sábado, 2 de setembro de 2023

ENSAIO SOBRE O TERROR

 

Foto de Pedro Martins

A denúncia sobre a branquitude que aparece em muitos espetáculos por meios agressivos como apontar o dedo na cara do espectador branco, surge de forma contundente, mas não agressiva, no surpreendente espetáculo de José Fernando Peixoto de Azevedo realizado a partir do não menos contundente conto Pai Contra Mãe escrito por Machado de Assis (1839–1908) há mais de um século. Da minha parte, posso garantir que a denúncia cala mais fundo e faz refletir de maneira muito mais eficiente sobre o racismo que temos dentro de nós sem perceber.

O conto de Machado de Assis, escrito 14 anos após a abolição da escravatura, inicia com uma descrição dos objetos usados para castigar os escravos, para depois contar as agruras de um casal branco e pobre, ironicamente batizados de Cândido Neves e Clara, que culmina com ele trabalhando como caçador de escravos fugitivos, sendo que a maior recompensa está em caçar uma “mulata” grávida que aborta diante dele ao ser devolvida ao seu dono. Pelas dificuldades financeiras, Cândido estava prestes a enviar o seu filho recém-nascido para adoção, mas a recompensa peça caça à “mulata” lhe salva dessa situação. O conto termina com uma frase terrível proferida por Cândido: “Bateu-lhe o coração. Nem todas as crianças vingam”.

A dramaturgia de Azevedo inclui uma espécie de prólogo sobre o medo e o terror e um epílogo para dar fecho à história, entre eles aparece o conto na íntegra.

A encenação, também assinada pelo dramaturgo, segue o eficiente esquema do diálogo entre o teatro e o cinema muito utilizado por ele em outros trabalhos. Uma câmera persegue o ator durante toda a apresentação e a imagem é projetada em três telas colocadas ao fundo do espaço. Em certo momento a personagem sai à rua General Jardim à caça de escravos e a câmera registra toda a ação, através da janela.

O Cândido Neves concebido por Azevedo seria um típico exemplo de “bolsominion” pobre dos dias atuais tanto que ele usa camisa da seleção, bermuda com estampa militar e reza diante de um pneu!

Rodrigo Scarpelli é um ator branco que se entrega totalmente ao seu personagem, despindo-se e cobrindo o corpo com farinha, para se tornar ainda mais branco. Sua interpretação tem muito do que se convencionou chamar de teatro físico e é corajosamente visceral, chegando a incomodar, na sessão a que assisti ao espetáculo, algumas espectadoras “mais delicadas”, apesar de ele alertar que o espetáculo não era interativo. Quase ao mesmo tempo o ator narra (Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada) e interpreta (Eu não lhe dei tempo de dizer nada) a ação, criando um bem sucedido efeito de distanciamento no espectador.

Foto de Pedro Martins

O espetáculo conta com a participação de um músico (o release aponta dois nomes: Abraão Kimberley e Victor Mota) que executa insistentemente a canção Esse Seu Olhar (de Tom Jobim) que adquire intenção totalmente diferente daquela romântica da letra de Tom em sua primeira estrofe: “Esse seu olhar/Quando encontra o meu/Fala de umas coisas/Que eu não posso acreditar”. Qual deve ter sido a troca de olhares entre Cândido e a negra fujona?

Fredo Peixoto tem participação importante na ação com a câmera em cena e editando as imagens. Um jovem, não creditado no release, faz as vezes de ponto, uma vez que o monólogo do ator é bastante longo, mas na apresentação a que assisti sua intervenção não foi necessária.

Ensaio Sobre o Terror é um espetáculo extremamente criativo tanto na concepção cênica como na interpretação pungente de Rodrigo Scarpelli e muito necessário pelo tema abordado, portanto digno de uma visita ao segundo andar da Aliança Francesa (Sala LAB).

Em cartaz até 10 de setembro. Sextas e sábados às 20h30 e domingos às 18h30. 

02/09/2023

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