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terça-feira, 25 de outubro de 2016

KIWI


        Não fosse a menção à neve poderia se deduzir que a peça Kiwi foi escrita por dramaturgo terceiro-mundista retratando a crueldade e a violência que cerca a vida das crianças de rua das grandes cidades de países subdesenvolvidos, mas trata-se de autor canadense (Daniel Danis de Quebec) que retrata esse universo muito bem e com boa dose de realismo, mas também, de poesia.
        Várias famílias são expulsas de suas habitações em função da especulação imobiliária devida à proximidade dos jogos olímpicos e também com o objetivo de “sanear” o local da população miserável. Uma menina de 12 anos é abandonada por seus tios logo após o despejo. Sozinha vagueia pela cidade e acaba unindo-se a uma gangue de crianças que atendem por nomes de frutas e legumes. O líder é chamado de Pai e sua companheira de Manga. A menina é batizada de Kiwi e une-se a Lichia com quem passa por toda sorte de agressões e violências. Lichia, apesar de tudo, tem sempre a esperança de encontrar “O Sol! O Sol!”.
        Luciano Maza, que também traduziu o texto, realiza trabalho simples, mas muito eficiente e poético todo ele centrado no trabalho dos dois atores.
        Rita Batata é presença impressionante como Kiwi exteriorizando com muita emoção as surpresas da descoberta de um mundo inóspito, mas que também revela belas coisas como o relacionamento com Lichia.
        Lucas Lentini, que já mostrou seu talento e versatilidade em Sobre Cartas & Desejos Infinitos, confirma essas qualidades como o doce jovem que é obrigado a mostrar as suas garras quando ele ou Kiwi são ameaçados. Um pequeno senão, que não chega a comprometer sua bela composição, fica por conta de excesso de impostação de voz nos momentos mais dramáticos.
        Boa parte da peça é narrada, restando poucos momentos de diálogo entre os dois personagens. Os atores trafegam muito bem entre as duas linguagens, mostrando, mesmo quando narram, o forte elo entre Kiwi e Lichia.
        Os figurinos imaculadamente brancos (de autoria de Anne Cerrutti) vestidos por Kiwi e Lichia mostram que, apesar de maltratados, eles conservam sua pureza interior.
        Kiwi é peça sobre jovens, feita por jovens artistas e que deve ser muito apreciada pelo público jovem, porém, também entusiasma e surpreende um velho espectador como este que assina a presente matéria.
        KIWI está em cartaz na Sala Experimental do Teatro Augusta aos sábados (21h30) e domingos (19h) até 27/11.


25/10/2016

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ


        Na noite de ontem fui um dos privilegiados espectadores da leitura cantada de Lembro Todo Dia de Você, leitura esta, ao meu modo de ver, em “alto estado de encenação” com performances excelentes dos atores e dos músicos. Com acertos cá e lá, o âmago da montagem está pronto. É gratificante ser testemunha do nascimento de uma obra de arte.
        Davi Tápias dá conta com muito talento da sofrida personagem de Thiago que por inexperiência adquire o vírus da Aids e transmite o mesmo para seu companheiro Júlio. Anna Toledo arrebata tanto como a fria médica, como a emocional mãe. Todo o elenco interpreta e canta muito bem, sem deslizes, como se o espetáculo já estivesse em temporada. O mesmo pode se dizer dos músicos regidos por Rafa Miranda.
        O texto de Fernanda Maia, em colaboração com Herbert Bianchi, mescla na medida certa, drama e humor, não deixando nunca a trama cair no recurso fácil do melodrama; nesse aspecto os autores são auxiliados pela segura direção de Zé Henrique de Paula. Talvez haja necessidade de ajustes no segundo ato que está muito curto e inconvincente na questão: audiência de julgamento do comportamento de Thiago/programa de auditório.
        As músicas originais de Rafa Miranda estão em total harmonia com as letras de Fernanda Maia.
        É muito saudável e promissor assistir a um musical totalmente nacional. Atores e técnicos já vêm se preparando há algum tempo para espetáculos musicais. Agora chegou a vez de dramaturgos e compositores. Evoé! Finalmente ESTE NÃO É UM MUSICAL DA BROADWAY!

        CORRA: Hoje (12/10) acontece a ultima apresentação ás 21h no Teatro do Núcleo Experimental na Rua Barra Funda, 637. Poucos lugares. Gratuito.
       

