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segunda-feira, 19 de junho de 2023

ALGUMA COISA PODRE

 

Se há algo de podre no reino da Dinamarca, há também algo deliciosamente divertido no palco do Teatro Porto.

Esse criativo musical escrito por Karey Kirkpatrick e John O’Farrell com músicas de Karey e Wayne Kirkpatrick recebeu também criativa versão brasileira de Claudio Botelho, tendo sua tradução cênica assinada por Gustavo Barchilon.

Tudo funciona nesse delicioso espetáculo que se propõe a mostrar ficcionalmente como surgiu o teatro musical na Inglaterra de 1595, onde Shakespeare dominava a cena teatral, fazendo os irmãos Nick e Nigel do Rêgo Soutto darem tratos à bola para tentar ultrapassar a fama e o sucesso do assim chamado bardo.

A semelhança entre as palavras Hamlet e omelete cria toda a hilária confusão da trama.

Há uma cena antológica no espetáculo que acontece quando o vidente Nostradamus vislumbra que o gênero musical seria  o sucesso futuro do teatro. São também hilárias as citações de frases de sonetos e de peças de Shakespeare.

Pelas atrapalhadas criadas e também por ação de Shakespeare, a família Rêgo Soutto é expulsa da Inglaterra e na versão original da peça, se exila nos Estados Unidos onde deverá criar os musicais da futura Broadway; na versão brasileira eles são deportados para o Brasil e seria muito interessante se eles chegassem na Praça Tiradentes e criassem o teatro de revistas; mas isso é uma outra história que fica para uma outra vez!

De qualquer maneira, num caso ou no outro, na Inglaterra quem continuará reinando absoluto será Shakespeare que, ao que a peça conta, roubou o argumento de Hamlet do pobre Nigel! 

Marcos Veras interpreta o irmão Nick, obcecado por criar um espetáculo de sucesso que o faça pagar suas contas; sua esposa é vivida por Laila Garin, o irmão tímido Nigel tem Leo Bahia no papel e sua namoradinha Portia é interpretada por Bel Lima. Os destaques ficam com os divertidos George Sauma e Wendell Bendelack que interpretam, respectivamente, Shakespeare e Nostradamus. A linha do coro é igualmente talentosa e completa harmoniosamente a cena. Todo o elenco interpreta, canta e dança muito bem ao som de ótima banda não vista durante o espetáculo e que só aparece em cena para os aplausos.

A cuidada produção do espetáculo tem excelentes profissionais em sua ficha técnica: Alonso Barros na coreografia e na direção de movimento, Thiago Gimenes na direção musical, Fábio Namatame nos figurinos, Duda Arruk nos cenários, Maneco Quinderé no desenho de luz e Tocko Michelazzo/Gabriel Bocutti no desenho de som.

Tudo em prol do máximo deleite do espectador. 

Divertimento inteligente que dá gosto ver!!

ALGUMA COISA PODRE está em cartaz no Teatro Porto até 06 de agosto com sessões às sextas às 20h, aos sábados às 16h e às 20h e aos domingos às 15h e às 19h.

NÃO PERCA! 

19/06/2023

 

       

domingo, 18 de junho de 2023

AS BRUXAS DE SALÉM


                  

A Vida na Praça Roosevelt de Dea Loher (2005) e Roberto Zucco de Bernard-Marie Koltès (2010) foram encenações marcantes da companhia de teatro Os Satyros, liderada pelos guerreiros Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez. No meu restrito ponto de vista, a maioria das encenações que veio a seguir seguia a temática da peça de Dea Loher (tratar dos habitantes do entorno da praça), sem, no entanto, atingir a densidade dramatúrgica daquela que lhe serviu de modelo.

Eis que, diante do texto clássico de Arthur Miller, Rodolfo García Vázquez realiza um dos espetáculos mais impactantes e mais belos não só desta temporada teatral que está chegando em sua metade, mas também da história do teatro brasileiro, de 1964 até os dias de hoje, período do qual sou testemunha ocular e auditiva.

