quinta-feira, 23 de junho de 2016

ENCERRANDO O SEMESTRE


         Estamos no fim de junho. Muita água passou debaixo da ponte neste quase sinistro primeiro semestre onde fomos testemunhas de todos os cambalachos vindos de Brasília e de onde quer que se tenha políticos. No meio dessa crise política, econômica e social o teatro sobrevive. A duras penas, mas sobrevive. A 3ª MITsp mesmo reduzida apresentou espetáculos de alto padrão e o Festival de Curitiba apresentou uma bem vinda reestruturação com o mérito de destacar o alto nível dos espetáculos e intérpretes curitibanos.
         O palco paulistano apresentou uma significativa quantidade de espetáculos surpreendentes, sendo que boa parte deles foi alvo de matérias deste blog. Infelizmente nem sempre há tempo hábil para escrever sobre todos os espetáculos que, ao meu modo de ver, revestem-se de notabilidade. Menciono, a seguir, quais foram para mim esses espetáculos que não foram alvo de matéria específica, na ordem em que os assisti:



         TEOREMA XXI – do Grupo XIX de Teatro. Espetáculo violento com dramaturgia de Alexandre Dal Farra inspirada no filme Teorema de Pasolini. Ótimos atores com destaque para Juliana Sanches e Ronaldo Serruya. A encenação de Luiz Fernando Marques é ambientada nas ruínas de um prédio da Vila Maria Zélia.
         PESSOAS SUBLIMES – do Grupo Satyros. Marca registrada do grupo com autoria de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e direção do último. Foi a última aparição da saudosa Phaedra de Córdoba no palco do Satyros. Belos monólogos interpretados por Helena Ignez e a presença marcante de Fernanda D’Umbra estavam entre os melhores momentos do espetáculo.
         NOSSA CLASSE – do Núcleo de Teatro Experimental. A remontagem desse texto de Tadeusz Sobodzianek dirigida por Zé Henrique de Paula só confirmou as qualidades do mesmo e a excelência do jovem elenco.
         A TRAGÉDIA LATINO AMERICANA – Após os vários Puzzles, Felipe Hirsch junto com o grupo Ultralíricos realizou esta criativa junção de textos e músicas de autores latinos americanos tratando de assuntos atuais. A “carta do PVC” (Reinaldo Moraes) interpretada por Caco Ciocler e a “transformação de osso humano em ouro” (Lima Barreto) por Magali Biff per si justificariam o engajado espetáculo. Cabe lembrar o criativo cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara constituído por blocos de isopor que os atores manipulam e mudam de lugar durante toda a peça remetendo às rochas que Sísifo carregava.
         AS CEREJAS – do Club Noir. Peça densa e intimista com belíssima iluminação do diretor Roberto Alvim e um grande ator em cena (Alexandre Leal)
         PROCESSO DE CONSCERTO DO DESEJO - Lírico e intimista onde o sempre talentoso Matheus Nachtergaele interpreta poemas escritos por sua mãe Maria Cecília que se suicidou quando ele tinha três meses de idade.
         NA SELVA DAS CIDADES–EM OBRAS – da Mundana Companhia. O jovem Brecht pelo olhar lúcido e criativo de Cibele Forjaz com interpretações vigorosas de Aury Porto e Lee Taylor.
         GARRINCHA - Musical de primeira com dramaturgia do norte americano Darryl Pinckney a partir de flashes da vida do jogador e músicas brasileiras de excelente qualidade criadas em processo colaborativo pelo elenco e pelos músicos que as executam ao vivo. Bob Wilson criou uma festa colorida resgatando o clima das revistas e das chanchadas da Atlântida, colírio para os olhos e bálsamo para a mente, nesses tempos de Brasil tão cinzento.
         CIDADE VODU – do Teatro dos Narradores. O épico dirigido por José Fernando Azevedo mostra a saga dos negros desde a partida da África em navios negreiros, passando pelas agruras no Haiti até a sua chegada ao Brasil. Encenado nas ruínas da Vila Itororó o espetáculo tem momentos belos, mas violentos. Uma parada para sopa, danças e canções haitianas é momento de trégua na demonstração da violência sofrida pelos negros.  O elenco é formado por atores brasileiros e haitianos. Apesar de exagerar nas “risadinhas” sarcásticas, o ator Renan Tenca Trindade que faz o narrador da história tem desempenho digno de nota.
