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domingo, 26 de novembro de 2017

MANIFESTO INAPROPRIADO




GENTE JOVEM REUNIDA VOLUME 2
 OU
OS CUS DE TODOS NÓS

        Em matéria do meu livro O Palco Paulistano de Golpe a Golpe (1964-2016) escrevo que o maior presente que o teatro paulistano me deu em 2016 foi a revelação de bons espetáculos realizados por grupos de jovens egressos de escolas e oficinas de teatro.  Eis que essa alegria se repetiu agora ao assistir ao espetáculo da Cia. Histriônica de Teatro com pessoal oriundo da área de artes cênicas da Unicamp.
        Na forma de quase um cabaré dois atores e dois músicos (que também têm os seus momentos de atores) apresentam ora de forma engraçada, ora de forma extremamente dramática como é ser homossexual/gay/bicha/viado/boiola/mona em país preconceituoso como o Brasil. Mais que do preconceito fala-se sobre a violência que ele pode provocar.
        De forma bastante lúdica e até poética o roteiro inclui maravilhas como a famosa carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira onde ele explicita sua homossexualidade; poema de Garcia Lorca; excertos de Devassos no Paraíso, emblemático livro de João Silvério Trevisan, e de obras de Aguinaldo Silva; Roberto Piva e Oscar Wilde. Os textos são permeados por belas canções (o programa não explicita, mas creio que de autoria do grupo) tocadas por Paulo Ohana (violão) e Theo Coelho Yepez (contrabaixo). Os atores Lucas Sequinato e Ton Ribeiro além de cantar, desempenham os vários textos indo com muita versatilidade do cômico, para o irônico e desembocando no dramático. Tudo isso é orquestrado pelas mãos experientes do diretor Rodrigo Mercadante.

Ton Ribeiro, Paulo Ohana, Theo Coelho Yepez e Lucas Sequinato
Foto de Cauê Felix

        As reações absurdas de pessoas, entidades e até de artistas que apareceram por ocasião do surgimento da AIDS, incluindo piadas extremamente cruéis sobre o assunto é o momento mais impactante da montagem, pois joga na cara o que é o preconceito com os homossexuais (situações limites fazem os hipócritas tirarem a máscara e mostrarem suas verdadeiras caras).
        Naquele solo sagrado onde Guarnieri, Boal, Myrian Muniz, Norma Bengell, Zé Renato e tantos outros atuaram e, como diz um dos atores, “naqueles assentos onde tantos cus célebres já se sentaram” estávamos ontem, atores e público, comungando nossos desejos de um mundo melhor, sem preconceitos, nem violência. Utopia? Pode ser, mas o que fazer se não temos a esperança e a garra de lutar pelo menos por uma utopia “possível”?
        Todos nós temos cu e diz o ditado que “quem tem cu tem mêdo”, mas quem tem cu também pode refletir e agir sobre os assuntos tratados de forma tão boa neste espetáculo da Cia. Histriônica.
        CUS DE TODO MUNDO, UNI-VOS!

        MANIFESTO INAPROPRIADO está em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet até 23/12 de quarta a sábado às 20h e aos domingos às 18h.
        Além do espetáculo, o grupo realiza atividades formativas durante toda a temporada em que o teatro. (Informações: www.ciahistrionica.com.br)

26/11/2017
       

        

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

SOBRE HEBE E CANTANDO NA CHUVA


Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá
(Caetano Veloso e Milton Nascimento)

        O teatro dito comercial é olhado de viés pelo assim chamado meio intelectual. No entanto, é preciso separar o joio do trigo, pois um espetáculo bem estruturado, com produção elaborada, feito com dignidade e seriedade não deve assustar ninguém e sim, DIVERTIR e ENTRETER, que são seus principais objetivos, além, é claro, do retorno financeiro (afinal, trata-se de teatro “comercial”). Sobre o joio nem é necessário falar, basta olhar para alguns títulos em cartaz em certos teatros que se especializaram nesse tipo de montagem.
        Esse pensamento me veio à tona ao assistir com muito prazer e porque não dizer, com muita surpresa, a dois espetáculos ainda em temporada na cidade.


        CANTANDO NA CHUVA é uma delícia baseada em outro biscoito realizado no cinema em 1950. Transformado em espetáculo teatral (via rara, pois normalmente é o cinema que transforma obras teatrais em filmes), fez muito sucesso na Broadway e agora aportou por aqui por iniciativa do casal Claudia Raia e Jarbas Homem de Mello. Claudia Raia em gesto bastante elogiável não faz o papel principal, deixando aquele da “mocinha” para a adorável Bruna Guerin, que coleciona sucessos desde sua atuação em Urinal. O trio principal é composto por Jarbas Homem de Mello (sempre ótimo) e o surpreendente Reiner Tenente. Claudia Raia, por sua vez ficou com a personagem impagável de Lina Lamont e é responsável pelos momentos mais engraçados do espetáculo. Participa também com excelente performance na cena que Cyd Charisse imortalizou no cinema. Tudo funciona na peça que reproduz quase literalmente cenas, gestos e coreografias do filme. É um produto importado, mas tem o jeitinho brasileiro de seus realizadores e alimenta a alma de quem o assiste.


        HEBE, O MUSICAL vai por outro caminho. Miguel Falabella, que cada vez mais tem sua atenção voltada para realização de musicais (vide a obra prima que foi a sua versão para O Homem de la Mancha) faz aqui uma comovente homenagem à comunicadora que foi Hebe Camargo, por meio de simples, mas bem bolada dramaturgia (Artur Xexéo) que conduz a história através de programa de perguntas e respostas onde uma jovem responde sobre a vida de Hebe. Detalhe hilário e verdadeiro (fui testemunha disso nos primórdios da televisão) é a garota propaganda que apresenta produtos que não correspondem às qualidades prescritas no texto que ela tem que dizer (bela homenagem a Idalina de Oliveira, Wilma Chandler, Neyde Alexandre e tantas outras).
        O primeiro ato é todo em branco e preto, símbolo da televisão antes da chegada do colorido. Cenários suntuosos e figurinos significativos e bregas (comme il faut!) fazem o deleite do espectador, assim como as coreografias e a trilha sonora repleta de canções da época em que Hebe cantava.
        Tudo isso seria supérfluo sem a forte presença de Débora Reis que caracteriza Hebe na medida certa, sem cair na caricatura (algo que seria muito fácil diante da histrionice de Hebe). Atriz e cantora, Débora é a grande estrela do espetáculo e merece a clamorosa ovação que recebe ao final do mesmo.
        (*) Uma ressalva: as péssimas acomodações do Teatro Procópio Ferreira que necessita urgentemente de reformas em suas poltronas e nas instalações sanitárias.

        Dois ótimos espetáculos que meu lado preconceituoso quase fizeram com que eu perdesse e que me deram imenso prazer e alegria.

        VIVA O TEATRO FEITO COM COMPETÊNCIA E DIGNIDADE.

        QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA... DESDE QUE SEJA AMOR!


CANTANDO NA CHUVA – Teatro Santander – Quinta e sexta (21h)/Sábado (17h e 21h)/Domingo (16h e 20h). Até 17/12.

HEBE – O MUSICAL – Teatro Procópio Ferreira – Quinta e sexta (21h)/Sábado (17h e 21h)/Domingo (18h). Até 17/12.  


24/11/2017

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

PONTO DE PARTIDA...MAIS UMA VEZ

Mineiramente

        Apesar de assistir a espetáculos teatrais há mais de 50 anos e mesmo tendo passado por meus olhos cerca de 3600 peças, eu não conhecia o Grupo Ponto de Partida de Barbacena.
        No domingo, dia 12 de novembro, resolvi ir assistir ao espetáculo Vou Voltar no Sesc 24 de Maio, confesso que, mais pela curiosidade de se tratar de trabalho que falava do famoso grupo uruguaio El Galpón, do qual eu havia visto alguns espetáculos quando esteve por aqui nos anos 1970 trazidos pela guerreira Ruth Escobar.