12/10/2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

PAI, FILHO, PAI


Uma peça dos tempos da delicadeza


       A peça de José Eduardo Vendramini trata da relação pai/filho, tantas vezes mostrada no teatro, de maneira diferente da usual permitindo-se até a linguagem meta teatral e certa fragmentação na narrativa e obtendo belo resultado final.
       A cena inicial onde o filho, ainda no ventre materno, recusa-se a nascer e o pai tenta convencê-lo que, apesar de tudo, vale a pena conhecer o mundo da natureza, do teatro e da música é antológica por sua singeleza e originalidade.
       Vendramini, que também assina a direção, brinca com o fazer teatral e os atores interpretam essa brincadeira de maneira bela e natural, acompanhados ao acordeom por Daian Gobbi que pontua e ilustra as ações com conhecidas melodias que vão de Villa Lobos a Piazzolla. Os poucos objetos de cena são contrarregrados pelos próprios atores. Cenografia e figurinos discretos e eficientes de William Pereira.
       Ademir Emboava tem perfil e segurança para interpretar o pai e o jovem Bernardo Bibancos, que estreia no teatro com seus tenros 19 anos, o acompanha brilhantemente, tanto nas cenas mais poéticas como onde se exige maior rigor dramático, como aquela que mostra o diálogo entre Creonte e seu filho Hemon da tragédia Antígone de Sófocles.
       A peça é um bálsamo de delicadeza para esses tempos conturbados que vivemos, tempos esses tão bem lembrados no prólogo da peça, quando os atores fazem um retrospecto dos fatos acontecidos no Brasil a partir da renúncia de Jânio Quadros em 1961.
       PAI, FILHO, PAI está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade às segundas e terças às 20h.

       11/10/2016

       

domingo, 9 de outubro de 2016

UM BERÇO DE PEDRA


TURBILHÃO DE EMOÇÕES

Foto de Marcos Frutig

        Há muito tempo que não se via um espetáculo com carga emocional tão intensa como Um Berço de Pedra. O clima solene e trágico é prenunciado antes da peça começar com o som da lamentosa Sinfonia nº 3 do compositor polonês Henrik Górecki (cujo tema é a maternidade e a separação de entes queridos provocada pela guerra) e a visão de um campo de areia inóspito que será o cenário da peça.
        São cinco histórias de Newton Moreno todas elas envolvendo mães sempre em condições no limite da dramaticidade: uma procura os restos mortais do filho morto e enterrado no jardim da casa daquele que o torturou; outra, grávida, visita seu estuprador na cadeia; uma Medeia contemporânea destila seu ódio na prisão onde se encontra, junto com outras mulheres que assassinaram suas crias; duas mulheres de países inimigos se encontram (uma procura o filho que desapareceu e a outra busca um lugar seguro para parir seu filho) e assim por diante. A peça se iguala em clima e potencial dramático a outras pungentes obras como o poema Sobre o Infanticídio de Maria Farrar de Bertolt Brecht, a peça Incêndios do dramaturgo libanês Wadji Mouawad, o filme Duas Mulheres (La Ciociara) de Vittorio de Sica e a música Uma Canção Desnaturada (Curuminha) de Chico Buarque. Pode-se dizer que o texto de Moreno e a encenação de William Pereira não dão um minuto de trégua ao espectador. A tensão se instala antes da peça começar e segue até o dramático final onde um homem desesperadamente clama por sua mãe. As histórias são entremeadas por cenas de cortina onde uma atriz em êxodo permanente carrega uma mala e alinhava as tramas.

Lilian Blanc/Agnes Zuliani/Luciana Lyra/Eucir de Souza/Débora Duboc/Cristina Cavalcanti - Foto de Marcos Frutig

        O elenco é formado por cinco mulheres e um homem, todos excelentes. Cristina Cavalcanti tem seu grande momento ao interpretar a desesperada mulher grávida do homem que a violentou e certa hora, de joelhos, remete à Sophia Loren do já citado Duas Mulheres, quando esta se desespera por ela e sua filha terem sido estupradas por soldados inimigos. Inconscientemente o gestus se repete, pois as situações são idênticas. Pena não haver uma foto de Cristina na mesma posição para ser comparada com a de Sophia reproduzida abaixo.


