segunda-feira, 9 de junho de 2025

DESERTORES e A CAUSA SECRETA

 


Que pena! O “Coletivo Alfenim” já está indo embora.

O Alfenim é um grupo da Paraíba fundado em 2007 pelo paulista Márcio Marciano que para lá se mudou, após deixar a “Cia. do Latão” da qual foi fundador, dramaturgo e diretor em parceria com Sergio de Carvalho.

Alfenim vem realizando importante ação teatral em João Pessoa tendo montado, segundo o site do coletivo, nove espetáculos nos dezoito anos do grupo, uma média de um novo espetáculo a cada dois anos. Todos os espetáculos foram dirigidos por Marciano e o elenco conta com intérpretes que estão no grupo há muito tempo, como Adriano Cabral, Lara Torrezan e Paula Coelho, companheira do diretor.

Uma curiosidade: alfenim, que dá nome ao grupo, é um doce típico da Paraíba, parecido com a rapadura.

 Ao que me consta, das poucas vezes que o Alfenim esteve em São Paulo trouxe “Quebra Quilos” e “Milagre Brasileiro” em 2010 e “Memórias de Um Cão” em 2019, por isso o anúncio de uma temporada no SESC Belenzinho foi recebido com muita expectativa. A temporada ocorreu de 16/05 a 08/06.

Desta vez o coletivo trouxe seus dois últimos trabalhos: “Desertores” de 2019 (10 apresentações) e “A Causa Secreta” de 2024, (apenas três apresentações) bastante diferentes um do outro, mostrando a versatilidade do grupo. 

DESERTORES


“Desertores” é um experimento cênico que tem por base a obra “O Declínio do Egoísta Johan Fatzer” de Bertolt Brecht. A montagem de Marciano transpira Brecht no seu caráter épico e nas alusões às peças didáticas do dramaturgo alemão. A cenografia também assinada por Marciano consiste de uma plataforma que corta a plateia, por onde as personagens se movimentam. Dignas de nota são a bela iluminação de Ronaldo Costa e a excelente trilha sonora que comenta toda a ação.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) quatro soldados resolvem desertar. Na clandestinidade tentam sobreviver sonhando com a possibilidade de que uma ação coletiva possa acabar com a guerra. O elenco coeso tem Adriano Cabral em destaque no papel de Fatzer.

Espetáculo íntegro denunciando as insanidades de toda e qualquer guerra.

Vale lembrar das palavras do Mestre Brecht na “Cartilha de Guerra Alemã”:

“A guerra que está por vir não é a primeira; antes dela outras já ouve.

Quando a última acabou, viram-se vencedores e vencidos.

Entre os vencidos, o povo mais pobre passando fome;

Entre os vencedores o povo humilde passando fome também” 

A CAUSA SECRETA


O lado B da temporada do Alfenim foi composto de apenas três apresentações de “A Causa Secreta” baseada no conto homônimo de Machado de Assis.

O conto é sombrio e até mórbido revelando Fortunato, uma figura sádica que se satisfaz torturando animais e seres humanos para lhes ver o sangue escorrer, ele é casado com Maria Luísa que tem uma doença grave e faz amizade com Garcia, um médico que percebe e investiga os estranhos hábitos de Fortunato.

Marciano ambienta essa história no picadeiro de um circo onde um esfuziante mestre de cerimônias (Edson Albuquerque, excelente) narra a história com divertido toque de humor. Bem-vindas referências ao melodrama fazem parte da encenação.

Paula Coelho (Maria Luísa), Murilo Franco (Garcia) e Adriano Cabral (Fortunato) representam o trio central.

Kevin Melo executa ao vivo a trilha sonora de sua autoria.

Sem didatismo a deliciosa encenação cumpre o objetivo proposto por Márcio Marciano: “refletir sobre a perversão que preside as relações de dominação presentes em nossa sociedade, e que se manifestam não apenas no âmbito das relações públicas, mas também no cotidiano das relações privadas”

O humor também faz parte da divulgação do espetáculo - que foi montado sem nenhum patrocínio -  ao informar que “nem lei, nem deus” apoiaram a montagem do mesmo. 

Espera-se que o resultado altamente positivo dessa temporada, permita que o Alfenim volte com mais frequência aos palcos paulistanos 

09/06/2025

 

 

 

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

LADY TEMPESTADE

 

Contar e recontar uma história muitas e muitas vezes, é uma maneira de impedir que o horror aconteça de novo

(Andrea Beltrão)

         E agora o ciclo se completou.

        Esse ciclo começou quando tomei conhecimento da brava existência de Mércia Albuquerque, professora e advogada pernambucana que defendeu presos políticos e lutou contra a ditadura civil militar brasileira, razão pela qual foi também perseguida e presa. Mércia escreveu diários sobre suas atividades.

        O impacto continuou quando recebi um presente de Sílvia Gomez com o texto da peça que ela escreveu a partir dos diários de Mércia. Li o texto com um misto de indignação, revolta e admiração pela valorosa mulher que foi Mércia. O texto de Silvia é uma lição de dramaturgia.

        O ciclo ficou em clima de expectativa: a peça intitulada LADY TEMPESTADE, dirigida por Yara de Novaes e interpretada por Andrea Beltrão estava em cartaz no Teatro Poeira no Rio de Janeiro e havia chance de vir para São Paulo.

        E o dia chegou completando o ciclo:  no dia 30 de maio a peça estreou no Teatro Anchieta.

        Andrea Beltrão preenche todas as expectativas realizando trabalho soberbo, cheio de nuances, circulando entre a narração da história (Sra. A.) e a interpretação de Mércia. Andrea passa de A. para Mércia apenas com um leve girar de cabeça e adotando o sotaque pernambucano. Trabalho primoroso, digno dos prêmios para os quais foi, ou será, indicada.

        Yara de Novaes realiza mais um notável trabalho, desta vez como diretora do espetáculo, fazendo uma bela tradução cênica do texto de Silvia.

        Trata-se de espetáculo de três mulheres brilhantes (Silvia, Yara e Andrea) reverenciando outra mulher brilhante (Mércia) e contando e recontando sua história, como escreve Andrea no programa, refrescando assim a memória de todos para o terror que foram os anos da ditadura e alertando para os perigos de um retorno desses tempos tão sombrios.

        Um soco no estômago necessário, que não deixa ninguém indiferente. Muita gente sai do espetáculo com lágrimas nos olhos.

        Assisti ao espetáculo da plateia do Teatro Anchieta; existem poltronas disponíveis também no palco do teatro, nas quais acredito, que nela sentado, o espectador obtenha um clima mais parecido com aquele oferecido no aconchegante espaço do Teatro Poeira no qual o espetáculo foi concebido.


        LADY TEMPESTADE está em cartaz no Teatro Anchieta até 06/07 com sessões de quinta a sábado às 20h e domingos às 18h.

        URGENTE/NECESSÁRIO/IMPERDÍVEL

        01/06/2025