Vou Voltar

        A apresentação foi um verdadeiro deslumbramento para mim pela maneira como trataram dramatúrgica e cenicamente o assunto, além da irretocável parte musical do espetáculo. Ao final os mais que simpáticos integrantes do grupo acolhiam o público e eu tive a oportunidade de conversar com alguns deles. O meu entusiasmo pela peça traduziu-se em matéria que publiquei neste blog no link:

http://palcopaulistano.blogspot.com.br/2017/11/vou-voltar.html

        Sai do teatro já me programando para assistir no outro fim de semana ao musical Mineiramente. Conforme já citei no Facebook, se Vou Voltar me tirou do chão, Mineiramente me fez voar! Uma sequencia de belas canções (a maioria de autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant) permeada por poesias e ditos mineiros resulta em espetáculo mágico que tem seu auge no canto/sapateado da canção Louva Deus. Mais conversas com o grupo ao final e o privilégio de bater um bom papo com a Soraia Moraes e seus raros olhos verdes.

Mineiramente

        Comprei o DVD Ser Minas Tão Gerais gravado ao vivo em 2004 no Cine Theatro Central de Juiz de Fora com participação de Milton Nascimento e dos Meninos de Araçuaí. Explode coração: meu dedo cansou de apertar a faixa 19 e ver e rever o João Mello solando e sapateando com a garotada a já citada Louva Deus.
        Não podia deixar de tentar rever Mineiramente. E o fiz no dia de hoje, 20 de novembro. Papos com a querida Fatinha, produtora do grupo, Regina Bertola, diretora dos espetáculos, Soraia, Julia, Pablo, João ... E assim fiquei sabendo da beleza que é a sede do grupo em Barbacena em uma antiga fábrica de seda, que a Regina é mãe do Pablo - que chama Pablo por causa do Neruda e não do Milton- que por sua vez é marido da Júlia e que eles tem dois lindos garotos que circulavam pelo saguão do teatro. Tudo da maneira mais lindamente mineira possível.
        Vou Voltar para a sessão de despedida às 18h estava esgotada. Cheguei uma hora antes para tentar um ingresso na fila da esperança. Poucas chances e os minutos passando. Próximo ao terceiro sinal os poucos lugares vagos foram liberados e eu tive o privilégio de rever na terceira fileira do teatro. Mais emoção e a possibilidade de melhor entender certas passagens. Verdadeira ovação ao final, assim como aconteceu na sessão vespertina de Mineiramente.
        É São Paulo descobrindo o belíssimo trabalho do Grupo Ponto de Partida que precisa retornar à cidade em temporada mais longa com estes e outros espetáculos e, quiçá, Ser Minas Tão Gerais com o Milton e os Meninos de Araçuaí.

        Atenção programadores do Sesc, do Sesi, do Itaú Cultural e da Caixa Cultural: UM TESOURO DESSES NÃO SE DESPERDIÇA! Urge trazê-los de volta.
        Por enquanto, entra na série do QUEM VIU, VIU...

        CUIDADO: Esta matéria não é objetiva e transgride todas as regras do jornalismo, pois tem forte cunho emocional.

20/11/2017




quinta-feira, 16 de novembro de 2017

GRAÇA

- Qual é a graça?
- Qual é a sua graça?
- Não tem graça!
- Você é uma graça! (nos sentidos carinhoso ou irônico)
- Que engraçado!
- Desgraçado!
- Sem graça!!
- Ave Maria, cheia de graça!
- Muchas gracias.
- Gracias a la vida que me ha dado tanto!

- AFINAL: O QUE É A GRAÇA?