         A Medeia de Luciana Lyra é visceral e é penoso acompanhar o seu monólogo tão violento e devastador. Lilian Blanc e Agnes Zuliani dão ares de tragédia às suas falas no jardim do torturador. Débora Duboc faz solenemente as cenas intermediárias e tem seu grande momento nas últimas cenas quando procura o filho desaparecido. Eucir de Souza vai da violência do estuprador à perplexidade quando uma mulher tenta vender o seu filho. Seu grito final por uma mãe que pode ser qualquer uma daquelas apresentadas é de tal força que vai ecoar por muito tempo na cabeça do público.
        Tanta tragédia é mostrada de forma lúdica tanto pela beleza poética do texto de Newton Moreno como pela encenação em tom operístico de William Pereira que também assina a cenografia, composta de areia e poucos adereços de cena, e a trilha sonora com obras de Villa Lobos. Os figurinos de Cristina Cavalcanti ajudam a completar a beleza do cenário.
        Um Berço de Pedra não é espetáculo para quem busca mero entretenimento. Trata de assuntos presentes na violência do mundo contemporâneo e, repito, não dá trégua ao espectador, fazendo-o se emocionar e refletir sobre as barbáries do nosso cotidiano. ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL PARA QUEM ACREDITA NO TEATRO COMO ARTE E REPÓRTER DO NOSSO TEMPO.
        Cartaz do Centro Cultural São Paulo às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 20h até 06/11.


09/10/2016

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ESCANDINAVOS

Foto de Marcelo Patu

        Escandinavos, texto de Denio Maués, dirigido por Nicole Aun e interpretado por Andrea Tedesco é, por uma série de razões, uma grata surpresa.
        Quando se lê a sinopse da peça que se inspira na relação amorosa entre o cineasta Ingmar Bergman e a atriz Liv Ullman imagina-se encontrar um drama denso e sombrio próprio do universo bergmaniano, no entanto, trata-se de uma deliciosa “quase” comédia onde a dor da perda é tratada de maneira muito original e até engraçada. O texto de Denio Maués é bastante contemporâneo na forma, mas preocupa-se em contar uma boa história que “merece os aplausos do público quando termina”. O texto vai da narração às ações de maneira imperceptível e nisso há um grande suporte da atriz que circula à vontade pelos dois meios. O autor brinca bastante com a linguagem do metateatro, o que dá sabor adicional à trama.
        A encenadora Nicole Aun enriquece o belo texto de Maués focando sua direção no trabalho da atriz e no interessante recurso do uso de cadeiras que representam os personagens da história. A iluminação de Jimmy Wong e Diego Gonçalves emoldura de maneira sóbria a bonita a cena e não se pode esquecer da criativa trilha sonora de Pedro Canales que reforça os sentimentos da atriz que terminou a relação com o diretor.
        Tudo isso seria inútil se não houvesse uma ótima atriz para interpretar a narradora e a atriz abandonada. Andrea Tedesco pega o público pelo colarinho desde a primeira cena, na penumbra, onde se vê sua silhueta rearranjando várias vezes as cadeiras (mais tarde descobre-se a razão) e o conduz até o final quando - mais uma surpresa! - canta um trecho do samba bossa nova Saudade Fez Um Samba de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli que aparentemente não tem nada, mas tem tudo a ver com a história.
        “Arte tem que surpreender...”, como já disse Ferreira Gullar e Escandinavos  nos surpreende durante todos os seus enxutos 50 minutos de duração.
        ESCANDINAVOS está em cartaz na Sala Experimental do Teatro Augusta às quartas e quintas às 21h até 27 de outubro. NÃO DEIXE DE VER.


06/10/2016

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

33 VARIAÇÕES/CARTOLA/HOJE É DIA DE MARIA/ESPERANDO GODOT

MÚSICA! MÚSICA!! MÚSICA!!!

         Depois da imersão nos espetáculos do MIRADA, voltei à ativa nos palcos paulistanos nesta semana e a música acompanhou todos os espetáculos a que assisti.


         33 VARIAÇÕES é o primeiro musical erudito apresentado em São Paulo. Texto do dramaturgo venezuelano Moyses Kauffman com produção caprichada (cenário, figurinos, adereços) de Wolf Maya que também atua e dirige. Nathalia Timberg brilha como a musicóloga que quer desvendar o mistério de Beethoven ter dedicado 33 variações a uma valsa medíocre do editor Diabelli. À medida que a peça avança as ações são ilustradas pelas variações interpretadas ao piano, também com muito brilho, por Clara Sverner. A peça se alonga demasiadamente com subtramas que envolvem a filha da musicóloga e seu namorado e que nada acrescentam à trama principal.
         Em cartaz no Teatro Nair Bello. Sextas e sábados (21h) e domingos (19h).


