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sábado, 30 de novembro de 2019

TODOS OS SONHOS DO MUNDO



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Álvaro de Campos)


                Esses versos que abrem o poema Tabacaria do heterônimo de Fernando Pessoa servem de fecho ao solo de Ivam Cabral ora em cartaz na cidade. E esse é um final com chave de ouro para espetáculo que durante sua hora de duração mantém o espectador envolvido em uma aura de delicadeza e humanidade.
        Como bom contador de histórias, Ivam nos relata sobre sua infância em Ribeirão Claro no interior do Paraná, sobre sua família humilde, seus irmãos “quase” todos com nomes iniciados com “I” e sobre habitantes da cidade que circulavam pela igreja, pela praça, pelo cafezal e pelo cemitério, paisagens essas que se presentificam aos olhos do público tal o poder da palavra do ator. As narrativas sobre a trajetória de um dos seus irmãos, da Jane e da Lila são tocantes e envolventes mantendo os espectadores com lágrimas nos olhos durante toda a apresentação. E tudo isso nos faz refletir sobre o famoso “E se?”. E se Jane não tivesse cometido aquele ato acidental? E se Lila não tivesse vindo para São Paulo naquele verão? E se o filho de Lila não tivesse nascido? Que rumos teria tomado o mundo? Tudo acontece ao acaso? E o destino?...
        Vestido com terno xadrez colorido e gravata borboleta e forrando aos poucos o chão do palco com pétalas de rosa, Ivam vai desfilando suas histórias permeando-as com poemas de Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Clarice Lispector, Cecília Meirelles e o já citado Fernando Pessoa. Como se pode notar, suas histórias estão em ótima companhia. O roteiro do espetáculo é dele e de Rodolfo García Vázquez e este assina também a discreta direção do espetáculo.
        A maioria das narrativas tem um toque de tristeza perante a violência do mundo, os preconceitos, as doenças e a finitude da vida, mas viver na plenitude o tempo nos é oferecido por aqui é a mensagem que esse trabalho tão delicado nos passa. E o público sai do teatro com uma lágrima nos olhos, um aperto no coração e uma vontade enorme de abraçar a humanidade.
        Ivam comentou ao final do espetáculo que estava receoso de trazê-lo para São Paulo. Caso isso ocorresse ele estaria nos privando de um dos mais belos e comoventes trabalhos a que a cidade assiste neste conturbado 2019.
 

        TODOS OS SONHOS DO MUNDO está em cartaz no Satyros 1 até 15/12. De quarta a sábado às 21h e domingo às 19h. IMPERDÍVEL

        30/11/2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O BEIJO NO ASFALTO



        Na noite em que assisti a O Beijo no Asfalto, o diretor Bruno Perillo me perguntou sobre outras montagens a que eu havia assistido dessa obra prima de Nelson Rodrigues e curiosamente nenhuma veio à minha lembrança, provavelmente porque todas elas deveriam ter ficado naquela zona cinzenta, ou seja, nem muito boa e nem muito ruim.
         Fazendo uma pesquisa em meus arquivos descobri que a primeira vez que a assisti foi em 1970 dirigida por Antonio Pedro em produção do Teatro Oficina e talvez em função do tempo eu não tenho maiores recordações da mesma. Obviamente não assisti à histórica montagem carioca de 1961 dirigida por Fernando Torres escrita por encomenda de Fernanda Montenegro que interpretava Selminha.
 
1961
 
1970
 
        Ao que eu saiba nas décadas restantes do século XX ela não foi montada em São Paulo, recebendo, porém, uma dezena de encenações nas primeiras décadas do novo milênio das quais vi apenas duas vindas ambas do Rio de Janeiro, a primeira em 2001 dirigida por Marcus Alvisi e a outra, uma equivocadíssima versão musical dirigida por João Fonseca com passagem relâmpago por aqui em 2018. Por razões diversas nada de memorável restou dessas montagens, sendo que minha maior referência sobre a obra é o texto em si e o magnífico e surpreendente filme dirigido por Murilo Benício em 2017.
 