         UM, DEZ, CEM MIL INIMIGOS DO POVO – da Companhia da Revista. Cássio Pires em processo colaborativo com o grupo transforma o drama de Ibsen em musical com excelentes canções compostas por Ricardo Severo. Kleber Montanheiro manteve a ação na Noruega, mas há muitas referências ao Brasil de hoje. Com a exceção do protagonista (Dr. Stockmann em composição de Daniela Flor) todas as outras personagens vestem máscaras criadas pelo encenador que remetem àquelas do alemão Wilhelm Busch para as travessuras de Juca e Chico (Max e Moritz, no original). A cenografia também assinada por Montanheiro ocupa os 360 graus do teatro. Ainda em cartaz.
         ACORDA PRA CUSPIR – O corrosivo e politicamente incorreto texto do norte americano Eric Bogosian recebe ótima interpretação do versátil e simpático Marcos Vera com direção segura de Daniel Herz. Ainda em cartaz.
         RAINHAS DO ORINOCO – Espetáculo típico de Gabriel Villela com muito colorido, visual exuberante e músicas singelas do cancioneiro popular, a partir do texto do mexicano Emilio Carballido. Veículo para as interpretações histriônicas de Walderez de Barros e Luciana Carnieli, esta última é responsável pelos momentos mais engraçados da peça. Boa participação de Dagoberto Feliz que acompanha musicalmente as duas atrizes. Ainda em cartaz.
         O GRANDE INQUISIDOR – Poderosa interpretação de Celso Frateschi para a personagem de Dostoievski que faz parte do romance Os Irmãos Karamazov. Direção enxuta de Roberto Lage. Ainda em cartaz.
         O PÃO E A PEDRA – da Companhia do Latão. O espetáculo didático/épico de Sergio Carvalho sobre a greve de 1979 no ABC tem o grande mérito de tomar partido sem ser panfletário e mostrando sempre os dois lados dos fatos. A luta operária é mesclada com questões pessoais das personagens. A encenação é recheada de canções didáticas (Viva Brecht!) escritas por Lincoln Antonio que as executa ao vivo.
         SAMBRA – O MUSICAL- 100 ANOS DE SAMBA – Saborosa montagem de Gustavo Gasparani contando a história do samba na perspectiva carioca. Bem feito, honesto e gostoso de ver.
         CHUVA, NÃO. TEMPESTADE! – Texto interessante de Franz Kepler fazendo as duas personagens externarem seus pensamentos em voz alta. Natalia Gonsales tem excelente presença cênica. A direção de Rafael Primot se vale da cenografia e da iluminação da sempre competente Marisa Bentivegna. Ainda em cartaz.
         MENTE MENTIRA – O incansável Mateus Monteiro estreia na direção com o pé direito ao escolher o brilhante texto de Sam Shepard que retrata o que acontece a partir da briga de um casal que pertence a duas famílias desestruturadas e que se destroem ainda mais a partir da tal briga. Elenco jovem e talentoso com destaque para Fafá Rennó e Vivian Bartocco que interpretam as duas patéticas mães e para Lucas Romano que faz o irmão do marido agressor. Ator extremamente versátil e talentoso, Daniel Costa exagera na caricatura ao compor o pai da esposa agredida. O cenário de Kleber Montanheiro, simples, mas muito prático e eficiente é formado por blocos de madeira que são manipulados pelos atores nas mudanças de cena. Efeitos sonoros à base de percussão fazem a interligação entre as cenas que se passam ora na casa de uma família, ora na casa da outra. Trata-se de produção modesta, mas correta e com bons resultados, realizada por jovens que são o futuro do nosso teatro. Ainda em cartaz.
         RÉQUIEM PARA UM AMIGO DA MULTIDÃO – Não se trata de espetáculo biográfico, mas de homenagem a Flávio império, um dos mais criativos cenógrafos que nosso teatro já teve. Nei Gomes apresenta momentos da vida do homenageado intercalados com situações imaginadas e supostas falas de quem esteve muito próximo a ele como Cacilda Becker, Walmor Chagas e, principalmente, sua grande amiga Myrian Muniz. Onírico como a obra de Flávio. Ainda em cartaz.