        Uma palestra na pequena cidade de Garanhões é realizada para discutir o tema. Esse é o mote da deliciosa e descomprometida comédia de Eloisa Vitz, nova montagem do Grupo Gattu em cartaz no aconchegante Teatro do Sol em Santana.
        Uma organizadora/mediadora do encontro (Laura Vidotto) tenta por ordem na mesa constituída por um aloprado crítico chamado Débil (Daniel Gonzales), um professor pernóstico (Rodrigo Vicenzo) e uma doutora em qualquer coisa (Mariana Fidelis). Cada um deles mostra os exemplos mais esdrúxulos de graça para uma plateia que não existe. Isso mesmo! A assessora de imprensa da cidade se esqueceu de divulgar o evento.
        O elenco se reveza em diversas personagens: os habitantes da cidade, os participantes da mesa já citados e as figuras que ilustram os exemplos de graça. O texto e a montagem dirigida pela autora privilegiam o teatro de grupo permitindo que cada ator tenha seu momento de destaque. Mesmo assim é impossível não nomear os trabalhos de Daniel Gonzales, com ótimo tempo de comédia; de Rodrigo Vicenzo, bela e forte presença cênica em todas as personagens que interpreta e de Miriam Jardim que demonstra  que é fácil ser Deus para quem já foi Timbiras em A Falecida.
        A peça contém vários elementos do assim chamado teatro do absurdo e não pretende, absolutamente, dar uma resposta para o que é a graça, nem filosofar a respeito. Feito para divertir o espetáculo cumpre totalmente o seu objetivo e não deixa de mostrar que a melhor resposta para a pergunta está na canção de Violeta Parra Gracias a la Vida: na graça de viver está a verdadeira graça.
         Assisti ao espetáculo na noite da estreia quando houve deliciosa confraternização entre atores e público ao final com champanhe e bolo. O acolhimento é um dos pontos fortes do Grupo Gattu e isso, somado a um bom espetáculo só traz alegria para o espectador.



        GRAÇA está em cartaz de terça a sexta às 20h, sábados às 21h e domingos às 19h com entrada franca no Teatro do Sol (Rua Damiana da Cunha, 413 – Santana). Reservas: 3791-2023.


16/11/2017

domingo, 12 de novembro de 2017

VOU VOLTAR

PONTO DE PARTIDA CONTA EL GALPÓN



        O Grupo Ponto de Partida de Barbacena pretendia montar espetáculo que tratasse de refugiados que têm nas fronteiras suas piores inimigas e particularmente lhes interessava aqueles exilados políticos que tiveram que buscar asilo em outros países, tendo saído de seus países após perseguições, prisões e torturas. Em suas pesquisas o grupo encontrou na trajetória do Grupo El Galpón do Uruguai o mote para a presente encenação. El Galpón foi fundado em 1949 (o grupo ainda em plena atividade em Montevidéu está prestes a completar 70 anos) e em 1976 por decreto da ditadura militar teve sua sede fechada e todos seus bens confiscados. Vários integrantes do grupo se refugiaram na Embaixada do México, país que lhes concedeu asilo político. A peça do Ponto de Partida inicia nesse ponto, fala dos oito anos de exílio do grupo no México (1976-1984) e de sua emocionada volta à terra natal.
        A dramaturgia do espetáculo assinada pela também diretora Regina Bertola foi montada como uma colagem de textos de Mário Benedetti, Eduardo Galeano, Bertolt Brecht e de depoimentos de remanescentes do grupo uruguaio recolhidos pelo grupo mineiro.
        Nove atores (cinco mulheres e quatro homens) representam atrizes e atores do Galpón, acompanhados por dois músicos (Pablo Bertola ao violão e Pitágoras Silveira nos teclados). Com muita emoção o elenco mostra as tristezas, mas também as alegrias do grupo exilado tanto no plano profissional/grupal como nas questões pessoais (a distância dos entes queridos, a morte de um irmão e a saudade das raízes). A trama é permeada por belas canções do cancioneiro latino americano, inclusive o brasileiro (não poderia faltar a emblemática Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque, talvez a mais bela canção já escrita sobre o tema do exílio). A parte musical é uma das mais bonitas deste significativo trabalho com excelente rendimento dos cantores/intérpretes.
        A tocante cena final mostra o elenco com bandeiras interpretando a volta ao Uruguai enquanto projeções mostram fotos dos participantes do Grupo El Galpón.
        Apesar de mostrar a história de um grupo estrangeiro acontecida há mais de 30 anos, a peça deixa clara a denúncia da situação caótica do Brasil atual.
        VOU VOLTAR está em cartaz no Sesc 24 de Maio apenas por mais uma semana: sexta (17) e sábado (18) às 21h e domingo (19) e segunda (20) às 18h.
        Nos dias 17, 18 e 20 eles apresentam o musical MINEIRAMENTE, sempre às 13h.
        NÃO PERCA a oportunidade de se emocionar com o belo trabalho do Grupo Ponto de Partida.