As Bruxas de Salém se passa no ano de 1692 no povoado de Salém em Massachusetts, quando um grupo de meninas é flagrado pelo pai de uma delas, em um ritual na floresta. O desdobramento desse fato leva a uma verdadeira e escabrosa caça àquelas que o povo histérico e manipulado da cidade considera bruxas. A peça de Miller é baseada em um fato real e foi escrita em 1953 para denunciar o chamado “mcarthysmo” então vigente nos Estados Unidos. O paralelo desses fatos com a realidade brasileira que culminou com o famigerado 08 de janeiro de 2023 em Brasília, devem ter levado Ivam e Rodolfo a escolher a peça do dramaturgo norte americano, peça esta que só foi montada profissionalmente em São Paulo em 1960, dirigida pelo saudoso Antunes Filho.

Para contar essa terrível história, Rodolfo coloca em cena mais de 30 atores, quase o mesmo número dos privilegiados espectadores que ocupam os reduzidos lugares da plateia.

A entrada no espaço cênico na penumbra passando pelos habitantes da cidade carregando lampiões já introduz o público no clima em que vai se passar a peça, clima esse sufocante desde as primeiras cenas.

Para manter o clima citado acima, as alusões ao momento atual são feitas de maneira sutil durante a ação da peça, mas ficam bastante claras com o prólogo e o epílogo narrados pelo ator André Lu.

As cenas de conjunto são orquestradas harmoniosamente por Rodolfo criando grande impacto e as cenas da ação em si são defendidas bravamente por todo o elenco.

Com tanta gente talentosa no elenco, fica difícil, mas é impossível não destacar as interpretações de Anna Paula Kuller (impressionante como a insegura Mary Warren, principalmente na cena do julgamento), Diego Ribeiro (Reverendo Hale), Gustavo Ferreira (Reverendo Parris) e finalmente aqueles que são os verdadeiros protagonistas da peça, Henrique Mello (um excelente e vigoroso John Proctor) e Julia Bobrow (mais uma vez comprovando seu grande talento no papel da perversa e manipuladora Abigail Williams).  

Por seu conteúdo dramático, pela denúncia presente nesse conteúdo, pelo brilhante desempenho do numeroso elenco e por sua beleza cênica, As Bruxas de Salém torna-se OBRIGATÓRIA para todas/ todos aquelas/aqueles que amam o teatro e se preocupam com o andamento dessa carruagem chamada Brasil.

AS BRUXAS DE SALÉM está em cartaz no Espaço dos Satyros até 27 de agosto de quinta a sábado às 20h30 e aos domingos às 18h.

 

18/06/2023

 

 

domingo, 11 de junho de 2023

LEMBRAR É RESISTIR

 

Não só a queda das torres gêmeas em Nova York faz do dia 11 de setembro uma data de triste lembrança, 28 antes nesse mesmo dia uma junta militar liderada pelo truculento Augusto Pinochet enterrava o governo socialista de Salvador Allende no Chile, dando início a uma das ditaduras mais violentas e assassinas ocorridas na América Latina naquele período. O Brasil já havia inaugurado a temporada das ditaduras latino americanas em 1964, seguido pela Bolívia, Argentina, Peru, Equador e Uruguai, sem contar o “hors concours” Paraguai que já vinha com esse abominável regime desde 1954 liderado por Alfredo Stroessner.

        Eu era recém casado no ano de 1973 e lutava contra a terrível ditadura brasileira da maneira que me era possível denunciando a mesma por meio de espetáculos de teatro universitário.

        Paradoxalmente, trabalhava em uma multinacional durante o dia (Philips) e fazia teatro militante à noite e nos fins de semana. Era bem aquilo: “minha voz não pode muito, mas gritar eu bem gritei”.

