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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A INOCÊNCIA DO QUE EU (NÃO) SEI


        Existe por parte de certo público uma ideia pré-concebida sobre o chamado teatro de periferia da cidade de São Paulo. Espera-se por produções baratas com comédias de fácil entendimento (popularescas e não populares) interpretadas por histriônicos atores amadores tocando bumbos e talvez sanfona; se existe uma mensagem, ela é sempre direta e maniqueísta.
        Se é que alguns poucos grupos insistem nessa tecla poderíamos citar mais de uma dezena daqueles que localizados fora do dito centro cultural da cidade realizam trabalhos de altas significâncias social, cultural, educacional e artística. A Companhia de Teatro Heliópolis sediada na bela Casa Mariajosé de Carvalho no Ipiranga insere-se no segundo caso, realizando trabalhos de alto nível que exigem algo mais dos jovens da comunidade de Heliópolis a quem prioritariamente o grupo destina seus espetáculos.


Casa Mariajosé de Carvalho

        A Companhia, fundada no ano 2000 por pouco mais que adolescentes da comunidade, foi se consolidando e hoje apresenta seus trabalhos em sede própria. Acompanho seus trabalhos desde 2012 quando assisti a O Dia em Que Túlio Descobriu a África que foi agraciado com o Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro daquele ano; em 2014 foi a vez de Um Lugar ao Sol e no atual A Inocência do Que Eu (Não Sei) nota-se uma evolução tanto na forma como no conteúdo, mas mantendo-se fiel ao objetivo de falar das problemas que afligem não só a sua comunidade, mas qualquer cidadão deste Brasil.
        Para tratar dos problemas da tão carente educação da Pátria Educadora o grupo inicialmente pesquisou três escolas de Heliópolis. Por meio desse material, do relato pessoal dos componentes do grupo e de improvisações na sala de ensaios formou-se um arcabouço que foi tratado dramaturgicamente por Evill Rebouças que assina o texto criado em um bem sucedido processo colaborativo. A encenação de Miguel Rocha mescla trechos narrados epicamente com performances resultantes das já mencionadas improvisações. Para o bom amálgama dessas duas formas teatrais o diretor contou com a colaboração de Alexandre Mate (provocador teatro épico) e de Carminda André (provocadora teatro performático).
        A produção do espetáculo é bastante sofisticada no que se refere à iluminação (Toninho Rodrigues), à ambientação cênica e à trilha sonora composta especialmente por William Paiva e executada ao vivo por Caio Madeira (piano), Fábio Machado (cello) e Giovani Liberato (guitarra). Chega-se ao requinte de ilustrar algumas cenas com os sons de dois liquidificadores.


Dalma Régia, David Guimarães, Klaviany Costa e Donizete Bomfim

        Os quatro intérpretes revezam-se para contar cada qual em dois movimentos as travessias de quatro pessoas em direção à aprendizagem; são elas: o menino rapaz que vence, a feliz mulher que se adapta, o caminhante em busca do saber e a mulher que come maçã. Klaviany Costa entrega-se visceralmente à negra que antes de tudo quer ser feliz apesar das adversidades e dos preconceitos; Dalma Régia possui uma natural veia cômica, mas sabe tirar partido dos momentos dramáticos além de dar água na boca ao comer a maçã e ao tomar vinho, felizmente compartilhados com o público. David Guimarães é uma bela e forte presença cênica e Donizete Bomfim sabe usar dramaticamente seus dotes de capoeirista.
        A peça tem caráter de obra aberta onde cada cena e cada objeto utilizado podem gerar múltiplas interpretações. O fato é uma faca de dois gumes que se ameniza pelo fato do grupo realizar debates ao final daqueles espetáculos dedicados aos estudantes da comunidade.
        A Inocência do Que Eu (Não) Sei é espetáculo militante de alta carga poética que merece uma viagem até a Casa Mariajosé de Carvalho (Rua Silva Bueno, 1533 – Tel: 2060-0318). Em cartaz aos sábados (20h) e aos domingos (19h) só até 04 de outubro.


30/09/2015

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA


DIVERSÃO E REFLEXÃO NA MEDIDA CERTA


        Pode-se imaginar uma comédia muito divertida e irreverente comentando e denunciando a morte de Vladimir Herzog ou de outros tantos presos políticos que morreram nos porões da ditadura militar? É mais ou menos isso o que o genial dramaturgo italiano Dario Fo fez com Morte Acidental de Um Anarquista, peça escrita em 1970 que teve excelente montagem brasileira em 1982 dirigida por Antonio Abujamra e tendo Antonio Fagundes no papel do Louco. Depois de quase 30 anos a peça retorna com direção de Hugo Coelho e com Dan Stulbach no papel principal. Infelizmente, continua muito atual; felizmente, porém, continua divertindo como nunca.

Capa do programa da montagem de 1982.

        Por acaso preso numa delegacia, um louco com mania de se fazer passar por outras pessoas vê a oportunidade de se travestir em juiz e assim questionar o delegado e o secretario de segurança sobre a morte de um anarquista que estava preso naquelas dependências e que foi torturado para poder confessar seu suposto envolvimento num atentado. O prisioneiro, segundo as autoridades, com medo de um rato suicidou-se se atirando pela janela ocasionando a tal morte acidental. Qualquer semelhança com casos ocorridos em dependências policiais brasileiras não é mera coincidência. Para enfrentar a chegada de uma jornalista o louco muda seu disfarce para um capitão e depois para um bispo até que é desmascarado pelo comissário que o estava interrogando no início da ação. Tudo ocorre em tom fortemente farsesco provocando gargalhadas no público durante toda a peça, inclusive no seu final impactante que não vou revelar aqui.
        Dan Stulbach aproveita para tirar o máximo de humor de todas as situações, bem auxiliado por um elenco afinado formado por Riba Carlovich como o secretario de segurança, Henrique Stroeter talvez histriônico em excesso como o delegado de polícia, Fernando Sampaio da Cia. La Mínima que aproveita seus dotes de palhaço para a personagem do subalterno comissário e Maira Chasseraux como a jornalista, acometida de afonia na noite em que assisti ao espetáculo e que o elenco aproveitou para fazer o público rir com a situação deixando a atriz à vontade e repetindo seu texto cada vez que ele se tornava inaudível. A participação de Rodrigo Geribello fazendo a sonoplastia ao vivo apenas com seus recursos vocais e um teclado é um espetáculo à parte e provocadora de muitas gargalhadas do público.
        O humor anarquista e demolidor de Dario Fo estão totalmente presentes na montagem de Hugo Coelho inclusive na introdução ao espetáculo onde o elenco recebe o público cantando uma canção e depois realiza um pequeno bate papo contando a origem da encenação que se deu nas conversas de Stroeter e Stulbach enquanto esperavam a passagem do João Gilberto no calçadão da praia do Leblon!! Tudo muito divertido, mas dando margem à reflexão e à indignação em relação ao nosso pobre país.
        MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA está em cartaz no Teatro Porto Seguro às quartas e quintas às 21h até 10 de dezembro.

25/09/2015

        

sábado, 5 de setembro de 2015

BONECAS QUEBRADAS



ASSIM RASTEJA A HUMANIDADE
 
 

         Impossível não se indignar e não ficar com um nó na garganta diante dos fatos relatados no espetáculo Bonecas Quebradas em cartaz só até domingo no Itaú Cultural: o assassinato cruel de jovens mexicanas pobres, a maioria de origem indígena, que após serem violentadas e torturadas são mortas e, não satisfeitos, os seus carrascos ainda as estraçalham, jogando pedaços de seus corpos nas areias do deserto.  Esses verdadeiros restos que dificultam a identificação das vítimas se assemelham a bonecas quebradas e às vezes são reconhecidos pelos familiares por um pedaço de vestido ou por uma pasta escolar que a menina portava quando foi assediada pelos bandidos. Para dramatizar esses fatos a equipe do espetáculo foi ao México e fez extensa pesquisa que resultou no pungente retrato apresentado ao público.
         A encenação de Verônica Fabrini começa de forma singela com uma atriz contando o trajeto que uma menina faz de sua casa para o trabalho ou do trabalho para a escola. Percursos feitos diariamente por cada um de nós e por nossos filhos. Mas os monstros estão à espreita, prontos para atacar e um percurso,agora de vida, pode estar sendo interrompido a partir daquele momento. Devidamente preparado para a violência que está por vir o público adentra o espaço cênico que tem ao fundo lençóis estendidos, bonecos pendurados no teto e a areia do deserto como chão.
         Usando imagens projetadas no fundo branco e no chão, depoimentos em telas de TV, canções indígenas e o talento das três atrizes a encenadora mostra toda essa barbárie de forma lúdica e poética ocasionando indignação sim, mas também fazendo o público refletir sobre esse momento sombrio por que passa a assim chamada humanidade. Impossível não expandir a indignação para a violência com as mulheres brasileiras, assim como, com os homossexuais e com aqueles que têm uma posição política diferente da sua. O ódio está presente na maioria das relações e o poder do dinheiro e do capitalismo selvagem resultam no menino morto naquela praia onde ele poderia estar brincando com seu baldinho de areia. A montagem de Bonecas Quebradas nos faz pensar sobre tudo isso.
         A dramaturgia bem amarrada do espetáculo é assinada por João das Neves e foi realizada em processo colaborativo com a diretora e as atrizes.
         É um grande prazer ver Isa Kopelman de volta aos palcos de São Paulo. Atriz de grande versatilidade que demonstrava grande potencial nos anos 1980, mas, ao que eu saiba se afastou dos palcos para lecionar na Unicamp.  Sua atuação como uma das gêmeas com um imenso laço de fita em A Aurora da Minha Vida -1981- é uma daquelas coisas que a memória insiste em manter em nossa cabeça. Em Bonecas Quebradas Isa tem momentos emocionantes como a mãe que procura em vão pela filha que desapareceu. Luciana Mitkiewicz sai-se bem tanto como uma das meninas que vai desaparecer como uma miss vulgar, protótipo do objeto a ser manipulado pelo macho. Finalmente Lígia Tourinho: torrente de emoções em cena, seu desempenho visceral com gestual e voz de alta potência não deixa o público desviar o olhar sobre ela.

         A lamentar a curtíssima temporada (apenas quatro apresentações) de espetáculo tão importante e oportuno para o momento em que vivemos. AINDA HÁ TEMPO ESPECTADORES: Hoje sábado (05/09) às 21h e amanhã domingo (06/09) ás 19h no Itaú Cultural. Ingressos gratuitos a serem retirados 30 minutos antes do espetáculo.

05/09/2015

terça-feira, 1 de setembro de 2015

ABNEGAÇÃO 2


UM SOCO NO ESTÔMAGO!
 
         Assisti a Abnegação 2 pela primeira vez em um dia particularmente infeliz para o público (um sério problema na linha azul do metrô por volta das 19h deixou toda a cidade congestionada) e também para o grupo Tablado de Arruar  (um refletor foi danificado e todas as cenas de fundo foram prejudicadas). Isso aconteceu no dia 30 de abril de 2015 na Oficina Cultural Oswald de Andrade e quando não acontece a esperada comunhão entre espectador e ator algo sai fora dos eixos. Saí do espetáculo sem confirmar as boas expectativas que tinha em relação a esse novo trabalho de Alexandre Dal Farra (Abnegação 1 foi para mim um dos melhores textos brasileiros da temporada de 2014), mas sentindo que ele tinha potencial para dar bons resultados.
         Na última semana revi o espetáculo agora no simpático Armazém Cultural e o que vi foi, no meu ponto de vista, uma outra peça.
 