2017 (filme)

        Tudo isso para escrever que a montagem de Perillo é a mais significativa a que assisti desse que junto com A Falecida é um dos melhores textos de Nelson Rodrigues; ele é enxuto e tem curva dramática perfeita com a revelação final soando sempre surpreendente, mesmo para aqueles que conhecem a peça e o seu desfecho. Apesar de certos ares de preconceito em relação ao homossexualismo, a peça toca em pontos importantes como a criação de fake news em favor da venda de notícias e a violência da polícia com pessoas inocentes. Nada mais atual para os dias de hoje.
        A montagem de Perillo também é enxuta contando com recursos precisos como a cenografia (Marisa Bentivegna), os figurinos (Anne Cerruti), a bela iluminação (Aline Santini) e a trilha sonora (Dr. Morris) para contar na íntegra o texto do grande dramaturgo. Os faróis de automóvel ao fundo e a presença dos atores no palco mesmo quando não estão em cena são detalhes que valorizam a encenação.
        Um bom elenco e a perfeita adequação ator/personagem são essenciais para as peças de Nelson Rodrigues onde convivem o drama, o melodrama, o humor e a tragédia em um balanço que um mau intérprete pode desfazer.
        Amado Ribeiro, umas das personagens mais grotescas do universo rodrigueano é interpretado com equilíbrio por Roberto Audio. Com um pouco mais de histrionice Heitor Goldflus interpreta o detestável Delegado Cunha. Valdir Rivaben reforça as cenas de humor como o não menos detestável Aruba e também como o colega de trabalho Werneck. Completa a turma dos detestáveis, Lucas Lentini como o Comissário Barros e o outro colega de trabalho Pimentel.
        O protagonista Arandir é interpretado com equilíbrio por Anderson Negreiros e Mauro Schames tem bons momentos como o amargurado Aprígio.
        No elenco feminino, Rita Pisano é Selminha, Natalia Gonsales é Dália e Angela Ribeiro se encarrega de três papeis: Dona Matilde, Secretaria e Viúva. Curiosamente as três atrizes, a meu modo de ver, tiveram gestos e vozes exagerados tendendo a interpretações expressionistas no primeiro ato da peça, algo que se equilibrou e se harmonizou com as interpretações masculinas nos atos seguintes.

        O BEIJO NO ASFALTO está em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental às quartas e quintas às 21h até 12 de dezembro. NÃO DEIXE DE VER.

        22/11/2019

 

domingo, 17 de novembro de 2019

SER JOSÉ LEONILSON



        A vida e a obra de Leonilson (1957-1993) são dramáticas e fascinantes: descobriu- se portador do vírus HIV no auge da fama e testemunhou em suas derradeiras obras a convivência com a síndrome; morreu precocemente aos 36 anos, meses antes de surgirem os coquetéis que trariam sobrevida e até cura aos infectados pelo vírus. Uniu-se assim uma obra surpreendente e bela a uma vivência apaixonada e apaixonante que seduziu todos aqueles que de algum modo conviveram com a doença e tiveram entes queridos levados por ela.

        Foi o caso do ator Laerte Késsimos que, seduzido pelo artista e sua obra, realizou experimentos públicos pintando, bordando e costurando obras baseadas naquelas de Leonilson.
        Os resultados dessa imersão estão na exposição Como Se Desenha Um Coração e no espetáculo Ser José Leonilson, ambos em cartaz no TUSP.
        Em cenário branco com objetos que reproduzem um ateliê, Késsimos inicia a peça muito bem lembrando o dia que anoiteceu em São Paulo no início de uma tarde de agosto de 2018 para em seguida  comentar as maneiras que tinha pensado em realizar a peça sobre Leonilson, citando várias datas importantes e situações ora da vida de Leonilson, ora de sua vida montando uma narrativa que confunde fatos das duas existências. Há momentos muito belos como a comparação das fotos dos dois, a entrevista com a mãe de Laerte e o passeio ao rio de sua infância. Késsimos que já realizou importantes trabalhos audiovisuais para espetáculos de terceiros caprichou bastante para seu próprio trabalho.
        Leonilson era chamado de Leo e o companheiro do ator também tem o apelido de Leo. A referência a um Leo ou ao outro causa bem vindas estranheza e confusão no público.
        Ser José Leonilson é espetáculo delicado realizado com muito amor e paixão, dirigido discretamente por Aura Cunha que aposta todas as fichas na palavra do ator e na parte visual criada por Késsimo e embalada pela cenografia de Marisa Bentivegna e pela iluminação de Aline Santini.
        Alguns minutos a menos fariam muito bem a esse belo projeto de Laerte Késsimos que tem dramaturgia de Leonardo Moreira, autor que sabe tão bem mesclar realidade e ficção em seus trabalhos.

