quarta-feira, 29 de maio de 2019

A VIDA ÚTIL DE TODAS AS COISAS



        Não são só as mercadorias que têm prazo de validade. Os animais, entre eles nós os humanos, também temos um tempo para ser saudável, desenvolver e depois começar a decair até expirar. Hoje já podemos trocar órgãos vencidos por meio de transplantes. No futuro a Family Made Factory (só podia ter nome em inglês) irá nos oferecer novas formas de vida. De vida? Sem querer ser spoiler (outro nome em inglês!), é mais ou menos disso que trata a peça de Kiko Rieser em cartaz na cidade. Um avô com prazo de validade prestes a vencer, seu filho e sua neta são as personagens da peça, além da atendente da Family Made.
        Rieser se muniu de ótima equipe técnica para produzir sua peça: a competência e a criatividade de Marisa Bentivegna estão presentes no cenário repleto de gavetas de onde podem sair desde os pesos para musculação da neta até os relatórios da Factory; Gregory Slivar é responsável pela trilha sonora que comenta a ação e embala as entre cenas; Aline Santini se encarrega dos belos efeitos luminosos e os sóbrios figurinos são de Kleber Montanheiro que dá um tom de futurismo apenas nas roupas da atendente.
        E para completar, o elenco! João Bourbonnais dá vida ao avô que começa a demonstrar “vencimento” com seus lapsos de memória; Louise Helène inicia como uma menina frívola preocupada com seu físico e tem seu bom momento dramático ao final da peça; Eduardo Semerjan empresta vigor à revolta do pai que resiste a trocar seu velho pai por algo muito parecido com ele e, finalmente, Luciana Ramanzini como a burocrática atendente da Factory é responsável pelos momentos mais engraçados da peça (na verdade, a burocracia do seu atendimento tende para o trágico, mas acaba-se rindo da kafkiana situação).
        A meu modo de ver, dez minutos a menos não fariam mal à encenação. A cena onde o pai comenta com a filha sobre a escolha daquele apartamento pela falecida esposa criada pelo dramaturgo para mostrar a reumanização dele é muito longa e perde-se em detalhes que não acrescentam nada à trama. Outra cena longa é aquela final onde a atendente repete à neta o que poderia ser feito com seu pai (é o mesmo discurso que ela fez em cena anterior para o pai em relação ao avô).
        A peça tem excelente final aberto onde o público deve concluir qual será a decisão da jovem.
        Kiko Rieser é artista preocupado com o seu tempo e com os rumos que a humanidade vem tomando e sua peça é compatível com seu pensamento.


        A VIDA ÚTIL DE TODAS AS COISAS está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade às quintas e sextas às 20h e aos sábados às 18h até 15/06. Entrada franca.

 

        29/05/2019

         

terça-feira, 28 de maio de 2019

A DESUMANIZAÇÃO



        Espetáculo de rara beleza visual, A Desumanização é a nova direção de José Roberto Jardim; a cada nova encenação os trabalhos de Jardim adquirem mais requinte visual e aqui, a meu modo de ver, ele atingiu o perfeito equilíbrio entre os efeitos de luz e imagem e o conteúdo da obra. Não Contém Glúten (2016), seu melhor trabalho até então, tinha sofisticado despojamento visual, enquanto Adeus Palhaços Mortos e, principalmente, O Inevitável Tempo das Coisas exageravam nos efeitos parecendo querer esconder a insuficiência dos conteúdos. (Convém lembrar que Um Trabalhinho Para Velhos Palhaços, peça de Matei Visniec que deu origem a Adeus Palhaços Mortos é um dos textos mais fracos e repetitivos do dramaturgo romeno).
        A Desumanização é baseada no livro homônimo de Valter Hugo Mãe e teve feliz adaptação de Fernando Paz para a linguagem teatral. Uma comparação menos superficial entre as duas linguagens eu poderei fazer após ler o livro, mas o resultado teatral é muito bom, colocando duas mulheres em cenários absolutamente simétricos interpretando a personagem Halldora em busca de seu passado para compreender o presente.