23/06/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

GABRIELA, UM MUSICAL


UM DIVISOR DE ÁGUAS

        Finalmente um musical brasileiro que foge dos padrões impostos pelos espetáculos oriundos da Broadway e que aqui foram copiados e banalizados à exaustão. Nada de cenários suntuosos nem de cenas apoteóticas: o que vale é contar uma boa história calcada em sólida dramaturgia e embalá-la com canções populares brasileiras.
        Todos conhecem a “boa história”: trata-se do romance Gabriela, Cravo e Canela escrito por Jorge Amado      em 1958 e que se popularizou via três versões para a televisão e um filme. Mais dia, menos dia ia chegar ao teatro e esse dia chegoupelas mãos de João Falcão: sua adaptação teatral estreou no último dia 08 de junho de 2016 no Teatro Cetip na forma de musical. Falcão privilegiou não só a relação entre a protagonista e o turco Nacib, mas também as tramas paralelas e os personagens secundários dando bom panorama da sociedade baiana da época.
        O espetáculo não tem cenários e usa um mínimo de objetos de cena, valendo-se da bela iluminação de Cesar de Ramires e de três esteiras (duas paralelas à plateia que percorrem o palco de ponta a ponta e uma vertical no centro do palco) para criar todas as ambientações exigidas para o desenvolvimento da trama. As esteiras, que ele havia usado de forma exemplar em A Dona da História (1999) são aqui bastante utilizadas e o resultado é muito bom dando sugestivo efeito do movimento dos atores em cena.
        A trilha sonora é formada por canções brasileiras de épocas e autores diversos. Se algumas delas soam fora do contexto (caso de Cais e O Que Será?), outras se encaixam perfeitamente à trama (Vatapá, Sem Fantasia, Mamãe Coragem e, é claro, as Gabrielas de Dorival Caymmi e de Tom Jobim).
        O elenco é homogêneo cantando e atuando muito bem, mas alguns destaques são necessários: Leo Bahia (Josué) e Juliana Linhares (Glória) formam carismático par e são responsáveis por um dos melhores momentos da peça ao interpretarem Sem Fantasia; as alcoviteiras/fofoqueiras são vividas com muito humor por Almério e Vinicius Teixeira; Maurício Tizumba (velho Tuísca) conduz com propriedade a narrativa da história; Danilo Dal Farra tem presença cênica, simpatia e bela voz como Nacib e , finalmente, Daniela Blois que estreia em teatro e já desponta como uma estrela. Paraense que vive em Manaus, Daniela é formada em medicina e é cantora; tem belíssimo timbre vocal e seu brejeiro e sensual gestual em cena combina perfeitamente com a personagem. Sonia Braga que me desculpe, mas Gabriela encontrou em Daniela sua mais perfeita tradução.

Daniela Blois - Foto de Roberto Setton

        GABRIELA, UM MUSICAL está em cartaz no Teatro Cetip às quintas e sextas (21h), sábados (17h e 21h) e domingos (18h) até 07/08.
        Até você, que torce o nariz para musicais, vai adorar.


10/06/2016

quarta-feira, 8 de junho de 2016

NO CAMINHO, COM MAIAKÓVSKI


Tu sabes,
Conheces melhor do que eu
A velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

        Quem não conhece esse texto? Escrito na década de 1960 para denunciar a ditadura militar, torna-se extremamente atual nestes dias sombrios que o Brasil volta a viver. Confundiu-se que a autoria desse texto seria de Maiakóvski (por conta do título do longo poema do qual faz parte: No Caminho, com Maiakóvski) ou de Brecht [pelo estilo e por haver poema bastante semelhante (*) do autor alemão]. O autor é brasileiro, nascido em Niterói em 06 de março de 1936 e se chama Eduardo Alves da Costa. Costa é escritor e poeta e tem vários livros publicados, inclusive um que leva o mesmo título do poema.


        Acabo de ler um delicioso livro desse autor publicado em 1994 e hoje totalmente esgotado (sempre é possível pedir socorro à Estante Virtual!). Trata-se de Memórias de Um Assoviador, classificado como “humor juvenil” nas resenhas literárias.