        SER JOSÉ LEONILSON está em cartaz no TUSP de quinta a sábado às 20h e aos domingos às 18h. NÃO DEIXE DE VER.

        17/11/2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

SAMBA FUTEBOL CLUBE



        - Você não entende de futebol? Nem eu!

        - Você não gosta de futebol? Nem eu!

        Fui com o pé atrás assistir ao espetáculo em cartaz no Teatro Unimed, tendo como única referência positiva o espetáculo ser de Gustavo Gasparani, um especialista em musicais brasileiros, que já nos deu Otelo de Mangueira, Zeca Pagodinho, Gilberto Gil, Sambra, Bem Sertanejo para ficar apenas naqueles bem sucedidos espetáculos apresentados em São Paulo; além disso, Gasparani pertence ao conceituado grupo carioca Cia. dos Atores e já nos ofereceu o antológico solo Ricardo III que os palcos paulistanos estão clamando para que volte a ser apresentado por aqui.
 
Gustavo Gasparani
 
        Premiadíssima no Rio de Janeiro Samba Futebol Clube é uma verdadeira delícia representada por oito sensacionais cantores/atores/dançarinos/músicos, ora torcedores (fanáticos, é claro!), ora jogadores que cantam e coreografam belíssimas músicas do cancioneiro popular brasileiro que têm como tema o futebol e interpretam textos deliciosos de Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos, entre outros. Duas horas de pura curtição onde cabe até um pequeno alerta sobre os sombrios tempos do AI-5.
        Então esse é o recado: goste ou não goste de futebol você terá duas horas de puro prazer ao assistir mais esse ótimo trabalho de Gustavo Gasparani.
        As músicas são todas ótimas, mas como não vibrar com Fio Maravilha e todas as músicas de Jorge Benjor que tratam de futebol!

        SAMBA FUTEBOL CLUBE fica em cartaz só até 01 de dezembro no Teatro Unimed de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 18h. NÃO PERCA!
 

        12/11/2019

       

sábado, 9 de novembro de 2019

A VALSA DE LILI


 
        Beckett já colocou sua personagem Winnie enterrada até o pescoço em Dias Felizes e radicalizou ainda mais ao colocar apenas os lábios de uma atriz em cena, tudo isso para falar sobre o absurdo que é viver.
        Lili está presa e imóvel em uma cama de hospital por toda sua vida, mas neste caso trata-se de situação real, “absurdamente” real! Atacada pela poliomielite quando criança, Eliana Zagui ficou tetraplégica e foi praticamente abandonada pela família. Vivendo em um hospital, ela foi aprendendo a viver dentro de suas limitações tornando-se escritora, pintora e mais que isso, um exemplo de superação diante de tanto sofrimento.
        O livro Pulmão de Aço escrito por Eliana serviu de base para A Valsa de Lili, peça teatral escrita por Aimar Labaki e interpretada com grande paixão por Débora Duboc sob a direção de Débora Dubois.
        Débora Duboc está em cena com roupas brancas em um leito hospitalar coberto de lençóis também muito alvos (cenografia e “figurino objeto” de Márcio Vinicius). Só tem a cabeça para se comunicar e quando o público adentra o espaço ela se mostra muito feliz e descontraída sorrindo e cantando músicas da Rita Lee.
        O relato de Lili falando de sua infância, do cotidiano no hospital, de momentos alegres como a visita de Fabio Júnior, de outros muito tristes como o abandono da família e a morte de companheiros vizinhos de cama e ainda revelando indignação ao dizer que até para morrer depende de terceiros é muito comovente e Débora Duboc é no mínimo surpreendente na interpretação dessa figura extraordinária.
        A interpretação de Débora Duboc vem somar-se a outros não menos excelentes trabalhos femininos neste conturbado 2019 (Cássia Kiss, Esther Laccava, Juçara Marçal. Lara Córdulla, Tânia Bondezan, Analu Prestes, Virginia Buckowski, Juliana Sanches, Alejandra Sampaio, Helena Ignez, Yara de Novaes, entre tantas outras). O poder feminino é símbolo de resistência no teatro e o maior exemplo disso é a figura da grande Fernanda Montenegro do alto dos seus 90 anos de vida digna e laboriosa.
        A delicada direção de Débora Dubois está focada na interpretação de sua xará com o auxílio da cenografia e “figurino objeto” de Márcio Vinicius, tudo isso sob a iluminação sempre competentíssima de Aline Santini. Apesar do tema, em momento nenhum o espetáculo resvala para a emoção fácil, porém não há um espectador que não saia da sala enxugando as lágrimas e acenando para aquela figura imóvel que se despede dele com um sorriso nos lábios.
        Devemos essa grande demonstração de sensibilidade, humanidade e exemplo de vida a Eliana Zagui, Aimar Labaki, Débora Dubois e, é claro, a Débora Duboc em momento extraordinário de sua carreira de grande atriz. Que venham os prêmios, porque a interpretação para recebê-los já existe.
        Termino esta matéria com o dizer de Eliana Zagui: apesar do corpo imóvel, “minha alma nunca deixou de dançar”.