O diretor José Roberto Jardim ladeado por Maria Helena Chira (esquerda) e Fernanda Nobre (direita)

        Muito loiras e bonitas Maria Helena Chira e Fernanda Nobre revezam-se nos monólogos da personagem com muita energia e talento, fazendo movimentação cênica perfeita e interagindo com as câmeras de vídeo, importantes ferramentas da encenação. Não há como não se lembrar de Liv Ullmann e Bibi Andersson no filme Persona (1966) de Ingmar Bergman.
        A música envolvente de Marcelo Pellegrini, a iluminação de Wagner Freire e todo o aparato tecnológico (câmeras, projeções, vídeos) colaboram definitivamente com a direção para resultar nesse deslumbrante espetáculo.
        Para melhor refletir sobre a trama prefiro antes ler o livro e então voltar a assistir ao espetáculo.
        ATENÇÃO: Para uma melhor fruição do espetáculo, procure sentar nos assentos centrais da plateia e evite a plateia lateral.

        A DESUMANIZAÇÃO está em cartaz no SESC Santana até 30/06 às sextas e aos sábados (21h) e aos domingos (18h). No dia 16/06 haverá um encontro com Valter Hugo Mãe após a apresentação do espetáculo.

        28/05/2019




sexta-feira, 24 de maio de 2019

O HOMEM-MEGA-FONE/A ARTE DO REENCONTRO




(Matéria teatral-afetiva)

        Entre o final de 2015 e o início de 2016 acompanhei o processo de ensaios e as apresentações de duas peças da Companhia Teatro da Investigação (CTI), minha função era escrever um relato sobre o processo do grupo desde o ensaio até as apresentações. Foram quase seis meses de convívio profícuo e amistoso. Essa convivência está registrada no já citado relato e na centena de fotos que fiz na ocasião.
        A vida nos leva e traz e durante os últimos três anos acabei perdendo o contato com grupo, apesar de ter notícias sobre ele e sobre a inauguração da sede própria na Vila Ré.
        Finalmente ontem tive a oportunidade de conhecer a sede, reencontrar amigos e assistir ao espetáculo O Homem-Mega-Fone.

        A sede é composta de uma casa que abriga biblioteca e camarins e de um generoso galpão onde são feitas as apresentações.


        A peça O Homem-Mega-Fone foi escrita por Edu Brisa em 2009 enquanto ele participava do Seminário de Dramaturgia realizado pelo saudoso Chico de Assis (1933-2015) e tem suas raízes no teatro popular do importante CPC (Centro Popular de Cultura) que foi esmagado pela funesta ditadura imposta ao Brasil em 1964.
        De caráter épico a peça mostra grupo de habitantes de um grande centro urbano que vive de catar e vender papelão usando para isso um megafone para “ofertar os seus produtos”. Um desses homens resolve se candidatar a vereador e numa troca de favores (sempre em seu benefício) entrega o megafone a um menino ingênuo e cheio de boas intenções. A disputa pelo objeto e a ascensão do candidato inescrupuloso que compra adesões e até sentimentos são os temas da peça. As entre cenas são recheadas com poderosa percussão produzida pelo próprio elenco com inusitados objetos (panelas, canecas e tambores) e por números de rap que comentam a ação. Mérito para a direção musical de Fernando Alabê e para as preparações corporal e vocal assinadas por Carlos Simioni.            
        A encenação de Carol Guimaris é dinâmica permeando cenas da trama em si com os já citados recursos sonoros A movimentação cênica dos atores junto com a carroça revela-se como atraente coreografia que aguça o olhar do espectador.
        O elenco homogêneo e cheio de energia mostra mais uma vez a militância do grupo e não há como não destacar o trabalho de Geovane Fermac que, apesar da idade, convence como o garoto que tem um fim trágico para a felicidade geral da nação.

        Foi com grande alegria que reencontrei os queridos Cris Camilo, Geovane Fermac, Carol Guimaris, Edu Brisa e Harry de Castro e também fiquei feliz ao saber que outro querido, o Guguigon (Gustavo Guimarães), agora faz parte do grupo. De lambuja, além dos abraços, o público é presenteado com um exemplar do livro A Dramaturgia do Teatro-Baile do Edu Brisa e com mais de um gole do delicioso cariri, “bebida oficial do grupo”.
       
        O HOMEM-MEGA-FONE está em cartaz na sede da CTI na Rua Oti, 212 na Vila Ré a cinco minutos da Estação Patriarca do metrô. Sessões de quinta a sábado às 20h até 29 de junho.

        O teatro realizado por vários grupos na periferia da cidade merece maior atenção tanto pelo serviço político, social e cultural prestado às comunidades como também pela qualidade de seus trabalhos. Vale a pena sair da acomodação na Broadway paulistana e estender o olhar para além dessa zona de conforto. Resta saber se uma maior divulgação nos guias de teatro levaria mais público a esses espetáculos.