         CARTOLA – O MUNDO É UM MOINHO. A obra de Cartola é prato cheio para alimentar um musical, sua vida, no entanto, não teve tantos percalços dramáticos para compor uma peça de teatro. O recurso dramatúrgico utilizado pelo autor (Artur Xexéo) foi ambientar a peça nos dias de hoje nos bastidores de uma escola de samba onde se prepara uma homenagem ao grande compositor. Mais uma vez as subtramas (conflitos entre os participantes da escola) esticam desnecessariamente o espetáculo. Os melhores momentos são aqueles que focam o passado e a vida do músico, com destaque para Flavio Bauraqui (Cartola) e Virginia Rosa (Dona Zica). É curioso que não foram utilizados fatos da vida de Cartola que são elementos dramaturgicamente interessantes como a gênese da música que dá subtítulo à montagem (os conselhos à filha adotiva Creuza que se desviava do “bom caminho”) e a doença de pele que deformou o seu nariz.
         Em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso. Sextas e segundas (20h), sábados (21h) e domingos (18h).



         HOJE É DIA DE MARIA – O MUSICAL. Carlos Alberto Soffredini (1939-2001) é um dos maiores dramaturgos brasileiros e sua obra que mescla tão bem o popular e o intelectual ainda está para ser descoberta pelas novas gerações. Sua visita ao universo caipira rendeu a obra prima Na Carrêra do Divino, imenso sucesso de crítica e de público no ano de 1979 e também a fábula Hoje É Dia de Maria, mais voltada para o público infanto-juvenil. A trama é simples: maltratada pela madrasta a jovem Maria sai pelo mundo em busca de seu “dia” encontrando em seu caminho pássaros e duendes. Dan Rosseto e Ligia Paula Machado resolveram transformar a obra (adaptada por Francisca Braga) em musical ilustrado por canções populares da MPB que nem sempre se adéquam à ação apresentada (a música Comportamento Geral de Gonzaguinha, ícone da revolta diante da passividade do povo durante a ditadura militar, é o melhor exemplo disso). A montagem tem produção simples, mas caprichada na cenografia e nos belos figurinos de Kleber Montanheiro. A coreografia de Ligia Paula Machado baseada no balé clássico não combina com o ambiente rural onde se passa a ação. O elenco todo interpreta, canta e dança a contento com excelente acompanhamento do conjunto musical, mas quem rouba todas as cenas em que aparece é Kleber Montanheiro como a malvada madrasta em brilhante composição que remete ao deboche de Marília Pêra e ao histrionismo de Myrian Muniz. Suas entradas e saídas de cena com uma garbosa sombrinha remetem àquelas silhuetas do teatro de sombras e lembram uma “Mary Poppins da roça”, como bem observou Dan Rosseto. Contrariando a voga dos musicais a montagem é enxuta durando 90 minutos e sem intervalo, o que considero grande elogio.
         Em cartaz no Teatro Cetip. Sextas e sábados (21h) e domingos (19h).


         ESPERANDO GODOT. Musical? Pois é, não se trata de um musical, mas o encenador Elias Andreato introduziu algumas canções compostas por Jonathan Harold com letras de poemas de Beckett que se encaixam perfeitamente à sua concepção da obra. Elias adaptou o texto fazendo a primeira parte bem maior que a segunda, abandonando a rubrica “Eles não se mexem” ao final de cada ato e não dando intervalo entre atos. Curioso também que ao contrário de todas as encenações a que assisti (quase uma dezena, incluindo a inesquecível dirigida por Flavio Rangel com Cacilda Becker) a personagem de Vladimir (Claudio Fontana, excelente) é a mais frágil e o vigor fica com Estragon (Elias Andreato). Dignos de nota os trabalhos corporal e vocal de Clovys Torres como Lucky. A montagem tem visão mais otimista que o original do dramaturgo irlandês, uma vez que parece haver luz no fim do túnel quando Estragon e Vladimir dão-se as mãos e caminham. Para onde?
         Em cartaz no Tucarena. Sextas e sábados (21h) e domingos (19h).

05/10/2016