pandeiro (1919-1982) o espetáculo é ideal para aquecer essas frias noites invernais que tomaram conta, em pleno outono, da cidade de São Paulo.

Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios, Renato Luciano e Ricca Barros, componentes da Barca dividem a cena com os convidados Everton Coroné, Lucas dos Prazeres e Luiza Loroza. Todos dançando, cantando, tocando muitos instrumentos e se equilibrando na complexa coreografia criada pela genial Duda Maia que faz com que o grupo circule freneticamente pelos tablados do cenário criado por André Cortez. Os belos figurinos criados por Kika Lopes e Rocio Moure reluzem na iluminação assinada por Renato Machado, sendo um regalo para os olhos. As canções são entremeadas por breves textos assinados por Braulio Tavares e Eduardo Rios, responsáveis pela dramaturgia da peça. É importante destacar a direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos, este último um excelente multi instrumentista e dono de voz poderosíssima.

Os sambas, forrós, baiões e cocos de Jackson do Pandeiro são entremeados por algumas outras canções compostas pelo grupo que têm tudo a ver com os ritmos e letras criados por ele. Aqui a festa é para os ouvidos.

Como pode se notar, tudo é festa em Jacksons do Pandeiro. Se tato, olfato e paladar não são diretamente contemplados, o nosso sexto sentido que envolve alma e emoção é o grande premiado através de nossos olhos e nossos ouvidos.

A plateia, incompreensivelmente não lotada numa noite de estreia, ovacionou o espetáculo por mais de cinco minutos dando a impressão que se tratava de uma lotação do Maracanã em jogo do Fla Flu.


Uma surpresa ao final foi a presença na plateia de Fábio Enriquez, que não pertence mais ao grupo. Na saída tive a oportunidade de lhe dizer que o espetáculo foi lindo, mas que ele faz uma enorme falta no mesmo.

O cenógrafo André Cortez eleva Duda Maia às alturas no final e Fábio Enriquez (de gorro) corre para abraçar a genial diretora.

Não tenho mais adjetivos para demonstrar minha empolgação por espetáculo tão belo e tão lúdico. Assista e me diga se não tenho razão.

LAMENTAVELMENTE, o polpudo programa da peça com 53 páginas (contém inclusive as letras de todas as músicas) só e acessível pelo execrável QR code e nem se permite o download do mesmo. Quem quiser que compre uma lupa para ler o mesmo no celular!!!

 

Jacksons do Pandeiro. Cartaz do Teatro Paulo Autran no SESC Pinheiros. Apenas até 29/05 às quintas, sextas e sábados às 20h e aos domingos às 18h

 

20/05/2022

quarta-feira, 18 de maio de 2022

O FAZEDOR DE TEATRO

 

Foto de João Caldas

THOMAS BERNHARD NOS PALCOS PAULISTANOS

Apesar de ter escrito 28 peças de teatro o escritor e dramaturgo austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), até agora, ao que eu saiba, teve apenas a peça O Jantar nos Wittgenstein (Ritter, Dene, Voss – no original) apresentada por aqui em duas ocasiões: a primeira era uma produção gaúcha dirigida por Luciano Alabarse em 2002 com o título Almoço na Casa do Sr. Ludwig e a segunda dirigida por Eric Lenate em 2015 rebatizada de Ludwig e Suas Irmãs.

Por outro lado, assistimos a várias adaptações de seus romances: Árvores Abatidas (2013) dirigida por Marcos Damaceno com memorável solo de Rosana Stavis; Extinção (2018), solo de Denise Stoklos e o recente O Náufrago (2022) dirigido por William Pereira com Luciano Chirolli. Sem esquecer da monumental versão polonesa de Árvores Abatidas dirigida por Krystian Lupa apresentada na MITsp de 2018. 

O FAZEDOR DE TEATRO

Para comemorar os 30 anos de sua Cia. Razões Inversas e, segundo o release, homenagear o fazer teatral, o incansável Marcio Aurelio encena no SESC Pompeia O Fazedor de Teatro, publicada em 1986, mesmo ano da publicação de O Jantar nos Wittegenstein, três anos antes da morte do autor.