O TEATRO NOS UNE
O TEATRO NOS TORNA FORTES
VIVA O TEATRO!

        24/05/2019


segunda-feira, 20 de maio de 2019

EM UM DIA QUALQUER




        Linda McLean é uma dramaturga contemporânea escocesa com considerável número de peças escritas e encenadas. Chega aos palcos paulistanos pela primeira vez por intermédio da atriz Cristina Cavalcanti que interpreta e traduziu Em Um Dia Qualquer (Any Given Day) de 2012.
        Segundo Carlos Baldim, diretor da montagem, a autora divide esta obra em duas peças distintas, mas que devem ser encenadas numa mesma apresentação. A peça 1 retrata o cotidiano de dois velhos meio malucos que esperam uma visita e descobrem que esqueceram de comprar pão; a peça 2 mostra uma jovem sendo assediada pelo dono do bar onde trabalha. Enquanto a peça 1 usa recursos do teatro do absurdo, a segunda trilha a zona do teatro realista e a montagem de Baldim soube dosar muito bem essa diferença na separação do palco em dois ambientes distintos tanto no cenário (Cesar Rezende) como na iluminação (Junior Docini e Carlos Baldim) e nas interpretações também virtualmente distintas que Cristina Cavalcanti dá para a velha da peça 1 e para a jovem da peça 2, aliás, pelo que pude pesquisar, as encenações estrangeiras usavam duas atrizes:uma para a gorda Sadie da peça 1 e outra para Jackie da peça 2 e nesta montagem a atriz incumbe-se dos dois papeis fazendo em cena a transmutação de uma personagem para a outra.
        Em Um Dia Qualquer é uma peça que depende quase exclusivamente do bom elenco. Sabedor disso Baldim deixa o espetáculo nas mãos da atriz e dos atores (Fabio Mráz e Ricardo Ripa), dando-se ao luxo de fazer uma “pontinha” na peça 1.
        A direção acerta também ao fazer uma ligação entre as duas tramas ao final da segunda. A cena final do espetáculo, auxiliada pela excelente trilha sonora de L.P. Daniel é de grande impacto e trata-se de elogioso acréscimo feito pelo diretor ao original de McLean.
        Sendo, como a autora afirma, duas peças distintas, fica a pergunta que não quer calar: Poderia ser apresentada primeiro a peça 2 e depois a peça 1?
        Em Um Dia Qualquer é um texto instigante que recebeu ótima tradução cênica de Carlos Baldim e que conta com talentoso elenco para interpretá-lo. Merece uma ida ao aconchegante e um pouco distante Teatro Décio de Almeida Prado no Itaim Bibi.
        Em cartaz até 26/05 com sessões aos sábados às 21h e domingos às 19h.

        20/05/2019



sexta-feira, 17 de maio de 2019

BOCA DE OURO



        Nelson Rodrigues é o autor brasileiro mais montado em São Paulo e, talvez, no Brasil. Apesar de ter escrito apenas 17 peças, elas são constantemente remontadas e reinventadas sempre com grande sucesso, pois se tornaram clássicas em sua abrangência humana que é atemporal.
        Classificada como tragédia carioca, Boca de Ouro junto com A Falecida, é para mim uma das dramaturgias mais perfeitas do autor: diálogos fluentes, desenvolvimento perfeito da trama e final impactante mesmo para quem conhece a obra.
        Já visitada por José Celso Martínez Corrêa em 1999 e por Gabriel Villela em 2017 surge agora na versão do Grupo Oficcina Multimédia de Minas Gerais sob a direção de Ione de Medeiros.
        A encenação deste Boca de Ouro é uma verdadeira caixa de surpresas e eu tenho uma sugestão para aqueles que pretendem assistir a este ótimo espetáculo: não se informe muito sobre ele, nem leia o programa antes de vê-lo e assim aquelas dúvidas sobre quem faz qual personagem e como serão as soluções empregadas para as mudanças de cena serão reveladas de maneira bombástica e surpreendente somente durante o momento em que se está vendo a apresentação.