12/11/2017

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER


        Um palco nu. Três atrizes vestidas discretamente com macacões, elas têm longos cabelos loiros e olhos claros como convém a intérpretes de personagens russas. Essas três mulheres vão nos relatar durante pouco mais de uma hora como era a vida das mulheres russas que foram combater na segunda guerra conforme o livro homônimo de Svetlana Aleksiévitch, escritora premiada com o Prêmio Nobel. A originalidade tanto do livro como do espetáculo é o olhar feminino sobre assunto sempre tratado e mostrado sob o ponto de vista dos homens. No meio de tantas atrocidades bélicas, elas chegam a sentir falta do uso de calcinhas, uma vez que o uniforme continha roupas íntimas pouco femininas.
        Louve-se em primeiro lugar a inteligente adaptação teatral do livro feita pelo elenco e pelo diretor Marcello Bosschar.
        A direção vale-se da bela iluminação de Aurélio de Simoni; da sua escolha da trilha sonora que vai desde dance music até uma envolvente música de Philip Glass (epílogo da ópera Kepler,) que ilustra uma das cenas mais fortes do espetáculo e , é claro, do elenco:
        Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscilla Rozenbaum revezam-se com muito talento ao interpretar/narrar as vivências de cerca de trinta mulheres que, num primeiro momento, levadas por seu patriotismo querem ir para a guerra e depois sofrem e testemunham os horrores dos campos de batalhas. O programa fornece o nome dessas mulheres. 

     
        De qualquer maneira, apesar de falarem muito sobre a morte, elas são sobreviventes e louvam a vida. E a peça termina com essa louvação em uma bela coreografia assinada por Carolyna Aguiar.
        Mais uma vez temos prova dos bons e sérios trabalhos oriundos do Rio de Janeiro.
        Pelo tema tratado e pela interpretação visceral das três atrizes, A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, é espetáculo obrigatório.

        Em cartaz no Teatro FAAP às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 18h até 17/12.

12/11/2017
       



sexta-feira, 10 de novembro de 2017

SCAVENGERS


Na foto, da esquerda para a direita: Davi Reis, Gabriela Rabelo, Rogério Brito, Fani Feldman e Ricardo Corrêa.