Como o título indica trata-se de uma peça que trata de teatro. É na verdade um longo monólogo do personagem Bruscon, um ator que se proclama um dos melhores, ou até o melhor de todos os tempos, que também acumula as funções de dramaturgo, diretor, preparador do elenco, além daquelas burocráticas.

Exigente, tirânico, rabugento, verborrágico e muitos outros adjetivos poderiam ser atribuídos a esse senhor que fala sem parar durante a hora e quarenta que dura a peça, só sendo interrompido pelos sins de obediência dos filhos Sara e Ferruccio, da mulher Ágata e do hospedeiro. Marcio Aurelio eliminou as personagens da mulher e da filha do hospedeiro que são apenas citadas na montagem.

Sentindo-se senhor de todos esses méritos Bruscon se sente humilhado ao ter que apresentar sua grande obra em um galpão de vilarejo do interior com menos de 300 habitantes; além disso ele detesta o trabalho de sua família que atua com ele.

Marcio Aurelio escolheu um galpão nos fundos do SESC Pompeia para abrigar sua montagem. O cenário de Marcelo Andrade e do diretor procura mostrar a precariedade do local em Utzbach, onde se passa a ação da peça. Aline Santini ilumina a cena discretamente com pendentes sobre os intérpretes e aproveita as janelas do galpão nos belos efeitos de tempestade ao final da peça.

Pelas características próprias do texto, o ator que interpreta Bruscon carrega o espetáculo nas costas e é o grande responsável pelo sucesso ou pelo fracasso do empreendimento e aqui, para o júbilo de todos, temos Paulo Marcello no papel. É incrível a entrega desse grande ator a um papel desafiador e ingrato. Ele consegue manter o espectador atento durante toda a apresentação e o faz de maneira que dá humanidade à personagem e até provoca uma certa simpatia no espectador, apesar da arrogância e da ranhetice da mesma. Mais uma interpretação que deve ser lembrada entre as melhores do ano.

O restante do elenco acompanha com os já citados sins os desmandos de Bruscon, mas cabe destacar a participação de Zedú Neves como o hospedeiro.

Foto de João Caldas

O Fazedor de Teatro é prato cheio e suculento para quem faz ou ama o teatro.

Cartaz do SESC Pompeia até 10 de junho, de terça a sexta às 20h. 

18/05/2022

 

 

 

domingo, 15 de maio de 2022

CARO KAFKA

 

NASCEM DUAS ESTRELAS

No belo programa da peça Caro Kafka (LAMENTAVELMENTE SÓ ACESSÍVEL POR QR CODE!!), o diretor Marcelo Lazzaratto conta uma bela história sobre a peça inaugural da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico em 2001, onde atuava o jovem ator Pedro Haddad e na plateia havia uma bebê recém nascida chamada Chiara, sua filha.

21 anos depois Pedro e Chiara voltam a se encontrar, agora ambos no palco, para dar vida às personagens criadas por Carla Kinzo e Marcos Gomes a partir de um suposto encontro do escritor Franz Kafka com uma menina que perdeu sua boneca.

Carla e Marcos foram muito felizes em transformar uma história bem curta em um espetáculo de uma hora, recheando a mesma com elementos de algumas obras do “estranho” Kafka e colocando em cena a boneca, que fala as cartas que o escritor escreve em seu nome.

O lúdico espetáculo dirigido com visíveis amor e paixão por Marcelo Lazzaratto conta com cenário despojado e eficiente de Julio Dojscar, lindamente iluminado pelo diretor. Enriquecem ainda a montagem os figurinos criados por Silvana Marcondes e a trilha sonora assinada por Dan Maia.

Com seu habitual talento, Pedro Haddad interpreta um Kafka nada “estranho” e bastante acessível e alegre.