        O caso de Dona Guigui é emblemático para mim, pois se trata de um dos personagens de Nelson Rodrigues que me é mais caro. A Guigui de Odete Lara com seu vestido branco com bolas pretas no filme de Nelson Pereira do Santos (1963) é aquela dos meus sonhos. No teatro tivemos excelentes Guiguis como Sylvia Prado na montagem do Oficina e Lavínia Pannunzio na recente encenação de Villela. Era natural que eu estivesse com muita expectativa no momento em que Caveirinha bate à porta e Agenor atende e chama pela mulher. Quem surge como Guigui com um leque na mão? A tentação é grande, mas fiel ao que escrevi acima não serei um desmancha prazer. Vá ver e não se surpreenda se for capaz!


        Todo o elenco tem perfeito domínio de cena e incorpora com exatidão em suas interpretações o universo suburbano carioca retratado pelo dramaturgo. Consegui com um dos atores a distribuição dos personagens, mas pelo já escrito não revelarei aqui, mas não há como não destacar as interpretações de Jonnatha Horta Fortes, Henrique Mourão, Gustavo Sousa e Victor Hugo Barros.


        A diretora Ione de Medeiros assina também o interessante cenário que servirá para os vários ambientes onde acontecem as ações e o delicioso figurino que remete tanto ao subúrbio como ao universo pop, bastante lembrado durante a apresentação.
        A trilha sonora de Francisco Cesar cria o ambiente do espetáculo desde o momento em que um primeiro som de percussão invade o teatro antes dos atores entrarem em cena, assim como a significativa iluminação de Bruno Cerezoli.
        Você que não está disposto a ver este espetáculo por já ter assistido a vários Boca de Ouro ou porque não conhece o grupo ou ainda porque o SESC Santo Amaro é longe, mude sua atitude e vá! Garanto que não vai se arrepender.

        BOCA DE OURO está em cartaz no SESC Santo Amaro até 09/06 de quinta a sábado às 21h e domingo às 18h.

        16/05/2019

        OBS: O conteúdo desta matéria pediu que ela fosse escrita em tom coloquial.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

CONTO DE INVERNO



       Em 2015 o cenógrafo Kleber Montanheiro criou um ambiente de taverna no espaço alternativo do Viga Espaço Cênico para a peça O Impostor Geral do Núcleo Sem Querer de Tentativas Teatrais. Terminada a temporada do espetáculo o cenário ali permaneceu voltando a ser utilizado um pouco modificado em Fuente Ovejuna (2017), segundo espetáculo do grupo. A Companhia Nefanda também chegou a utilizá-lo em parte com sua A Comédia dos Erros (2018). Para completar sua Trilogia da Taverna, o Núcleo ali apresenta agora Conto de Inverno.
       Tudo é tragédia na Sicília, enquanto tudo (ou quase tudo!) é comédia na Boêmia. Shakespeare é realmente surpreendente! Esta peça começa no estilo de suas tragédias e termina como um conto de fadas. Só um gênio para fazer isso de forma tão harmoniosa.
       A direção de Juliano Barone e seus jovens atores captaram muito bem esses dois aspectos da obra realizando um espetáculo tão harmonioso e equilibrado como o original.
       Merece destaque a tradução e adaptação de Bruna Longo que usa linguagem coloquial e até toma a liberdade de utilizar texto de Brecht (salvo engano, a última fala de A Exceção e a Regra) para encerrar o espetáculo.
       É muito estimulante ver grupo jovem realizando trabalho sério e competente endereçado especialmente a jovens espectadores. Não há melhor maneira de formar novos públicos do que apresentar a eles espetáculos comunicativos e bem realizados. Conto de Inverno atinge e agrada desde o espectador mais sofisticado até aquele que está indo pela primeira vez ao teatro.
       O jovem elenco é bonito, bom e muito espontâneo e fica difícil destacar esta ou aquela participação em conjunto tão uniforme. As belas músicas apresentadas ao vivo são compostas por elementos do grupo, mas poderiam ser mais baixas para não cobrir, em certos momentos, as falas dos atores.
       Gostoso de assistir, Conto de Inverno é apresentado aos domingos, segundas e terças às 15h no Viga Espaço Cênico até 21/05 (as apresentações de segunda e terça feira são gratuitas).