        Nesse cenário desolador se via com muita esperança a experiência chilena com as ações do governo de Salvador Allende.

        Eu trabalhava em uma unidade da Philips em Santo Amaro, mas naquele 11 de setembro havia uma reunião em uma fábrica em Capuava e estava me dirigindo para lá quando comecei a ouvir no rádio do carro as notícias do golpe militar chileno: a senha “Chove em Santiago”, as ações em Valparaiso, o ataque ao Palácio La Moneda e o suicídio de Allende. Tudo muito triste. O sonho terminava ali e o pesadelo que se seguiu foi muito maior do que se podia imaginar: a perseguição de tanta gente, a dura repressão, o confinamento e as torturas no Estádio Nacional (comenta-se que o cantor Victor Jara teve as mãos amputadas pelos sanguinolentos soldados), a morte e o enterro de Pablo Neruda.

        Cheguei arrasado à reunião e tive que me fantasiar de bom moço para discutir aqueles assuntos burocráticos que para mim não tinham a menor importância face à dimensão da tragédia que naquele momento estava ocorrendo no Chile e que se estendeu por 17 anos até 1990. O que é mais triste é que neste 2023 os chilenos voltem a escolher governos conservadores de direita. A história não nos ensina nada??

        Todas essas lembranças vieram à tona por conta da importantíssima exposição EVANDRO TEIXEIRA CHILE 1973 ora em cartaz no Instituto Moreira Salles até 31/07.

        A primeira sala da exposição mostra fotos realizadas pelo fotógrafo no Brasil no turbulento período de 1964 a 1973.

      Todo o resto do espaço é dedicado às fotos realizadas no Chile em 1973, incluindo uma sala toda dedicada ao velório e ao enterro do poeta Pablo Neruda. Ao visitar esta sala, segure uma lágrima se for capaz.



O povo vendo passar o enterro de Pablo Neruda

        A emoção e a indignação são sentimentos difíceis de conter perante o que se vê nesta oportuna e importantíssima exposição que deveria servir de alerta para aqueles que ainda pensam serem esses os melhores regimes, infelizmente essa gente não virá jamais visitar esse trabalho.

        11/06/2023

sexta-feira, 9 de junho de 2023

VISTA

 

Estupro é assunto bastante delicado e difícil de ser tratado. Tatiana Salem Levy enfrentou o desafio e escreveu o livro Vista Chinesa que retrata um fato real ocorrido com uma jovem que corria no Alto da Boa Vista no Rio de Janeiro quando foi abordada com um revólver na testa por um homem que a seguir a estuprou violentamente em plena luz do dia, sob o céu azul e paradisíaco da Cidade Maravilhosa.

Julia Lund e Luiz Felipe Reis cientes da potência e da importância do tema tratado no livro fizeram a adaptação teatral do mesmo, cuja encenação resultou em um dos espetáculos mais vigorosos surgidos neste ano nos palcos paulistanos.

A encenação conjuga harmoniosamente imagens filmadas, imagens produzidas em cena, cenário belíssimo (Dina Salem Levy) reproduzindo o local da floresta onde se deu o estupro, trilha sonora executada ao vivo (Pedro Sodré) que costura toda a ação, iluminação precisa (Alessandro Boschini) que comenta os fatos narrados preciosamente por Julia Lund, uma bela mulher e uma grande e versátil atriz.


Vejo Luiz Felipe Reis como o maior responsável por essa bem sucedida empreitada porque ele assina a direção e a concepção geral do espetáculo, além de operar a câmera ao vivo, isso sem tirar a grande atração que é a interpretação de Julia Lund.

A extensa ficha técnica aponta os responsáveis pela importante parte audiovisual da montagem.