Palmas para as duas garotas que fazem de maneira auspiciosa suas estreias no teatro. O que lhes falta em emissão de voz (algo totalmente contornável) lhes sobra em graça e talento. Com certeza estamos sendo testemunhas do nascimento de duas estrelas: Chiara Lazzaratto (intérprete da menina) e Julia Alves (intérprete da boneca). Longa carreira artística a ambas!

Caro Kafka é espetáculo que prioriza a palavra sendo, portanto, mais indicado no meu modo de ver para crianças de oito a 85/90 aninhos!! 

CARO KAFKA está em cartaz no SESC Bom Retiro até 26/6 aos domingos às 16h.

NÃO PERCA e leve as crianças! 

15/05/2022

sábado, 14 de maio de 2022

PLAY BECKETT

 

Foto de Arnaldo D'Ávila

Meu primeiro contato com Beckett foi em 1969, com Esperando Godot dirigido por Flávio Rangel e tendo Cacilda Becker naquele que seria seu último papel de uma carreira tragicamente interrompida no intervalo de uma das apresentações da peça.

A partir daí muitos Estragons, Wladimirs, Pozzos, Luckys, Winnies, Krapps, Clovs, Hamms, assim como aquelas personagens das peças curtas, passaram pelos meus olhos de espectador sempre me assombrando e me fazendo lembrar dos absurdos a que o ser humano está sujeito.

Agora foi a vez de Play Beckett numa realização de Simone de Lucia e Mika Lins, tendo a primeira como atriz e a segunda como diretora.

Diga-se em primeiro lugar que o espetáculo de Mika Lins é esteticamente belíssimo: o cenário de Giorgia Massetani reproduzindo o ambiente do universo caótico contido nas obras do dramaturgo irlandês, incluindo os icônicos chapéu coco e par de botas e a iluminação esplendorosa de Caetano Vilela que participa ativamente da ação são dois elementos da encenação que vão entrar para qualquer antologia que trate desses dois importantes componentes de uma representação teatral.

Foto de Arnaldo D'Ávila

No caso de Play, cabe louvar o precioso e preciso trabalho do operador de luz Guilherme Soares que, atento às falas e aos silêncios, deve fazer verdadeiro malabarismo para acender e apagar spots no momento certo. Só vendo!!

A pantomima Ato Sem Palavra II e as peças curtas Play, Catástrofe e Improviso de Ohio já foram encenadas nos palcos paulistanos por importantes diretores como Rubens Rusche, Irmãos Guimarães e até Peter Brook e estão entre aquelas mais representadas nas inúmeras montagens que se valem sempre de três ou quatro desses dramatículos, mas Mika Lins soube inovar criativamente em cada uma delas dando a impressão que as estamos vendo pela primeira vez.

O horror e o absurdo perante a solidão e a incomunicabilidade no mundo moderno, tão presentes na obra de Beckett, aqui comparecem, principalmente, em Ato Sem Palavras II, Improviso de Ohio e Play, sendo que nesta última há também espaço para uma réstea do humor beckettiano. Há até um toque político na presença do diretor tirânico em Catástrofe.

Marcos Suchara confirma seu enorme talento em todas as suas intervenções e Simone de Lucia e Diego Machado são duas ótimas surpresas.

Questão de gosto, mas a cena do espetáculo que para mim, melhor representa tudo o que Beckett quis dizer com sua vasta obra é Ato Sem Palavras II que tem as brilhantes performances de Suchara e Machado. Fosse eu o diretor seria ela que encerraria a montagem.

As peças são apresentadas por uma voz em off transmitida por megafone lindamente instalado no canto superior direito do palco enquanto se ouve a potente trilha sonora original de Edson Secco.

Como se pode notar, trata-se de montagem realizada com os maiores cuidados de produção e o resultado é de importância e beleza ímpares.

Não se assuste com Samuel Beckett! CORRA para assistir a essa que se inscreve como uma das melhores e mais belas leituras do universo desse importante dramaturgo.

Louve-se também o belíssimo e informativo programa impresso que pode se transformar em um pôster com uma ilustração de Cris Vector que deixaria Beckett muito feliz.