        Scavenger: Alguém que recolhe coisas descartadas por outros; catador de lixo; qualquer animal que come coisas refugadas e apodrecidas.
            A trama da peça do dramaturgo escocês Davey Anderson é simples: o jovem e bem casado empreendedor Marco, depois de alguns negócios bem sucedidos, vai à falência e acha a melhor solução no abandono de tudo tentando o suicídio afogando-se no mar. Mas Marco não morre e no encontro com alguns miseráveis ele vai descobrindo o sentido da vida, indo até o fundo do poço para depois transcender numa das cenas mais bem resolvidas, do ponto de vista poético, que temos visto em nossos palcos. Não vou estragar o prazer de quem vai assistir à peça me estendendo no que acontece em seguida.
        O grande achado dramatúrgico é a maneira como a história é contada: um grupo de atores vai narrando a saga de Marco, enquanto o ator que o interpreta, em certos momentos, também narra a história. A tradução cênica realizada pelo sempre competente e sensível Francisco Medeiros é engenhosa utilizando-se de microfones espalhados pelos quatro cantos do palco por meio dos quais os atores fazem a narração (um senão é que na sessão em que assisti algumas falas se tornaram inaudíveis, talvez por algum problema de sonorização). Uma plataforma central móvel que contém tampas por onde os atores entram e saem é o espaço onde se desenrola a ação propriamente dita. O cenário é assinado por Cesar Rezende Santana.
        Quatro bons atores (Davi Reis, Fani Feldman, Rogério Brito e a carismática Gabriela Rabelo) revezam-se nas narrações e na interpretação das personagens que se envolvem com o protagonista Marco, representado pelo talentoso Ricardo Corrêa.
        A produção é da Cia. Artera de Teatro (Ricardo Corrêa e Davi Reis) que já montou Dadesordemquenãoandasó do mesmo autor e o polêmico e assustador Bug Chaser-Coração Purpurinado. As três montagens estão em cartaz na cidade.
        Destaque para a trilha executada ao vivo por seu autor Tiago de Mello e para a significativa iluminação de Fran Barros.
        SCAVENGERS está em cartaz no Centro Cultural São Paulo às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 20h até 05/11.

29/10/2017




SE EXISTE EU AINDA NÃO ENCONTREI





       Esta peça do jovem dramaturgo inglês Nick Payne (1984-) mostra, ao contrário do filme “Teorema”, como uma família disfuncional pode se reestruturar e se humanizar com a chegada de um parente (irmão do pai) que, a princípio, parece o mais disfuncional de todos os outros componentes (pai, mãe e filha).


       A encenação de Daniel Alvim dá margem a bons trabalhos de Helena Ranaldi (ótima nas cenas em que tem que ser enérgica), de Leopoldo Pacheco (disfarça a gagueira do pai de modo brilhante) e de Lyv Ziese (a filha gordinha complexada), mas quem dá um show de interpretação é Luciano Gatti como o tio extrovertido que com seu calor humano derrete a geleira da casa.


       SE EXISTE EU AINDA NÃO ENCONTREI está em cartaz no Teatro Eva Herz até 10/12 com sessões aos sábados (21h) e aos domingos (19h).


30/10/2107

CÉUS


        Em entrevista quando esteve no Brasil em 2014 o dramaturgo canadense de Quebec Robert Lepage (1957-) comentou que procura fazer espetáculos que tenham duas histórias: uma com H maiúsculo (universal) e outra com h minúsculo cujo tema cotidiano/familiar seja uma porta para o espectador melhor compreender a primeira. Nota-se igual procedimento no libanês Wajdi Mouawad também radicado em Quebec (1968-) tanto em Incêndios; onde H era a guerra (provavelmente do Líbano) e suas consequências, e h o drama familiar da protagonista Nawal; como em Céus onde H é o terrorismo e h os dramas privados das cinco pessoas confinadas em missão secreta em um bunker com o objetivo de detectar onde e quando poderão ocorrer ataques terroristas. Mouawad lida bem com o mistério e o suspense que são desvendados sempre ao final da trama, mantendo o interesse do espectador em suas mãos.
        O cenário bastante simples de Fernando Mello da Costa consta de uma grande mesa com computadores onde se desenvolve a trama H, enquanto as histórias h são feitas sobre uma cama que entra e sai de cena e que representa o privado, o pessoal das personagens e suas relações com o mundo exterior. São quatro homens e uma mulher, além da citação de um sexto componente que cometeu suicídio. A descoberta das razões do suicídio, a agitação e a urgência de procurar por futuros ataques, além dos dramas pessoais de cada um são as molas propulsoras deste bem urdido drama de Mouawad.
        Espetáculo desse tipo necessita de bons atores capazes de darem conta tanto de H como de h e o diretor Aderbal Freire Filho soube escolher o elenco como também focar toda a sua direção no mesmo. Iluminação (Maneco Quinderé) e figurinos (Antônio Medeiros) bastante discretos, como exige a encenação; além das poderosas projeções (Radiográfico) embaladas pela potente trilha sonora de Tato Taborda.