Por duas vezes o estupro é mencionado no escuro e com barulho ensurdecedor e em uma das cenas mais fortes da peça a atriz representa o que teria sido esse ato violento, mas o espetáculo vai além, mostrando as consequências do mesmo para a vítima e para seus próximos. Em cena emblemática junto à polícia a vítima recusa-se a indicar um suspeito por receio de injustamente condenar um inocente à prisão. Também é na entrevista com a polícia que ela é quase forçada pelos policiais a dizer que o agressor era negro, quando ela insiste em falar que ele era branco e de nariz afilado.

Espetáculo de forte impacto emocional tem sua gravidade amenizada na bela cena em que a mulher anteriormente agredida e traumatizada tem um momento de sexo com muito amor com o namorado no Mexico, atingindo um orgasmo inesquecível. Nesse momento epifânico ela dança freneticamente sob luzes pela primeira vez intensamente coloridas. Para este espectador ranzinza o espetáculo deveria terminar nesse momento quando artista e plateia estão irmanados em um mesmo grau de energia, porém a peça se alonga por mais quinze minutos, em verdadeiro anticlímax, não acrescentando nada de novo à pungente história anteriormente apresentada.

Além de oportuno e necessário, Vista é espetáculo visualmente bonito e criativo, além de revelar o talento e a beleza de Julia Lund para os palcos paulistanos.

VISTA está em cartaz no SESC Avenida Paulista até 02 de julho De quinta a sábado às 20h e aos domingos às 18h. Sessão extra dia 28/06, quarta, às 20h.

NÃO DEIXE DE VER!

09/06/2023

 

 

domingo, 4 de junho de 2023

VERDADE

 

                                                             Eu não vim pra explicar. Vim pra confundir

                                                                                                 (Chacrinha)

        Eu entendo a frase acima mais brechtiana do que muitas outras frases de Bertolt Brecht, uma vez que quando se confunde o espectador pode-se atingir o tão almejado “efeito  distanciamento” fazendo-o parar e refletir sobre o que está sendo apresentado.

        Acredito que este seja o norte do trabalho de Alexandre Dal Farra tanto como autor como diretor; seu teatro é muito mais de suscitar perguntas do que de oferecer respostas. As respostas ficam por conta de cada espectador. Se isso já estava presente em outras obras de Dal Farra, neste Verdade ele dá um passo além.

        Não creio que seja por acaso que em certos momentos o público fique em dúvida se quem está falando é alguém do exército ou seu antagonista que luta contra ditaduras, torturas e governos conservadores de extrema direita. As regras do jogo (ator com máscara ou sem máscaras) enunciadas por Alexandra Tavares no início do espetáculo são desobedecidas várias vezes durante a apresentação assim como o uso do uniforme do exército.

Também não acredito que não seja proposital o general Mourão lembrar o nosso atual mandatário em sua fala só de cuecas encima de um tablado.

Esse jogo quase dialético é para mim o grande achado do espetáculo.

Revendo a peça em melhores condições acústicas do que no porão do Centro Cultural São Paulo onde aconteceu a primeira temporada em 2022 e após ter lido o texto, pude melhor entender este trabalho do grupo Tablado SP (que já foi “de Arruar”). Poucas vezes tem-se visto em nossos palcos retrato tão impactante das Forças Armadas brasileiras e alerta importante de como elas podem agir em silêncio e de maneira dissimulada para reestabelecer governos de extrema direita no país.

É preciso estar atento e forte, parece alertar o excelente elenco da peça: André Capuano, Alexandra Tavares, Clayton Mariano, Gabriela Elias e Nilcéia Vicente interpretam vários generais, Dilma Rousseff, Aloizio Mercadante e também são os narradores que vão pontuando as datas em que se passam as ações. Trabalhos de fôlego merecedores de todos os nossos aplausos.

E por último, mas não menos importante: creio estar claro que a comparação de Dal Farra com Chacrinha é um elogio! 

VERDADE está em cartaz no TUSP dentro do projeto exemplarmente denominado Teatro pós-Trauma. Temporada até 18/06 de quinta a sábado às 20h e aos domingos às 18h.

04/06/2023