PLAY BECKETT está em cartaz no Teatro Aliança Francesa até 26 de junho com sessões às quintas, sexta e sábados às 20h e aos domingos às 18h. 

14/05/2022

 

 

 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

FOXFINDER – A CAÇA

 

Foto de Halei Rembrandt

A fazenda do casal Samuel e Jude Covey   passa por crise na produção de alimentos; o casal também passa por crise pessoal devido à morte recente de seu filho. O inspetor oficial do Estado William Bloor visita a fazenda, instalando-se na propriedade do casal, incumbido de exterminar as razões da crise de produção alimentícia que segundo os dados oficiais são as raposas que circulam no entorno. A questão é que NÃO HÁ raposas no entorno, mas mesmo assim a caça irracional continua e muda a vida de todos os envolvidos, fomentando o medo, o ódio, a traição e as ideias fundamentalistas, ferramentas muito úteis para a implantação de um regime fascista.

Essa é a trama básica da peça Foxfinder da jovem dramaturga inglesa Dawn King (1978-). A tradutora Carolina Fabri e a produção da peça optaram por manter o título original que significa algo como o “rastreador de raposas” seguido das palavras “A Caça”. Sem conhecimento da autoria e descartando os nomes das personagens, um espectador poderia facilmente pensar que se trata de texto de autor brasileiro metaforizando a situação atual do Brasil onde as raposas poderiam ser a esquerda, o comunismo, a ciência, a cultura e tudo que valorize a dignidade dos seres humanos provocando o temor e a insegurança da direita radical.

O texto é tão potente na sua denúncia da criação de um bode expiatório (neste momento me vem à mente outro texto poderoso sobre esse tema: Andorra de Max Frisch, que cairia muito bem se remontada na atual conjuntura) que o encenador Wallyson Mota não teve necessidade de explicitar nada sobre nossa realidade.

Onde Não Houver Um Inimigo, Urge Criar Um. Lembrei-me desse título de uma peça esquecida do dramaturgo carioca João Bethencourt que traduz bastante bem a ideia da peça de Dawn King.

A encenação de Wallyson Mota valoriza o texto e a interpretação dos atores que se movimentam em um tablado (cenário de Geandre Tomazoni e Gustavo Godoy) iluminado por Matheus Brant. Os figurinos, que remetem ao ambiente rural da peça, levam a assinatura de Marichilene Artsevskis.

O bom elenco é formado por Ernani Sanchez que interpreta o marido Samuel; Eduardo Mossri que empresta seu talento, sua energia e seu físico para o histérico inspetor; Carol Vidotti, a boa vizinha que por pressões recebidas acaba traindo o casal e Carolina Fabri, em mais um significativo momento de sua bela carreira, como Jude Covey.

Foxfinder – A Caça é mais um grito de alerta para os perigos a que o povo brasileiro está sujeito. Só por isso já seria muito necessária, mas, além disso, trata-se de ótima guloseima teatral, bem encenada e bem interpretada. 

FOXFINDER – A CAÇA está em cartaz na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso até 14 de junho às segundas e terças às 19h. Ingressos gratuitos. 

12/05/2022

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

WOYZECK – UMA DESTERRITORIALIZAÇÂO EM CURSO

 

O REDIMUNHO ILUMINA A OCUPAÇÃO NOVE DE JULHO

1.   UM POUCO DE HISTÓRIA.

Tão fragmentada e inacabada, mesmo assim Woyzeck é a obra mais visitada do dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837) morto de tifo prematuramente com apenas 23 anos de idade.

Já foi ópera de Alban Berg em 1925, filme de Werner Herzog em 1979 e peça musical de Bob Wilson e Tom Waits em 2002, para citar apenas as leituras internacionais mais famosas da obra.

No Brasil acumulou dois retumbantes fracassos no Rio de Janeiro. O primeiro em 1948 com o título de Lua de Sangue foi dirigido e interpretado por Ziembinski tendo Maria Della Costa no papel de Maria; o segundo em 1971 foi uma grande produção fracassada da cantora Maysa que se arriscou na interpretação de Maria com Antonio Pedro no papel título e tinha a direção de Marilda Pedroso.

