Páginas

quarta-feira, 29 de abril de 2015

VISITANDO O SR. GREEN


TEATRÃO SIM, E DAÍ?
 
 

        No ano 2000, sob a direção de Elias Andreato, Paulo Autran e Cassio Scapin representaram esta peça do norte americano Jeff Baron no Teatro Augusta. Com nova tradução de Rachel Ripani (a anterior era de Paulo Autran), a peça volta ao cartaz em nova roupagem desta vez dirigida por Cassio Scapin. Tenho boa lembrança da primeira montagem, mas a atual não fica nada a dever a ela desde a encenação até o trabalho dos dois intérpretes.
 
 
        O texto é bastante esquemático formado de pequenas cenas, cada uma delas mostrando uma visita que o jovem Ross faz ao Sr. Green por conta do cumprimento de pena a ele imposta por ter atropelado esse senhor. A sensação inicial de rejeição de ambas as partes vai se transformando em uma amizade aonde cada um deles vai revelando seus segredos e fraquezas criando conflitos que se resolvem com o happy end típico de textos comerciais norte americanos. Para que se obtenham bons resultados com esse tipo de texto é imprescindível que as interpretações sejam confiadas a bons e carismáticos atores e é exatamente o que acontece aqui.
 
 
        Após 12 anos de afastamento dos palcos é com muito prazer que testemunhamos a volta de Sergio Mamberti num papel feito sob medida para ele. Tirando partido de todas as nuances que a personagem oferece, Mamberti nos encanta e ao mesmo tempo nos irrita com as esquisitices e preconceitos do Sr. Green. Ao seu lado na peça e à sua altura no talento, Ricardo Gelli compõe Ross com muita propriedade, reafirmando-se como um dos melhores e mais versáteis atores da cena paulistana. A solidão -denominador comum das duas personagens- é de alguma maneira mitigada à medida que eles vão se conhecendo e aceitando um ao outro e os dois atores transmitem as emoções para o público que em muitos momentos tem que recorrer a um lenço para enxugar lágrimas que insistem em cair.
        Como produto de teatro comercial o acabamento do espetáculo é impecável desde os figurinos de Fabio Namatami, passando pela iluminação poética de Wagner Freire, pela trilha sonora de Daniel Maia que remete a canções judaicas e pelo cenário realista de Chris e Nilton Aizner formado pela sala de visitas do Sr. Green que tem ao fundo um sugestivo painel com a imagem difusa em azul do skyline novaiorquino.
        Este espetáculo é ótimo exemplo do que se acostumou a chamar de “bom teatrão”: texto palatável pelo grande público, mas de boa qualidade e tocando de leve em questões sociais (neste caso os preconceitos); direção correta e intérpretes que merecem a ida ao teatro. Palmas para Cassio Scapin, Sergio Mamberti e Ricardo Gelli!

        VISITANDO O SR. GREEN está em cartaz no Teatro Jaraguá às sextas (21h30), sábados (21h) e domingos (19h) até 19 de julho.

 

29/04/2015

       

terça-feira, 28 de abril de 2015

O TERNO



        Os fãs incondicionais de Peter Brook que me desculpem, mas ao meu modo de ver, o belo espetáculo O Terno é, em certo aspecto, equivocado.
 

        Um cenário simples e geométrico formado por cadeiras coloridas, algumas molduras e o terno do título é bastante promissor. A seguir um acordeonista entra em cena tocando uma melancólica serenata de Schubert remetendo a cenas fellinianas. Neste momento um ator narrador entra cena para situar a ação da peça inspirada no conto homônimo do sul-africano Can Themba (1924-1968).
        A trama é forte: na África do Sul segregacionista (História com H maiúsculo) acontece um drama familiar de adultério (história com h minúsculo, visto que cotidiana) que reflete o ambiente maior: ao descobrir que a mulher o trai um homem a obriga (e a ele também) a conviver com o terno abandonado pelo amante na hora da fuga. Situação opressiva e de alta tortura psicológica para a mulher que acaba morrendo em função disso. Tudo isso é mostrado com muita delicadeza, com certa dose de humor e com canções que permeiam a ação e naquilo que para maioria do público reside a qualidade maior da encenação para mim está o equívoco citado acima. Canções, piadinhas com os músicos e até uma cena onde o público é convidado a participar provocando as risadinhas e os aplausos de praxe nesse tipo de intervenção diluem a ação dramática resultando num espetáculo sem a carga dramática e política que o tema merece. A exceção fica por conta da cena onde o amigo (Makalepha ?) conta a Philomen (o marido) o caso de um cantor que teve suas mãos decepadas pelos soldados e ao ser desafiado a tocar a sua guitarra sem as mãos acha ainda forças para cantar uma canção. Esse fato é claramente inspirado no que aconteceu com Victor Jara em 1973 quando do golpe militar no Chile. Na peça a canção escolhida é Strange Fruits, libelo antirracista do compositor americano Lewis Allan imortalizado por Billie Holiday. Este é o único momento onde a segregação racial e a violência são mostradas da maneira que deveria ser a tônica geral do espetáculo.
 
