Páginas

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

SUEÑO


Foto João Caldas

Existem obras que já nascem clássicas. Escrevi essa frase ao assistir a Cais ou Da Indiferença das Embarcações de Kiko Marques em 2012 e não tenho a menor dúvida de repeti-la para este Sueño de Newton Moreno.

         Moreno é autor muito presente nos palcos paulistanos desde o início do século quando estreou Deus Sabia de Tudo... em 2001. A partir daí foram mais de 20 textos encenados, entre eles obras significativas como Agreste (2004), Assombrações do Recife Velho (2005), Jacinta (2013), Um Berço de Pedra (2016) e As Cangaceiras (2019), mas nada se compara a Sueño que para mim é uma obra prima.

         Harmonizar Shakespeare e sua peça Sonhos de Uma Noite de Verão com as ditaduras latino americanas do último quarto do século 20 para retratar o Brasil de 2021 não é para qualquer um! Esse grande mérito não é o único: a forma como o encenador Moreno se utilizou para mostrar o conteúdo da peça do dramaturgo Moreno é também, no mínimo, deslumbrante.

         A peça é dividida em dois atos.


Assim começa SUEÑO

O primeiro ato inicia com uma cena digna de qualquer antologia que se faça sobre dramaturgia que é o diálogo entre um hilário Shakespeare (Paulo de Pontes) com Vine, um encenador chileno (José Roberto Jardim) no ano da queda de Allende e início da sangrenta ditadura chilena (1973). A partir daí mesclam-se cenas da peça de Shakespeare com o drama do casal revolucionário Laura (Michele Boesche) e Vine que tem que abandonar o Chile de Pinochet. A mãe de Laura (Denise Weinberg) e um representante dos torturadores (Leopoldo Pacheco) são figuras importantes desta parte da trama. Como não poderia deixar de ser, Puck está presente em vários momentos, na interpretação deliciosa de Simone Evaristo.

O segundo ato se passa vinte anos depois em 1993 quando Vine/Lisandro retorna ao Chile em busca de sua Laura/Hérmia. Aqui o tratamento é de melodrama com um desfecho que remete ao destino inexorável presente nas tragédias gregas e o autor/encenador o faz de modo brilhante, sem jamais resvalar para a pieguice e, mais importante, mantendo acesa a chama da reflexão no espectador sobre a situação socio política do Brasil atual.

Como não se emocionar até as lágrimas com o diálogo entre Vine e o velho ator que foi preso e torturado durante o regime militar? O público comunga com o elenco de um minuto de silêncio em homenagem a tantos mortos e desaparecidos em governos opressores. Estamos ali unidos lembrando dos mortos não só nas masmorras da ditadura, mas também daqueles que foram vitimados pela covid 19 por negligência desse vergonhoso desgoverno brasileiro.

A peça só podia terminar como começou: o encontro de Shakespeare com o agora envelhecido e desiludido encenador. Aos poucos a música cessa e as luzes vão se apagando.

O resto é silêncio!

Ao escrever estas linhas eu volto a me emocionar com a pujança e a beleza desse espetáculo. 

Literalmente deslumbrado com este magnifico trabalho, por obra e graça de Dionísio eu o assisti duas vezes em dois dias seguidos e na segunda noite pude apreciar de perto a performance de Gregory Slivar. Ele pontua todo o espetáculo com sons, ruídos e músicas, muitas delas compostas pela imortal Violeta Parra (1917-1967). Admirar a performance de Slivar é um espetáculo em si.


Seriam muitos os nomes envolvidos com a encenação de Sueño a serem elogiados aqui, haja vista a excelência da dezena de profissionais presentes na ficha técnica; sem querer esgotar enumero alguns deles:

Em primeiríssimo lugar, o elenco! Denise Weinberg é sempre poderosa quer como Elisabeth I, quer como a tragicômica mãe de Laura, quer como a patética Titânia. Leopoldo Pacheco tem a difícil função de humanizar o asqueroso militar torturador e se incumbe também de Oberon e de um funcionário de uma multinacional. Como já citado, Simone Evaristo se encarrega de Puck e também de uma feiticeira guerreira das florestas. Michele Boesche interpreta duas personagens antagônicas com extrema versatilidade. José Roberto Jardim é o único do elenco que interpreta um único personagem, ou melhor, dois (Vine e Lisandro) e o faz de maneira brilhante com sua costumeira elegância corporal, adquirindo neste caso ares de sofisticada coreografia. E o que dizer de Paulo de Pontes? Suas interpretações de Shakespeare, do operário minerador, de Píramo e do velho ator são absolutamente geniais. Existe alguma premiação que contempla coletivamente o elenco? Em caso positivo, este é o principal candidato. Sem esquecer de incluir a performance sonora de Gregory Slivar que é parte fundamental da encenação.

Mais elogios para a escolha da ambientação cênica no jardim do Teatro João Caetano, sob uma árvore ancestral, testemunha, sabe Deus, de quantos alegres ou tristes acontecimentos e o toque de mestre de Chris Aizner (cenógrafo) para emoldurar esse cenário natural. Aizner também assina os sugestivos figurinos junto com Leopoldo Pacheco. À luz natural do fim da tarde soma-se aos poucos a delicada iluminação de Wagner Pinto. Não há como esquecer da importante matéria de Ricardo Cardoso contida no programa da peça que muito auxilia a compreensão das várias camadas que compõem o texto e a encenação de Newton Moreno.

Esta matéria procura transmitir todas as sensações positivas e todas as reflexões em torno da temática proposta por este fundamental espetáculo que provoca perfeito equilíbrio entre coração e mente do espectador.

São pouquíssimos lugares (pouco mais de 20) e a peça tem apenas mais sete apresentações até o fim da temporada em 05/12: domingo (28/11) e na próxima semana de terça (30/11) a domingo (05/12). PROGRAME-SE E CORRA para assistir ao mais importante e belo espetáculo de 2021. Ingressos gratuitos distribuídos uma hora antes da apresentação.

 

25/11/2021

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário