Existe
por parte de certo público uma ideia pré-concebida sobre o chamado teatro de
periferia da cidade de São Paulo. Espera-se por produções baratas com comédias
de fácil entendimento (popularescas e não populares) interpretadas por histriônicos
atores amadores tocando bumbos e talvez sanfona; se existe uma mensagem, ela é
sempre direta e maniqueísta.
Se
é que alguns poucos grupos insistem nessa tecla poderíamos citar mais de uma
dezena daqueles que localizados fora do dito centro cultural da cidade realizam
trabalhos de altas significâncias social, cultural, educacional e artística. A
Companhia de Teatro Heliópolis sediada na bela Casa Mariajosé de Carvalho no
Ipiranga insere-se no segundo caso, realizando trabalhos de alto nível que
exigem algo mais dos jovens da comunidade de Heliópolis a quem prioritariamente
o grupo destina seus espetáculos.
Casa Mariajosé de Carvalho
A
Companhia, fundada no ano 2000 por pouco mais que adolescentes da comunidade, foi
se consolidando e hoje apresenta seus trabalhos em sede própria. Acompanho seus
trabalhos desde 2012 quando assisti a O
Dia em Que Túlio Descobriu a África que foi agraciado com o Prêmio da Cooperativa
Paulista de Teatro daquele ano; em 2014 foi a vez de Um Lugar ao Sol e no atual A
Inocência do Que Eu (Não Sei)
nota-se uma evolução tanto na forma como no conteúdo, mas mantendo-se fiel ao
objetivo de falar das problemas que afligem não só a sua comunidade, mas qualquer
cidadão deste Brasil.
Para
tratar dos problemas da tão carente educação da Pátria Educadora o grupo inicialmente pesquisou três escolas de
Heliópolis. Por meio desse material, do relato pessoal dos componentes do grupo
e de improvisações na sala de ensaios formou-se um arcabouço que foi tratado dramaturgicamente
por Evill Rebouças que assina o texto criado em um bem sucedido processo
colaborativo. A encenação de Miguel Rocha mescla trechos narrados epicamente
com performances resultantes das já mencionadas improvisações. Para o bom
amálgama dessas duas formas teatrais o diretor contou com a colaboração de
Alexandre Mate (provocador teatro épico) e de Carminda André (provocadora
teatro performático).
A
produção do espetáculo é bastante sofisticada no que se refere à iluminação
(Toninho Rodrigues), à ambientação cênica e à trilha sonora composta
especialmente por William Paiva e executada ao vivo por Caio Madeira (piano),
Fábio Machado (cello) e Giovani Liberato (guitarra). Chega-se ao requinte de
ilustrar algumas cenas com os sons de dois liquidificadores.
Dalma Régia, David Guimarães, Klaviany Costa e Donizete Bomfim
Os
quatro intérpretes revezam-se para contar cada qual em dois movimentos as
travessias de quatro pessoas em direção à aprendizagem; são elas: o menino
rapaz que vence, a feliz mulher que se adapta, o caminhante em busca do saber e
a mulher que come maçã. Klaviany Costa entrega-se visceralmente à negra que
antes de tudo quer ser feliz apesar das adversidades e dos preconceitos; Dalma
Régia possui uma natural veia cômica, mas sabe tirar partido dos momentos dramáticos
além de dar água na boca ao comer a maçã e ao tomar vinho, felizmente
compartilhados com o público. David Guimarães é uma bela e forte presença
cênica e Donizete Bomfim sabe usar dramaticamente seus dotes de capoeirista.
A
peça tem caráter de obra aberta onde cada cena e cada objeto utilizado podem
gerar múltiplas interpretações. O fato é uma faca de dois gumes que se ameniza
pelo fato do grupo realizar debates ao final daqueles espetáculos dedicados aos
estudantes da comunidade.
A Inocência do Que Eu (Não) Sei é espetáculo
militante de alta carga poética que merece uma viagem até a Casa Mariajosé de
Carvalho (Rua Silva Bueno, 1533 – Tel: 2060-0318). Em cartaz aos sábados (20h)
e aos domingos (19h) só até 04 de outubro.
30/09/2015