 
        Os dois atores masculinos são excelentes tanto na parte narrada quanto na interpretação das personagens. A atriz que interpreta a esposa Matilda tem uma bela voz e empolga o público quando canta as canções, mas é inexpressiva como a mulher que sofre tamanha pressão moral e aqui reside mais um ponto fraco da peça.
 
 
        Os músicos são ótimos e até bons atores, mas se perdem nas gracinhas feitas a pedido do encenador.

        Peter Brook realiza este trabalho aos 90 anos. Tenho curiosidade em saber qual a linha que ele adotou na montagem anterior que não era musical e onde sua visão do mundo era outra. Acredito que a montagem era bem mais cruel do que esta e com certeza estaria mais de acordo com o que o tema sugere.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

COLÔNIA PENAL


 UMA COREOGRAFIA DO HORROR

        O espetáculo Colônia Penal da Cia. Carne Agonizante parte da obra de Franz Kafka (1883-1924) para retratar os horrores praticados nos porões da ditadura brasileira entre o nada saudoso período compreendido entre 1964 e 1985 em que os militares estiveram no poder. Muita gente foi torturada e a seguir morta ou desaparecida e a peça do coreógrafo Sandro Borelli mostra isso sem concessões com despojamento raro em nossos palcos.
 
 
        Durante cerca de uma hora presenciamos quatro burocratas da tortura comendo, se divertindo contando piadas preconceituosas e se revezando na impiedosa tortura de um suposto preso político. Um assustador boneco também está sentado à mesa presenciando impassível tudo o que ocorre em sua volta. No aterrador final a vítima é canibalizada pelos seus algozes numa cena tão dolorida quanto bela.
 
 
        A preparação corporal dos atores é imprescindível para acompanhar a brutal coreografia de Borelli que submete a vítima às mais violentas formas de tortura praticadas naquela época e que infelizmente deixaram certa herança até os dias de hoje.
        Dois atores/dançarinos (Everton Ferreira e Mainah Santana) revezam-se no papel da vítima. Na noite em que assisti ao pungente espetáculo foi a vez de Mainah se submeter ao papel. Cabe aos torturadores a difícil tarefa de aplicar os castigos realisticamente, sem, porém, machucar a atriz que representa a torturada. Um chute fora do lugar ou uma pisada num lugar vulnerável do corpo traria consequências graves.
        Só agora tive a oportunidade de assistir a Colônia Penal, uma vez que o trabalho estreou em 2013 e já cumpriu várias temporadas, inclusive esta que terminou no último domingo (26 de abril).
        Este espetáculo deveria ser apresentado em escolas como aula de Ética e Cidadania e torna-se particularmente urgente quando desavisados (?) jovens clamam nas ruas pela volta dos militares ao poder.
        Não é fácil assistir a Colônia Penal, pois como escrevi acima o espetáculo não faz concessões nem dramáticas nem estéticas. A coreografia de Borelli é acompanhada eficientemente pela seca trilha sonora de Gustavo Domingues formada de sons ensurdecedores e pelos figurinos burocráticos dos torturadores concebidos pelo próprio elenco. Não é fácil, mas é extremamente necessário! Se voltar ao cartaz, não perca.

        COLÔNIA PENAL estava em cartaz no KAZULO ESPAÇO DE CULTURA E ARTE da Cia.Carne Agonizante, situado na Rua Sousa Lima 300, próximo ao Teatro São Pedro e ao Teatro do Núcleo Experimental.