        Felipe de Caroli desempenha o jovem criptógrafo Clément que irá tentar decodificar as informações contidas no computador de Valery (o suicida) e é responsável por longo discurso onde se desvenda o mistério da morte de Valery, os outros integrantes masculinos do grupo são Marco Antônio Pâmio, Rodrigo Pandolfo e Isaac Bernat todos em excelentes intervenções. A personagem feminina Dolorosa Haché é bem representada por Karen Coelho.
        O mais que grito, na verdade um urro dilacerante que encerra a peça é assim descrito pelo autor: “... me dei conta de maneira monstruosa o quanto ele estava há muito tempo calado dentro de mim. De sofrimento em sofrimento, ele tinha se sedimentado sob a camada opaca das razões e das aceitações, na resignação das tristezas que nos tira a coragem para viver o dia seguinte”. O som dessa voz ecoa por toda a plateia deixando o espectador atordoado mesmo depois que as luzes da plateia se acendem.
        Céus não é uma peça fácil. Trata de assuntos contemporâneos graves e tem desfecho há anos luz de um happy end, mas é muito necessária para se refletir sobre os tempos cruéis em que vivemos.
        Louve-se a iniciativa do produtor e idealizador do projeto Felipe de Carolis de trazer para o Brasil a obra tão importante de Wadji Mouawad.
        A peça é o marco inicial da nova curadoria do Teatro Vivo feita por André Acioli. O teatro deve passar por reformas modernizadoras no início de 2018.
        CÉUS está em cartaz às sextas (20h), sábados (21h) e domingos (18h) no Teatro Vivo até 10/12/2017. NÃO DEIXE DE VER.

31/10/2017



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O REI DA VELA- ANTES E DEPOIS


O REI DA VELA - ANTES


Capa do programa de 1967


        Dedico um capítulo de meu livro O Palco Paulistano de Golpe a Golpe (1964-2016) à montagem de O Rei da Vela de 1967. É uma das encenações mais significativas dentre as mais de 3500 a que assisti nesse mais de meio século como espectador.  Tenho na memória o delirante segundo ato, sobre o qual escrevi “No primeiro e no último atos, a peça extremamente atual de Oswald de Andrade colocava em questão aspectos importantes, como a usura, os malefícios do capitalismo, a importância da luta de classes e a dependência aos Estados Unidos, mas os fundamentos do que viria a ser o tropicalismo e o germe dos futuros espetáculos de José Celso estavam no segundo ato, onde um telão de Hélio Eichbauer, pintado nos moldes das antigas revistas musicais, mostrava uma Baía de Guanabara com cores fortes. Na parte superior, havia – de certo modo adotando proposição épica - a frase de Olavo Bilac “Criança... não verás país nenhum como este”, originalmente escrita em um contexto totalmente diverso e que ironizava a cena apresentada. Defronte a esse cenário, desfilavam as personagens da "família" brasileira: Dona Cesarina, Totó Fruta do Conde, Dona Poloquinha, Joana (João dos Divãs), Heloisa de Lesbos, Abelardo, entre outros. A cena escarnecia com muita ironia e humor dos costumes e valores da burguesia nacional. Ria-se muito. As frases de efeito, criadas pelo autor e tão bem articuladas pelo afiado elenco, eram muito boas, e algumas delas viraram jargão na roda de amigos que frequentavam teatro”

        Pois é, escrita em 1933 ela era atual nos obscuros anos da ditadura militar e, ao que aparece, contínua atualíssima no catastrófico Brasil de 2017.