Em São Paulo houve uma bem sucedida montagem em 2003 com direção de Cibele Forjaz, tendo Mateus Nachtergaele e Marcela Cartaxo nos papeis principais.

Às vésperas do fechamento dos teatros por conta da pandemia provocada pela covid 19 foi estreada e logo depois adiada uma produção do Núcleo de Pesquisa do Ágora Teatro dirigida por Celso Frateschi.

Agora chegou a vez do Grupo Redimunho de Investigação Teatral visitar esse intrigante e muito contemporâneo texto de Büchner, apesar de seus quase dois séculos de existência.

2.   O WOYZECK DO REDIMUNHO.

Em primeiro lugar cabe destacar a “ocupação” que o espetáculo faz das áreas externas da Ocupação 9 de Julho do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro).  Parece que cada canto do belo espaço foi preparado para receber as várias cenas que compõem o início do espetáculo todo ele iluminado criativamente por Lui Seixas. O público acompanha essas cenas caminhando até chegar ao espaço cênico também ao ar livre onde acontece a trama principal da peça de Büchner.

As cenas acontecem em três tablados (onde estão os objetos de cena e estruturas verticais que remetem a forcas, símbolos de morte e castigo) e nos entornos dos mesmos. Aqui também se faz notar a bela iluminação de Lui Seixas e o aproveitamento de cada canto do espaço.

O texto original é recheado de “bifes” (jargão usado no meio teatral para nominar longos monólogos) e Rudifran Pompeu o recheia com outros tantos, além dos ótimos números musicais (direção musical de Luís Aranha), fatos que tornam o espetáculo, a meu ver, longo demais.

Essas inclusões reforçam os valores em que o Redimunho acredita e milita como a luta contra preconceitos de classe, gênero e raça, denúncia de machismo e feminicídio procurando trazer o texto para nossa triste realidade. Tais inclusões comentam o original do dramaturgo alemão que por si já carrega um forte poder de denúncia. De qualquer maneira, sempre é bom lembrar que: QUEM NÃO LUTA TÁ MORTO!

Danilo Amaral e Carolina Moreira encarregam-se das personagens Woyzeck e Marie. O numeroso elenco defende com garra e muita energia todo o espetáculo, tanto nos textos falados como nos números musicais.


Amanda Preisig - Foto de Jardiel Carvalho


Por dar maior visibilidade à Ocupação Nove de Julho e pelo digno e importante espetáculo apresentado, vale a pena ir até a Rua Álvaro de Carvalho, 427 (quase esquina da Rua Martins Fontes) às segundas e domingos às 19h. Bilheteria abre uma hora antes do espetáculo. Ingressos: R$30,00 (inteira), R$15,00 (meia).

Todas as fotos de autoria de Arnaldo D'Ávila, com exceção daquela creditada a Jardiel Carvalho. 

10/05/2022

 

 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

TATUAGEM

 

Foto de Rodrigo Chueri

Estamos diante de um autêntico musical brasileiro que por meio de muita alegria e muito deboche vai fundo nas raízes dos nossos problemas político-culturais. A essência das revistas tão voga no Brasil nas primeiras décadas do século XX e desaparecidas a partir do fim dos anos 1960, por ordem e graça da truculenta censura imposta pela ditadura civil-militar, está de volta nessa preciosa encenação de Kleber Montanheiro para a Cia. da Revista que neste ano completa 25 anos e comemora uma trajetória digna e muito coerente com seus objetivos.


1978, 2013 e 2022 é o caminho percorrido para se chegar a esse excitante musical: a ação do excepcional filme (2013) de Hilton Lacerda se passa em 1978, auge da ditadura, onde um grupo teatral sediado em Olinda usa e abusa do deboche para, a seu modo, contestar o status quo. Montanheiro adaptou de forma muito fiel o roteiro do filme para o palco, permeando a ação com as canções do grupo As Baías, sendo difícil acreditar que aquelas músicas e letras não tenham sido feitas para o espetáculo, tal é a maneira como elas dialogam com a trama. As exceções são a canção Tatuagem, escrita especialmente para a peça por Assucena e a Polca do Cu, presente no filme e que jamais poderia ser substituída por outra música, tal seu poder de deboche e comunicação com o público. A peça estreou em abril de 2022.