        Se você quer uma fotografia do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano para sempre. (George Orwell):
 
 
FOTOS DE JÚNIOR CECON

 

27/04/2015

sábado, 25 de abril de 2015

TEATRO PORTO SEGURO


Foto de Mario Rodrigues
 
        Na última quinta feira 23 de abril de 2015 o novo Teatro Porto Seguro foi apresentado à imprensa por Fábio Luchetti, presidente da empresa que dá nome ao teatro. Segundo ele o novo teatro em conjunto com o espaço cultural que será inaugurado em breve faz parte de um projeto maior que tem como objetivo a revitalização do entorno que está bastante deteriorado. O teatro situado na Alameda Barão de Paranapiacaba, 740 nos Campos Elíseos tem próximo de si por um lado o Sesc Bom Retiro, o Teatro Grande Otelo e a Sala de São Paulo, e por outro lado a cracolândia; pensando na questão de segurança haverá ao final dos espetáculos disponibilidade de vans que transportarão o público interessado até a estação de metrô mais próxima (Luz).
 

        O teatro dispõe de excelente infraestrutura (sala de espera, cafeteria, amplos e confortáveis camarins, sala de ensaios, sala de imprensa, tamanho e versatilidade do palco, fosso de orquestra, estacionamento e até uma enfermaria para casos de emergência dos artistas).
 
 
 
        A sala dispõe de bela plateia com cerca de 330 poltronas e balcão com cerca de 170 lugares, num total de acomodações para 508 pessoas.

        O gerente do teatro é André Acioli que a partir de agora dividirá sua simpatia entre este teatro e o Eva Herz. A direção artística está a cargo de Marco Griesi que já programou shows e espetáculos adultos e infantis até o fim do primeiro semestre.

        O teatro inaugura no dia 06 de maio com show de Ney Matogrosso. No dia 23 de maio estreia Nine, musical baseado no filme Oito e Meio de Federico Fellini sob a batuta de Charles Möeller e Claudio Botelho.

        A inauguração de uma sala de espetáculos é sempre motivo de alegria e de votos de muito sucesso e longa vida. VIVA O TEATRO!

        A programação completa da nova sala poderá ser consultada no site: www.teatroportoseguro.com.br

 

25/04/2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

AQUI ESTAMOS COM MILHARES DE CÃES VINDOS DO MAR


 


UM RETRATO EM BRANCO E PRETO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO

        As sempre bem vindas boas surpresas continuam surgindo nesta temporada teatral que ainda não completou seu primeiro quarto e já nos ofereceu excelentes trabalhos brasileiros (alguns vindos do ano passado) como Transgressões, As Criadas, Salamaleque, A Volta para Casa, Consertando Frank, Ato a Quatro, Josefina Canta, A Ópera do Malandro (Cia. da Revista), O Que Você Realmente Está Fazendo É Esperar o Acidente Acontecer, A Jornada de Orfeu, Urinal, Ricardo III, Cartas Libanesas, além dos espetáculos internacionais da 2ª MITsp que, salvo poucas exceções, tiveram alto nível.
        O entusiasmo é maior ainda quando se trata de grupos jovens com nomes ainda desconhecidos, como estes Barulhentos (este é o nome do grupo) que estão apresentado no Espaço Elevador Aqui Estamos Com Milhares de Cães Vindos do Mar, colagem de peças curtas do dramaturgo romeno - cada vez mais em voga no Brasil - Matéi Visniec e com direção de Rodrigo Spina.
        A primeira coisa que chama a atenção é o cuidado com a produção da peça e em especial com o trinômio formado por cenário (Moshe Motta), figurino (Camila Fogaça) e maquiagem (Domitila Gonzalez) todo ele em cores brancas, negras e cinzas.
        Três das peças aqui incluídas foram apresentadas recentemente em A Volta Para Casa e não há como não comparar as duas encenações. Enquanto na montagem de Regina Duarte as peças eram apresentadas por inteiro independentes umas das outras, aqui elas aparecem fragmentadas e mescladas com as outras que compõem o espetáculo. No meu modo de ver, o que era defeito na primeira montagem (falta de ligação entre as peças) é uma grande qualidade na segunda (a costura entre as peças, dando uma unidade ao todo), por outro lado uma qualidade da primeira (a integral de cada peça) tornou-se defeito da segunda (as peças apresentadas de modo fragmentado perdem parte de seus impactos, fato mais evidente em A Volta Para Casa com seu hilário e angustiante desfile de cadáveres). O que é o ideal? Não há ideal! Tudo depende da visão do encenador e quem sou eu para dizer o contrário?
 

        Rodrigo Spina realiza trabalho maduro de direção harmonizando as funções acima citadas com o trabalho de dez jovens atores em cena. Todo o elenco tem ótimo rendimento, mas cabe destacar as interpretações da atriz que faz Catarina, a mulher grávida, em Sanduiche de Frango, do ator que dá o curso de como ser um eficiente mendigo em Cuidado Com as Velhinhas Carentes e Solitárias e finalmente do ator que empresta sua bela voz ao cego que conversa com seu cachorro na peça que dá título à montagem; apresentado totalmente às escuras este é um dos melhores e mais criativos momentos do espetáculo. Condizente com o pensamento de Visniec o programa da montagem contém dois belos textos de Rodrigo Spina e de Domitila Gonzalez, além de apresentar uma breve biografia do autor, mas na ficha técnica não relaciona os atores com as personagens, fato que não me permite citar nomes nos comentários deste parágrafo.

        Com humor cáustico e forte diálogo com o teatro do absurdo os textos instigantes de Matéi Visniec encontraram sua perfeita tradução cênica nesta bela montagem realizada por Os Barulhentos sob a direção de Rodrigo Spina e creio que este é o maior elogio que posso fazer sobre o espetáculo.

        AQUI ESTAMOS COM MILHARES DE CÃES VINDOS DO MAR está em cartaz no Espaço Elevador (Rua Treze de Maio, 222) aos sábados (20h) e domingos (19h) até 31 de maio.
 
        Fotos de Valérie Mesquita.

 

15/04/2015

terça-feira, 14 de abril de 2015

CARTAS LIBANESAS



Eduardo Mossri - Foto de Felipe Stucchi

        Ao olhar para a história do teatro brasileiro pode-se notar que as grandes interpretações femininas são bem mais numerosas que aquelas masculinas, talvez pelo fato de que a dramaturgia do século XIX privilegie as personagens femininas ou ainda porque os talentos desse sexo se adaptam melhor ao fazer teatral. Isso posto é com muita surpresa, e diria com alegria, que testemunhei por dois dias seguidos trabalhos antológicos de ator: Gustavo Gasparani e suas mais de 20 personagens em Ricardo III e agora Eduardo Mossri como o imigrante Miguel em Cartas Libanesas.
 
José Eduardo Vendramini (autor)

        O belo texto de José Eduardo Vendramini é um poema dramático que conta por meio de um suceder de flashes a história do jovem libanês Miguel que abandona a  terra natal no início do século XX, deixando sua amada esposa Adib e o filho pequeno para tentar “fazer a América”. Depois dos percalços da viagem na terceira classe de um navio chega ao Brasil, passa pela burocracia dos escritórios de imigração, sobrevive como mascate, quase desiste e pensa em voltar e depois de muita luta e algumas humilhações consegue um lugarzinho ao sol montando uma lojinha e trazendo sua família para viver com ele. O texto faz homenagem não só ao imigrante libanês, mas a todos aqueles que para aqui vieram em busca de uma nova terra de esperanças uma vez que o velho mundo já não oferecia oportunidades. Com algumas diferenças em função do temperamento de cada povo (mascatear, por exemplo, foi uma função típica dos árabes) e das oportunidades que o acaso trouxe, a trajetória de imigrantes pobres (italianos, espanhóis, japoneses e de outras nacionalidades) foi muito parecida. As cartas do título são aquelas que Miguel escreve para sua mulher e que ilustram a sua saga por terras brasileiras.
        Mossri foi o mentor do espetáculo e em conjunto com Saad Vendramini (autor) e Lazzaratto (diretor), todos, como se pode notar pelos sobrenomes, descendentes de árabes e/ou italianos criou este belo trabalho cujo maior trunfo é sua vigorosa interpretação. Voz poderosa, presença cênica marcante e uma delicada interatividade com o público são o ponto alto de seu trabalho.

Marcelo Lazzaratto (diretor) - Foto de João Caldas

        A direção de Marcelo Lazzaratto é discreta focando-se no trabalho do ator e na eficiente iluminação, também de sua autoria. O recurso de o ator olhar para um foco de luz quando se dirige a sua esposa Adib é interessante, mas torna-se repetitivo e previsível ao longo da encenação. Incompreensível para mim é o uso constante do microfone em espaço cênico tão pequeno e com um ator com amplos recursos vocais, mas o encenador deve ter suas razões.

        Cartas Libanesas é espetáculo que deve agradar a todo tipo de público e, em especial, aos descendentes de imigrantes que relembrarão as histórias contadas por seus avós. A grande maioria do público presente no último sábado era de origem libanesa.

       Permito-me incluir nesta matéria a foto abaixo da família de minha nonna Agnesa (ao centro, em pé) de quem ouvi histórias muito parecidas.


        Cabe lembrar que este espetáculo dialoga e complementa o belo Salamaleque com Valeria Arbex, ainda em cartaz no Instituto Capobianco.(vide matéria que escrevi sobre este último em janeiro de 2015).

        CARTAS LIBANESAS está em cartaz no Sesc Ipiranga às sextas feiras às 21h30 e aos sábados às 19h30 até 30/05/2015.

 

12/04/2015

sábado, 11 de abril de 2015

RICARDO III


 
        Quando um espetáculo me tira do chão fico durante algum tempo ruminando aquela experiência (chocando os ovos, como diria Walter Benjamin). Ao sair do Sesc Pinheiros na última quinta feira após ter assistido ao Ricardo III da dupla Gustavo Gasparani (ator) e Sergio Módena  (diretor) tomei o metrô e o vagão estava vazio. Nos bancos eu vislumbrava ora a solene Elisabeth, ora a frágil Lady Anne, ora o maquiavélico Ricardo e até a deliciosa criada do palácio com sotaque nordestino. E pensando em Shakespeare, naquele instante meu pensamento viajou até a crítica Barbara Heliodora (que por triste coincidência morreria algumas horas depois) quanto à consistência da obra do bardo e como ela se presta às mais variadas possibilidades de encenação cabendo lembrar apenas como bons e criativos exemplos o Ensaio.Hamlet da Cia. dos Atores ,  o Romeu e Julieta do Grupo Galpão e agora este Ricardo III.

        Ao entrar na sala de espetáculos nos deparamos com o ator Gustavo Gasparani vestido casualmente diante de um quadro branco onde ele completa um cronograma com a genealogia das casas de Lancaster e de York que mostra as personagens que farão parte da história que iremos presenciar. A seguir o ator dirige-se informalmente ao público fazendo uma breve introdução da tragédia do rei Ricardo III e explicando que interpretará todas as 27 personagens escolhidas por ele e pelo encenador entre as mais de 60 que fazem parte do original de Shakespeare.
 
 
        Tem início a trama e por meio de pequenos gestos e mudanças de voz o ator dá conta dessas personagens e nos conta a história do terrível Ricardo realizando um trabalho de interpretação poucas vezes visto nos nossos palcos. Dá-se ao luxo de praticamente abdicar de objetos de cena, limitando-se ao uso de um véu para interpretar Lady Anne e de canetinhas (recurso muito criativo) para representar os filhos pequenos de Elisabeth e de Edward IV e depois os soldados no campo de batalha. A direção limpa e criativa de Módena complementa a cena apenas com discretos efeitos de luz... O resto não é silêncio, mas o privilégio de testemunhar o trabalho de um ator com pleno domínio de sua arte. Este trabalho deveria servir de verdadeira aula e exemplo para aqueles atores que, ao interpretar diversas personagens, se utilizam de recursos explícitos e óbvios para indicar que estão mudando de personagem.

        Outros pontos altos do espetáculo são o uso do humor (a cena da criada é antológica) e a quebra da ação para fazer comentários com o público e buscando a adesão do mesmo para as cenas que exigem vozes do povo clamando por seus reis.

        Paulista radicado no Rio de Janeiro, Sergio Módena nos brindou no ano passado com A Arte da Comédia (um dos melhores trabalhos da temporada de 2014) e agora repete a dose com este Ricardo III, que certamente será incluído na lista dos melhores de 2015 (a peça estreou no Rio de Janeiro em 2014 e desde então vem cumprindo vitoriosa carreira nacional, sendo que  Gustavo Gasparani e Sergio Módena foram premiados e/ou indicados para vários prêmios do teatro carioca).

        Segundo o programa, as atividades teatrais solitárias na infância tanto do diretor como do ator foram muito importantes para a realização do espetáculo; o ciclo se fecha quando se acrescenta idêntica experiência deste espectador que, talvez se imaginando um Charles Chaplin, representava todas as funções do teatro, incluindo o público.

        RICARDO III está em cartaz no Sesc Pinheiros até 23 de maio de quinta a sábado às 20h30. Onde quer que esteja Shakespeare está aplaudindo de pé.

terça-feira, 7 de abril de 2015

URINAL, O MUSICAL


Foto de Eduardo Enomoto

        Com o bizarro título de Urinetown, the Musical este musical de Mark Hollmann e Greg Kotis estreou num pequeno teatro de Nova York em 2001 e devido ao sucesso alcançado passou a ocupar maiores teatros na Broadway terminando por abocanhar três prêmios Tony, o maior laurel concedido pelo teatro americano; fato bastante semelhante ocorreu anteriormente com Hair (1967) e Rent (1996) naquela mesma cidade. Aqui em São Paulo o ator Altair Lima comprou os direitos de Hair e estreou a peça no antigo Teatro Bela Vista (onde hoje se localiza o Teatro Sérgio Cardoso), o sucesso foi tamanho que com a bilheteria arrecadada Altair Lima comprou e reformou um amplo teatro que batizou de Aquarius em homenagem ao espetáculo, tornando-se um mega empresário teatral.
        O encenador Zé Henrique de Paula tomou contato com o texto da peça há alguns anos e mesmo sem conhecer as músicas viu ali o potencial para um bom espetáculo. A grave crise hídrica paulista mostrou que este seria o melhor momento para viabilizar o projeto. Já em posse da excelente trilha musical e com o auxílio dos talentos de Fernanda Maia na direção musical, de Inês Aranha e de Gabriel Malo na coreografia o diretor montou o espetáculo ora em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental.
 
Foto de Ronaldo Gutierrez

        Tudo funciona neste belo exemplo de que não são precisos recursos mirabolantes para se montar um bom musical: o teatro é pequeno (apenas 56 lugares), os intérpretes são antes atores do que cantores, o reduzido espaço cênico não permite trocas de cenário e não há a menor condição de haver um palco giratório, no entanto o resultado é um musical da melhor qualidade que diverte e faz pensar.
        Na bem urdida trama, devido a uma seca que dura há vinte anos a Companhia da Boa Urina (CBU) de propriedade do Patrãozinho (o sempre ótimo Roney Facchini) administra e cobra caro pelo uso dos banheiros públicos. Tudo vai bem (para uns) e muito mal (para a maioria) até que o jovem Bonitão (Caio Salay) lidera uma revolta para mudar a situação. Num inteligente recurso dos autores, a ação da peça e as regras dos musicais são comentadas pelo Policial e pela Garotinha (interpretações memoráveis de Daniel Costa e Luciana Ramanzini) no mais perfeito efeito de distanciamento brechtiano. Todo o elenco está ótimo, mas cabe destacar a presença de Nábia Vilella com sua poderosa voz e de Fabio Redkowicz, responsável por uma das coreografias mais criativas e engraçadas da peça.
 
Policial e Garotinha - Foto de Eduardo Gutierrez
 
        A bela música é executada ao vivo por seis músicos sob a batuta vibrante de Fernanda Maia.
        Bastante adequado ao espaço disponível o bonito cenário é assinado pelo encenador, assim como os figurinos.
                Ri-se muito durante o espetáculo, mas ao término o gosto amargo de uma realidade parecida nos faz refletir sobre o atual estado das coisas.

        Desejo um sucesso enorme a Urinal, porém não veria com bons olhos a sua transferência para o Teatro Renault! Também espero que se reconheça cada vez mais o talento de Zé Henrique de Paula e que ele continue a ser o criativo encenador que já realizou tantos excelentes espetáculos sempre atento ao binômio: conteúdo sociopolítico e entretenimento. Tenho certeza que não faz parte dos seus planos tornar-se um mega empresário teatral!
 
Zé Henrique de Paula - Foto de Mário Rodrigues

        URINAL, O MUSICAL está em cartaz até 06 de julho no Teatro do Núcleo Experimental- Rua Barra Funda, 637. Tel: 3259-0898. Sextas, sábados e segundas às 21h e domingos às 19h. R$40,00 (inteira), R$20,00 (meia). ENTRADA GRATUITA ÀS SEXTAS FEIRAS. SÓ NÃO VAI QUEM NÃO QUER!
 