        Não é sem certo temor que vou revê-la no próximo domingo. A lembrança da montagem de 1967 é muito forte. Não estarão lá Edgard Gurgel Aranha, Etty Fraser, Fernando Peixoto, Liana Duval, Ítala Nandi e tantos outros. Caberá ao Zé Celso e ao Renato Borghi manterem a chama do clima revolucionário que a peça ainda tem.
 
 

27/10/2017

 
O REI DA VELA - DEPOIS
 
 
        Fica difícil colocar em palavras as sensações que tive ao rever, 50 anos depois, a remontagem de O REI DA VELA dirigida por Zé Celso Martinez Corrêa.
 
        A primeira foi de espanto ao constatar a atualidade de uma peça escrita há 80 anos em plena ascensão do nazi-fascismo.
 
        A segunda foi a constatação de como eu era ingênuo aos 23 anos, quando assisti a peça pela primeira vez e como hoje, após ter sentido e ainda estar sentindo na pele os malefícios desse sistema capitalista selvagem consigo entender melhor o que Oswald de Andrade denunciava no texto em 1933 e o que Zé Celso tão bem traduziu cenicamente em 1967, ano que precedeu o famigerado AI-5.
 
        A terceira foi de temor, ao confirmar que o Brasil e o mundo de hoje não estão muito diferentes daqueles que precederam a segunda guerra mundial. O que está apresentação de 2017 está precedendo?
 
        A quarta foi a alegria de ver a energia que Renato Borghi extrai de sua própria fragilidade em função da idade e de um problema sério de coluna, recriando de forma magistral o Abelardo I de meio século atrás. Assistir ao embate dele com Zé Celso como Dona Poloquinha no segundo ato é daqueles raros momentos que só o teatro pode oferecer.
 
        A quinta foi a surpresa de ver recriados nos mínimos detalhes os cenários de Hélio Eichbauer.
 
         A sexta foi o prazer de ver como a tecnologia do século XXI (sonorização, sonoplastia, iluminação) conseguiu enriquecer a montagem de 1967, sem descaracterizá-la.
 
        A sétima foi a surpresa de, desta vez, ter gostado menos do segundo ato, que foi o meu favorito em 1967. Aqui senti falta do elenco original que dava maiores brilho e ritmo à divina “decadence” da família brasileira.
 
        A oitava foi o aperto no coração e a raiva ao ver baixar os painéis dos finais do segundo ato (“Criança, não verás jamais país como este”) e do ato final (“Respeitável público! Não vos pedimos palmas...”).
 
        E finalmente a nona e última: a vontade de ir à luta após a corajosa fala do sempre brilhante e lúcido Zé Celso após o final da peça conclamando o público ao desacovardamento. Suas palavras do que seria uma São Paulo cultural passando pelo Oficina, pelo terreno que pretendem construir torres, pela casa da Dona Yayá, pelo TBC, chegando até o Parque Augusta me levou a acreditar numa utopia atingível e na esperança de dias melhores para o planeta Terra fazendo brotar lágrimas nos olhos.
 
        VETA as TORRES!
 
        ABAIXO A CANALHADA!
 
        E parafraseando Oswald de Andrade: LUTEMOS POR ESSA ENJEITADA, A CULTURA BRASILEIRA!
 
        URGE que os jovens assistam a O REI DA VELA! Os ingressos estão quase esgotados até o fim da temporada, mas vale tentar. Sábados às 19h e domingos às 18h, só até 19/11 no Sesc Pinheiros.
 
        OBS 1: O programa da peça é um primor com reprodução dos cenários, textos esclarecedores e belas fotos das personagens vestindo os figurinos criados por Hélio Eichbauer (são citados todos atores que criaram as personagens ao longo dos anos).
        OBS.2 (a título de propaganda!!): Meu livro “ O Teatro Paulistano de Golpe a Golpe (1964-2016)” contém ampla matéria com fotos e ficha técnica completa da montagem de 1967.
 
        30/10/2017