 
         Abnegação 2 tem o subtítulo de O Começo do Fim e declara-se inspirada no caso do assassinato em 2002 de Celso Daniel que foi prefeito de Santo André. É dividida em dois planos: a vida pública e a vida privada (as cenas deste plano é que ficaram prejudicadas na primeira vez a que assisti a montagem). Tudo é corrupção, conchavo político e muita libertinagem (drogas, traições públicas e privadas). Enquanto as podridões do plano público são apresentadas em tom histérico, aquelas do plano privado são ditas à meia voz com os atores semiestáticos, mas em ambas fica patente a sordidez de que é capaz o ser humano em busca de poder e privilégios. A peça é um soco no estômago e não deixa pedra sobre pedra. O ser humano é tratado como mera mercadoria a base de troca tanto no sexo como na aquisição de valores e na luta pelo poder. Com a situação política atual creio que já estamos não mais no começo, mas a meio caminho do fim.
         Há quem diga que o espetáculo é uma virulenta crítica ao PT, o que não deixa de ser verdade, mas a sua abrangência é muito mais ampla: as intrigas palacianas apresentadas fazem parte de toda a política brasileira.
         Os diretores Alexandre Dal Farra e Clayton Mariano optaram por uma montagem literalmente suja: Jorge (a personagem que vai ser assassinada) cobre-se de cerveja para depois bêbado ser “lavado” com detergente; José (um dos articuladores do crime) banha-se em cocaína e por aí a fora. Tudo é muito exteriorizado nas cenas do plano público levando os espectadores a um proposital incômodo enquanto a pior forma de sedução é mostrada nas cenas do plano privado, o que também não deixa de provocar um mal estar. Neste plano os dois papeis femininos têm alta importância, algo que havia me escapado na primeira vez e as atrizes Ligia Oliveira e Alexandra Tavares desempenham seus papeis com garra e coragem. Vinicius Meloni sai-se bem, principalmente, no seu monólogo final, mas sua dicção em certos momentos dificulta a compreensão do texto. André Capuano é um ótimo ator, mas sua interpretação over over para uma personagem que já é over perde impacto no decorrer da ação. Vitor Vieira brilha no papel de Jorge; ele é um ator de forte presença cênica e suas atuações junto ao Tablado de Arruar tornam-se cada vez mais poderosas. Sua interpretação em Abnegação 2 vem juntar-se a outros notáveis trabalhos masculinos deste ano : Chico Carvalho (Consertando Frank), Daniel Costa (Urinal), Danilo Grangheia (Krum), Eduardo Mossri (Cartas Libanesas) Gustavo Gasparani (Ricardo III), Jarbas Homem de Mello (Chaplin) e Marcos Breda (Oleanna).
 
 
         Segundo o dicionário “abnegação” significa “desinteresse, renúncia, desprendimento, devotamento”. Esta aí mais uma ironia do dramaturgo ao dar esse título à peça.
         Abnegação  2  junta-se a Abnegação 1 e a Os Collegas (peça do ano 2003 da Bendita Trupe injustamente esquecida) na denúncia das intrigas e sujeiras da política brasileira (curiosamente um tema pouco tratado pelos nossos dramaturgos) e precisa ser vista por quem acredita que tomando conhecimento e refletindo sobre o assunto possa contribuir para mudar esse lamentável estado de coisas.
         O fôlego de Alexandre Dal Farra é bastante forte e como ainda há muita sujeira a ser mostrada ele já tem Abnegação 3 em preparo.

         ABNEGAÇÃO 2 está em cartaz no Armazém Cultural (Rua dos Cariris, 48 – próximo ao metrô Faria Lima) às quartas e quintas às 21h, só até o dia 10/09.


01/09/2015