A encenação de Kleber Montanheiro é extremamente criativa nos mínimos detalhes a começar pela sala de espera do espaço que já introduz o espectador no clima da peça e exibe fotos que provém do projeto #Feito Tatuagem realizado por Louise Helène (visagismo) e Sérgio Santoian (fotografia). A legenda das fotos reproduz nomes de pessoas mortas durante a ditadura.


Adentra-se o espaço de representação e depara-se com uma interessante disposição: mesinhas, com duas cadeiras onde privilegiados espectadores poderão sentar, circundam o local da ação e atrás ficam as arquibancadas.

O espaço cênico vai abrigar o cabaré Chão de Estrelas onde se passa a maior parte da trama, mas criativamente e com poucos recursos pode se transformar na casa do interior da família do protagonista Arlindo/Fininha, no salão da comunidade onde o grupo vai morar e no quarto do protagonista Clécio.

Todo esse sugestivo aparato cênico  leva a assinatura de Kleber Montanheiro que também é responsável pelos esfuziantes e coloridos figurinos. As criativas luminárias feitas com material reciclável são de Gabriele Souza, responsável pela iluminação do espetáculo.


Sobre a excelente trilha sonora criada por As Baías já comentei acima, mas cabe destacar os arranjos e a potente direção musical de Marco França presente nas interpretações da banda (excelente) e do grupo de atrizes cantoras/atores cantores.

O elenco de Tatuagem esbanja juventude, alegria e energia (talvez seja por isso que, em certos momentos, a peça me remeteu à montagem de Hair realizada pelo saudoso Ademar Guerra em 1969) e essas características são transmitidas para o público que vibra e participa do espetáculo, aplaudindo com muito entusiasmo ao final e demorando para se retirar do local querendo usufruir ao máximo daquele ambiente tão generoso e acolhedor.

Do jovem, harmonioso e promissor elenco cabe destacar Cleomácio Inácio (conduz o espetáculo como Clécio), Mateus Vicente (muito sensível como Fininha), Natália Quadros (Soninha e Ceminha, ambas com muita energia), André Torquato (uma vigorosa Paulete), Bia Sabiá (Deusa) e Romário Oliveira (Marquinhos com hilárias entradas e saídas de cena). Talvez por representarem personagens diferentes do grupo principal, as interpretações de Joubert (GuRezê), Tia Zózima e Censor (ambas por Zé Gui Bueno) mereceriam maior lapidação para se tornarem mais críveis.

Em temporada teatral tão rica, não só em quantidade, mas, principalmente, em qualidade, Tatuagem se impõe como um excelente espetáculo devendo constar de todas as listas que irão destacar os melhores do ano.

Que venham os prêmios porque ótimos espetáculos para abocanhá-los já existem e Tatuagem, com certeza, é um deles!

 

TATUAGEM está em cartaz na Cia. da Revista até 05/06 de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 19h. A sessão de 6ª feira é gratuita.

Com o sucesso que vem obtendo é muito provável que a peça estenda a temporada. LONGA VIDA À TATUAGEM!!

 

06/05/2022

domingo, 1 de maio de 2022

UM INIMIGO DO POVO

 

A encenação de José Fernando Peixoto de Azevedo para esta que talvez seja a peça mais politicamente engajada do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) impõe-se como um dos melhores espetáculos da presente e rica temporada teatral paulistana. 

1.   Um pouco de história.

Escrita em 1882, logo após o sucesso e o escândalo de Casa de Bonecas e Espectros, Um Inimigo do Povo foi montada na Rússia por Stanislavski em 1900, mas só foi alcançar maior notoriedade mundial em 1966 quando Arthur Miller a montou em Saarbrücken na Alemanha (o belo programa da peça em forma do jornal A Voz do Povo traz uma interessante matéria de Otto Maria Carpeaux sobre essa montagem).

 No Brasil cabe lembrar da memorável montagem de Fernando Torres em 1969 no Theatro São Pedro com Claudio Corrêa e Castro no papel do Dr. Stockmann, Beatriz Segall como sua esposa e Graça Mello como o prefeito.

“A peça retrata o conflito existente entre o individual e o coletivo, mostrando de que forma a população de uma pequena cidade-balneário da Noruega transforma o médico local (Dr. Stockmann) de cidadão honrado em um inimigo do povo por conta de suas convicções a respeito da qualidade das águas que serviam os banhos públicos, fonte de riqueza para toda a cidade.” (sinopse extraída da Wikipedia). 

2.   A visão de Azevedo

O encenador volta a usar de maneira brilhante os recursos de vídeo utilizados em As Mãos Sujas (2019). Um cameraman (participação digna de aplausos de André Voulgaris, pela precisão em captar os melhores ângulos da cena) registra as ações que são projetadas em um telão em belo branco e preto. Algumas dessas ações acontecem fora de cena, como aquela em que no telão aparecem a esposa e a filha de Stockmann aflitas escutando o embate entre ele e seu irmão, prefeito da cidade.

Azevedo é muito fiel ao texto original, mas o enriquece com sua visão política e militante, tanto pelas causas sociais como por aquelas políticas deste destrambelhado momento por que passa o país. Serve-se também de ótimos números musicais para dinamizar o espetáculo. (até Clara Carvalho canta, e muito bem!)

O palco vazio do Teatro Aliança Francesa é preenchido por poucos objetos, instrumentos musicais e pela participação de Tatah Cardozo que indica a separação dos atos (que são cinco) e descreve o cenário de cada um deles. O desenho de luz assinado por Gabriel Greghi e Wagner Pinto colabora de forma discreta e eficiente para a ambientação das cenas. Figurinos de Anne Cerutti.

O elenco. E que elenco!!

Raphael Garcia como Hovstad passa com muita energia a subserviência a quem melhor lhe interessa em cada ocasião; Rodrigo Scarpelli tem atuação sóbria como o simpático e indeciso Billing; César Baccan é responsável por momentos de humor da peça com o seu ridículo Aslaksen. Lucas Scalco e Thiago Liguori completam o grupo de cidadãos do balneário.

Augusto Pompeu abre a encenação com uma vibrante participação musical e depois interpreta o sogro de Stockmann.

Lilian Regina é uma bela surpresa como Petra, a filha do Doutor.

Sobre Clara Carvalho não é preciso reforçar sobre seu imenso talento de atriz que aqui também revela que sabe cantar e dançar.

Sérgio Mastropasqua e Rogério Brito são os responsáveis pelos momentos mais tensos da trama ao duelar com palavras sobre a posição de cada um. São duas interpretações soberbas dignas de todas indicações de prêmios que certamente ocorrerão ao final da temporada teatral de 2022.

Um Inimigo do Povo é brilhante em todas suas três horas de duração, mas não há como não destacar seu momento maior que é o quarto ato com a participação do público onde se realiza uma assembleia para discutir as ideias do Doutor Stockmann. Ficção e realidade poucas vezes estiveram tão próximas uma da outra.

A posição individualista de Ibsen se revela nas últimas palavras do Doutor: “O homem mais forte que há no mundo é o que está mais só”. Nesse momento Azevedo vai retirando todas as outras personagens de cena deixando apenas o Doutor dançando. Aos poucos o elenco (não mais como personagens) adentra o palco também dançando ao som de uma pulsante música.

Fim.

Ovação nos agradecimentos mais que merecida do público presente.

UM INIMIGO DO POVO cumpre injustificável temporada relâmpago de apenas quatro semanas no Teatro Aliança Francesa (última apresentação neste domingo, dia 1º de maio). Urge que espetáculo dessa importância volte ao cartaz para nova temporada com o maior alcance de público possível. 

01/05/2022