Quando
um espetáculo me tira do chão fico durante algum tempo ruminando aquela
experiência (chocando os ovos, como diria Walter Benjamin). Ao sair do Sesc
Pinheiros na última quinta feira após ter assistido ao Ricardo III da dupla Gustavo Gasparani (ator) e Sergio Módena (diretor) tomei o metrô e o vagão estava vazio.
Nos bancos eu vislumbrava ora a solene Elisabeth, ora a frágil Lady Anne, ora o
maquiavélico Ricardo e até a deliciosa criada do palácio com sotaque nordestino.
E pensando em Shakespeare, naquele instante meu pensamento viajou até a crítica
Barbara Heliodora (que por triste coincidência morreria algumas horas depois)
quanto à consistência da obra do bardo e como ela se presta às mais variadas
possibilidades de encenação cabendo lembrar apenas como bons e criativos exemplos
o Ensaio.Hamlet da Cia. dos Atores , o Romeu
e Julieta do Grupo Galpão e agora este Ricardo
III.
Ao
entrar na sala de espetáculos nos deparamos com o ator Gustavo Gasparani vestido
casualmente diante de um quadro branco onde ele completa um cronograma com a
genealogia das casas de Lancaster e de York que mostra as personagens que farão
parte da história que iremos presenciar. A seguir o ator dirige-se informalmente
ao público fazendo uma breve introdução da tragédia do rei Ricardo III e
explicando que interpretará todas as 27 personagens escolhidas por ele e pelo
encenador entre as mais de 60 que fazem parte do original de Shakespeare.
Tem
início a trama e por meio de pequenos gestos e mudanças de voz o ator dá conta
dessas personagens e nos conta a história do terrível Ricardo realizando um
trabalho de interpretação poucas vezes visto nos nossos palcos. Dá-se ao luxo
de praticamente abdicar de objetos de cena, limitando-se ao uso de um véu para
interpretar Lady Anne e de canetinhas (recurso muito criativo) para representar
os filhos pequenos de Elisabeth e de Edward IV e depois os soldados no campo de
batalha. A direção limpa e criativa de Módena complementa a cena apenas com
discretos efeitos de luz... O resto não é silêncio, mas o privilégio de
testemunhar o trabalho de um ator com pleno domínio de sua arte. Este trabalho
deveria servir de verdadeira aula e exemplo para aqueles atores que, ao
interpretar diversas personagens, se utilizam de recursos explícitos e óbvios
para indicar que estão mudando de personagem.
Outros
pontos altos do espetáculo são o uso do humor (a cena da criada é antológica) e
a quebra da ação para fazer comentários com o público e buscando a adesão do
mesmo para as cenas que exigem vozes do povo clamando por seus reis.
Paulista
radicado no Rio de Janeiro, Sergio Módena nos brindou no ano passado com A Arte da Comédia (um dos melhores
trabalhos da temporada de 2014) e agora repete a dose com este Ricardo III, que certamente será incluído
na lista dos melhores de 2015 (a peça estreou no Rio de Janeiro em 2014 e desde
então vem cumprindo vitoriosa carreira nacional, sendo que Gustavo Gasparani
e Sergio Módena foram premiados e/ou indicados para vários prêmios do teatro
carioca).
Segundo
o programa, as atividades teatrais solitárias na infância tanto do diretor como
do ator foram muito importantes para a realização do espetáculo; o ciclo se
fecha quando se acrescenta idêntica experiência deste espectador que, talvez se
imaginando um Charles Chaplin, representava todas as funções do teatro, incluindo
o público.
RICARDO III está em cartaz no Sesc
Pinheiros até 23 de maio de quinta a sábado às 20h30. Onde quer que esteja Shakespeare
está aplaudindo de pé.
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