        O livro conta a saga de Rodolfo, um rapaz de 15 anos e meio, desde suas recordações uterinas até sua “paradisíaca” aventura em Pushkar com a companheira Renata. Politicamente incorreto (e põe incorreto nisso!) o livro é muito engraçado ao narrar as peripécias familiares, amorosas e sexuais do auto denominado assoviador. Se na época o livro podia provocar escândalo, imagina-se que hoje ele seria execrado pelos moralistas de plantão, uma vez que esse ridículo e falso pudor só aumentou nos últimos anos. Em tom sarcástico Rodolfo comenta que o livro poderia ser adotado nas escolas: difícil naquela época, impossível nos dias de hoje!
        Ri-se muito ao ler o livro que, como diz o próprio Rodolfo, tem alguma semelhança com O Apanhador no Campo de Centeio de J. D. Salinger na narrativa das memórias de um adolescente rebelde; a diferença é que neste caso há muito humor.
        Vale a pena sair à procura deste livro. Não vai ser fácil, pois como nota o irreverente personagem do livro: “Eduardo escreve com mão de mestre, só que você não encontra a porra do livro em lugar nenhum, parece até que os livros do cara são distribuídos pelo Serviço Secreto, acho que por ser meio desligado ele acabou se tornando invisível.”.

        Esse é o Rodolfo. Esse é Eduardo Alves da Costa.

        As ilustrações que em certos momentos lembram aquelas famosas de Carlos Zéfiro são tão irreverentes quanto o texto e são assinadas por Libero Malavoglia.

        Editado em 1994 por Schmukler Editores.

(*) Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro // Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário // Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável // Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho meu emprego/Também não me importei // Agora estão me levando/Mas já é tarde./Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.



07/06/2016

domingo, 5 de junho de 2016

NÃO CONTÉM GLÚTEN

Foto de Lenise Pinheiro

        O teatro do absurdo surgiu na Europa após a segunda guerra mundial quando o mundo ainda estava boquiaberto com aquilo que o homem era capaz de fazer com seu semelhante. Os teatros de Ionesco e, principalmente, de Beckett retratam essa época sombria e sem perspectivas de forma exemplar.
        Falta de perspectiva é talvez o maior problema do caos que tomou conta do Brasil nos últimos tempos. Some-se a isso o aquecimento global, as mudanças climáticas, a falta d’água. Acrescente-se ainda a falta de comunicação entre as pessoas e o tédio imposto por uma vida monótona a dois. Sergio Roveri deve ter pensado em tudo isso ao escrever Não Contém Glúten, simples - só na aparência! - história de um casal que recebe outro casal “no dia mais quente do ano”. O texto é preciso e enxuto mostrando tudo o que existe de absurdo nas situações mais cotidianas.
        A tradução cênica de José Roberto Jardim é excelente e criativa colocando os dois atores praticamente imóveis em cena circunscritos à área de um tapete redondo branco, sendo que suas ações (aquelas que no texto escrito correspondem às rubricas) são descritas em legendas no fundo do palco. Essa imobilidade física exterioriza de forma exemplar a monotonia daquela vida a dois. A chegada do casal amigo Dorothy e Henry (que não aparece em cena) escancara os traumas dos protagonistas Sue e Michael. A iluminação do espetáculo, assinada por Jardim e por Paula Hemsi, é peça fundamental para ilustrar a ação e o que vai pela cabeça do casal.
        Montagem com esse minimalismo exige a presença de grandes atores: Pascoal da Conceição com sua habitual competência compõe à perfeição o elegante e empertigado Michael, em papel bastante diverso daqueles que costuma fazer. O trabalho de Bia Seidl é uma obra de ourivesaria composta de filigranas faciais e vocais uma vez que ela pouco se mexe, isso resulta numa das interpretações femininas mais significativas que se tem presenciado em nossos palcos nos últimos tempos. Um privilegiado assento na terceira fileira me permitiu apreciar em detalhes todas as nuances desse trabalho.
        NÃO CONTÉM GLÚTEN não é obra para se assistir às pressas. São apenas 55 minutos do mais puro teatro e joias desse tipo necessitam de espectadores sensíveis e abertos para o novo. A peça está em cartaz no Sesc Santana às sextas e sábados (21h) e domingos (18h) apenas até o próximo fim de semana (12/06).

        Afinal... O suflê contém ou não contém glúten?

05/06/2016