        A VALSA DE LILI está em cartaz no Giostri Livraria e Teatro (antigo TOP Teatro, ao lado do Teatro Sérgio Cardoso) às quintas e sextas às 21h até 13/12. ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL.

 

        09/11/2019

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

PUSH UP




        O que acontece quando surge uma vaga que representa promoção e perspectivas de ascensão ao topo do organograma de uma grande empresa? Os ânimos se inflamam, a competividade fica à flor da pele e são usadas estratégias nem sempre éticas para se conseguir o posto almejado. É disso que trata a peça de Roland Schimmelpfennig (1967 -), dramaturgo alemão pela primeira vez montado no Brasil.
 
O autor Roland Schimmelpfennig

        É interessante e original a maneira como Schimmelpfennig conduz a narrativa, usando em seu drama realista recursos de distanciamento tão caros ao teatro épico como as quebras de diálogo.
        São apresentadas três situações todas elas envolvendo duplas de personagens. Essas situações são sempre testemunhadas por dois funcionários da segurança da empresa que funcionam como uma espécie de narradores e fios condutores da trama. Há uma espécie de coro sem palavras que comenta a ação, formado por aqueles que não estão na cena; esse coro sobe e desce uma escada para entrar e sair de cena em recurso a princípio interessante, mas que pelas inúmeras vezes que ocorre acaba se tornando repetitivo e previsível. 
        O elenco de oito atores é bastante homogêneo e cada ator tem seu momento de destaque tanto nos monólogos dos vigias (Karlla Braga e Fabio Acorsi) como nos saborosos duetos: da frustrada presidente da empresa (Antoniela Canto) com a funcionária (Sabine Vasconcellos) que pleiteia uma vaga em Nova Dehli e para tanto já transou com o chefão, marido da presidente; do chefe e funcionária que já tiveram o melhor sexo de suas vidas e agora se odeiam (Isabella Lemos e Daniel Faleiros Migliano) e do chefe e funcionário, ambos candidatos à vaga de Nova Dehli (Fulvio Filho e João Bourbonnais). Esses embates de tão cruéis chegam a ser cômicos e o elenco sabe tirar partido das nuances de seus personagens.
        A direção de César Baptista tem seus pilares no desempenho do elenco, de sua movimentação em cena, no eficiente desenho de luz de Wagner Pinto e, principalmente, no objetivo de passar com a maior clareza o bom texto de Schimmelpfennig, que extrapola o cenário empresarial para mostrar que o ser humano da contemporaneidade tornou-se ainda mais individualista e competitivo, esquecendo-se da humanidade que deveria reger os relacionamentos humanos. Utopia? Pode ser. Mas a arte tem que buscar o utópico possível, como já disse Ariane Mnouchkine.

        PUSH UP está em cartaz no Viga Espaço Cênico às terças e quartas às 21h até 18/12.