        Ah! Chegue um pouco antes para curtir o aconchegante café-bar do saguão de espera do teatro!

 

07-04-2015

 

 










quarta-feira, 1 de abril de 2015

A JORNADA DE ORFEU


 

        A montagem que está sendo apresentada pela Cia. Coexistir de Teatro no Cemitério do Redentor, mais do que nos fazer penetrar nas trevas em companhia de Orfeu e do barqueiro Caronte é uma viagem pela mitologia grega uma vez que Orfeu encontra, entre outros, Prometeu, Ariadne e Hermes em sua longa jornada pelo reino dos mortos em busca da sua amada Eurídice.

        No belo texto escrito pela diretora Patrícia Teixeira e por Caio Bragha, o tratamento é na segunda pessoa do plural, “como convém aos deuses e aos poetas, diria Alberto Caeiro”. Esse tratamento reforça a solenidade das falas e em nenhum momento soa artificial. Outro belíssimo momento que poderia soar falso é aquele em que Orfeu ao passar pelo Tártaro e ouvir o lamento dos seus habitantes entoa:

     - Por amor andei já/Tanto chão e mar/Senhor, já nem sei.
       Se o amor não é mais/Bastante pra vencer/Eu já sei o que vou fazer/ 
       Meu Senhor, uma oração/Vou cantar para ver se vai valer.

Quem diria que a canção Reza de Edu Lobo e Ruy Guerra iria se encaixar tão bem na boca do atormentado herói grego? E desse modo os autores construíram um texto que em momento nenhum soa pedante ou pretensioso. Tudo flui harmoniosamente nos conduzindo a profundas reflexões sobre o significado da vida e da morte.

        A encenação de Patrícia Teixeira é de uma beleza comovente. O público é acolhido na porta do cemitério e a seguir adentra o primeiro espaço cênico onde o simpático grupo vestido com roupas claras o recebe sorrindo e fazendo uma breve introdução do que virá a seguir.

        Entregando o óbolo a Caronte este se certifica que somos almas mortas e dá permissão para que iniciemos a viagem em companhia do único ser vivo no barco: Orfeu. Pelas alamedas do cemitério sobriamente iluminadas (belo trabalho de Beato Tem Prenafeta) fazemos o percurso indicado no mapa abaixo:
 
  

        Entramos em contato com as moiras, passamos pelo Érebo (equivalente ao purgatório da tradição católica), cruzamos penosamente o Tártaro (equivalente ao inferno) ao som dos lamentos lancinantes dos seus habitantes e finalmente chegamos aos Campos Elíseos (equivalente ao paraíso) onde ninfas tomam vinho e fazem amor com Dionísio. Ao chegar ao Palácio existe o confronto de Orfeu com Hades onde o primeiro implora pela volta da amada ao mundo dos vivos. Por interferência de Perséfones o Rei concorda desde que Orfeu não se volte para traz durante esse retorno.

        Orfeu conseguirá seu intento? Não olhará para traz? A cena final do espetáculo tem tamanho impacto que seria  verdadeiro crime quebrar o encanto e descrevê-lo para quem ainda vai assisti-lo.

        O elenco é bastante homogêneo e tem excelente rendimento em cena. Pela relevância das personagens cabe destacar os trabalhos de David Carolla (Orfeu), Caio Bragha (Caronte), Roberto Farias (Prometeu) e principalmente Carla Dias (Hermes) que dá o toque de humor ao denso espetáculo. Destaque também para a voz poderosa de Cleber Martins como Hades.

        O Teatro da Vertigem já havia nos conduzido a igrejas, hospitais, presídios e ao Rio Tietê; agora Patrícia Teixeira e sua Cia. Coexistir nos levam a um cemitério, o único lugar onde poderia ser encenada a sua peça. Experiência única, muito difícil de ser traduzida em palavras.  

        A JORNADA DE ORFEU já se inscreve como um dos melhores momentos da temporada teatral de 2015 e precisa ser visto por quem ama o teatro e a vida, pois é preciso entender a morte, superar a perda e cumprir o luto para que se possa valorizar a vida.

        Em cartaz no Cemitério do Redentor aos sábados às 21h e aos domingos às 20h até 26 de abril. Av. Doutor Arnaldo 1105 (esquina da Rua Cardeal Arco Verde). Telefone: 3493-2452.

 

01/04/2015