        07/11/2019

       

         

 

domingo, 3 de novembro de 2019

RES PÚBLICA 2023


 
Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere. 

         A trajetória do grupo A Motosserra Perfumada é bastante acidentada. Em 2015 eles foram “contemplados” com o roubo de seu material de trabalho, segundo eles por outro grupo de teatro (!!), quando da temporada de seu primeiro espetáculo (Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou) no subterrâneo da Rua Xavier de Toledo. Em 2019 teve a temporada desta nova peça suspensa na Funarte por “aquele senhor rego pinheiro”, após o mesmo ler a sinopse da mesma (seria cômico se não fosse trágico). Não há dúvida que esses percalços alavancaram o interesse do público por Res Pública 2023, além, é claro, de seus inegáveis méritos que o boca a boca está tratando de divulgar; prova disso é a casa lotada e os lugares disputados em todas as sessões agora realizadas no Centro Cultural São Paulo que bravamente abrigou a peça censurada na Funarte por “aquele senhor rego pinheiro”. Nem tudo está perdido e a prefeitura da cidade com as ações de sua secretaria de cultura mais o SESC e o Itaú Cultural têm mostrado isso.

        E a peça? Pode-se adotar qualquer atitude ao assisti-la, menos a indiferença. Pós-tropicalista, anárquica, antropofágica, canibalista, excessiva, épica, brechtiana e outros mil adjetivos poderiam lhe ser aplicados, mas nenhum deles talvez esteja tão de acordo com uma fala do personagem John “Punk que é punk é contra o sistema e tem que gritar!” e isso é o que a peça faz durante todo o seu desenvolvimento com um final aterrador, pessimista e apocalíptico, remetendo aos finais dos filmes Cabaret e Os Deuses Malditos (Ah! A antropofagia!). É isso então? Trata-se de uma peça punk? Mais que uma classificação, o que importa é que o espetáculo da Motosserra busca desesperadamente uma maneira nova e transgressora da arte refletir sobre a realidade e isso é o mais importante de tudo, mesmo levando em conta certos excessos notados por este ranheta velho espectador.
        Os maiores excessos, a meu modo de ver, ficam por conta das atuações de Bruno Caetano e Camila Rios que, apesar de serem bons intérpretes, passam a maior parte do tempo aos gritos e em atitudes histéricas. Curiosamente o ator mais contido em cena é o próprio diretor e dramaturgo, Biagio Pecorelli e isso tem a ver com a personagem que interpreta, mas também com sua maneira de interpretação. Leonarda Glück é uma figura potente em cena como a travesti Valentina e tem seu grande momento no monólogo quase ao final, remetendo aos famosos apartes que Brecht colocava em seus espetáculos como a Jenny e os Piratas da Ópera dos Três Vinténs. Nota-se o uso desse valioso recurso de distanciamento em vários outros momentos da montagem. Mais antropofagia.
        Pensando em antropofagia, não há nada mais antropofágico na encenação do que a excelente trilha sonora que vai de Wagner a Ray Conniff passando, é claro, pelo punk executado ao vivo pelos músicos Edson Van Gogh e Jonnata Doll.
        É impossível ignorar o espetáculo deste grupo relativamente novo que sem dúvida tem muito a dizer, tanto na forma como no conteúdo, que mescla a República de Platão com fatos sobre a nossa República, talvez a mais periférica região do centro de São Paulo.
        Minhas referências talvez não sejam suficientes para analisar mais a fundo tudo o que se propõe em Res Pública 2023, mas minha intuição diz que a Motosserra Perfumada está em um caminho certo e inovador.
        Talvez pelo nome do grupo lembrei do provérbio brega citado em epígrafe que as garotas dos anos 1960 costumavam colocar em seus diários. Parafraseando o tal provérbio, eu diria “Sê como aquele espectador, que reflete sobre o que a Motosserra tem a lhe dizer, mesmo que isso não o perfume”.

        RES PÚBLICA 2023 está em cartaz no Centro Cultural São Paulo de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 20h. só até o final da próxima semana (10/11)

        OBS: É uma pena que a ingrata acústica do Espaço Ademar Guerra continue impedindo que se entenda na plenitude o que os atores estão falando, mesmo que gritem!  

        03/11/2019