       15/05/2019

segunda-feira, 13 de maio de 2019

A GOLONDRINA



        A palavra golondrina não existe em português e sua tradução é andorinha, mas tem sonoridade tão bonita e poética em nossa língua que agiu acertadamente a tradutora da obra (Tania Bondenzan) em manter o título original da peça do jovem dramaturgo espanhol Guíllen Clua (1973-) ora em cartaz na cidade.
        A Golondrina é típico e eficiente melodrama, no melhor estilo almodovariano, contando o encontro, a princípio civilizado, de um rapaz com uma professora de canto. O embate entre esse jovem e uma mãe que não assumia a homossexualidade do filho morto em atentado ocorrido em uma boate gay é cheio de reviravoltas e coloca em cena os preconceitos e tabus existentes em relação ao mundo homossexual.
        Esse tipo de texto exige direção equilibrada e atores que o interpretem na corda bamba da emoção para não resvalarem no drama barato e aqui essas funções estão magnificamente preenchidas. A direção de Gabriel Fontes Paiva é sóbria dando ênfase para o que há de mais humano nas personagens e os atores correspondem plenamente à sua proposta.
        Tânia Bondenzan tem, a meu ver, a melhor interpretação de sua carreira como a mãe que tem seus segredos no que concerne à sua relação com o filho; sua composição é cheia de pequenas nuances e Luciano Andrey lhe é um surpreendente contraponto como o jovem que vem remexer feridas dessa mulher, pondo a nu também as suas. A direção aproveita recursos canoros do ator para colocar algumas canções em sua bela voz, canções essas fundamentais para o desenvolvimento da trama.
        Pelas emoções despertadas assiste-se a A Golondrina com um nó na garganta, mas também com um sorriso nos lábios e isso se deve à engenhosidade do texto, à bela tradução cênica do diretor e à excelente interpretação da dupla de atores.

        A GOLONDRINA está em cartaz às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 19h no Teatro Nair Bello até 09/06.

        12/05/2019


domingo, 12 de maio de 2019

VIANNINHA CONTA O ÚLTIMO COMBATE DO HOMEM COMUM



        Rebatizada com o longo título acima, a peça Nossa Vida em Família ganha ótima montagem dirigida por Aderbal Freire-Filho com temporada mais que relâmpago em São Paulo (apenas quatro apresentações no SESC 24 de Maio).
        A velhice solitária e a morte seriam os últimos combates do homem comum (e pobre), mas outros combates estão presentes neste potente texto de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) como as relações de trabalho e o drama de consciência do filho Jorge e as falcatruas que a filha Cora tem que fazer para poder sobreviver. A alienação está presente no filho Beto e o individualismo em Neli, a única da família que está “bem de vida”.
        A encenação de Aderbal Freire-Filho privilegia a epicidade do texto fazendo com que os próprios atores realizem as trocas de cena e é muito bonito ver o recurso de distanciamento presente quando os atores saem da personagem para rearranjar os adereços de cena para a seguir voltar a vestir a máscara e seguir na ação.
        Um elenco de dez atores, a maioria desconhecida nos palcos paulistanos, defende com muito empenho as palavras criadas pelo saudoso Vianninha. O casal de velhos é muito bem defendido por Rogério Freitas e Vera Novello e têm belíssimo momento na antológica cena do telefonema. O filho Jorge é feito com vigor por Gustavo Ottoni e está muito bem acompanhado pela forte presença cênica de Ana Barroso, como sua esposa. Apesar da participação menor, outra presença marcante em cena é Beth Lamas (lembra fisicamente a grande atriz Wanda Kosmo) como a rica e egoísta Neli. Kadu Garcia interpreta vários papeis inclusive aquele do palhaço que costura as cenas e critica as ações, algo que a meu modo de ver nada acrescenta a esta excelente montagem.
        A dramaturgia consistente e militante de Vianninha contando uma boa história com diálogos fluentes é coisa rara nos dias de hoje e é muito louvável que se remonte seus textos para que os jovens de hoje tenham contato com os mesmos.

        MEMÓRIA: a primeira montagem de Em Família ocorreu em 1972, dirigida por Antunes Filho, tendo Paulo Autran e Carmen Silva como o casal de velhos.

        Última apresentação HOJE, domingo 12 de maio no SESC 24 de Maio. CORRA, AINDA DÁ TEMPO!

        12/05/2019


sábado, 11 de maio de 2019

BAIRRO CALEIDOSCÓPIO




        Alfonsito não tem ódio, nem aversão à sociedade para ser definido como um legítimo misantropo, mas morre de medo dela e assim prefere a solidão do seu quarto empoeirado a sair e ir até o mercadinho para comprar um pão... Ou dois. A peça do equatoriano Carlos Gallegos mostra esse homem frágil e triste armando-se de coragem para enfrentar o mundo lá fora. Texto simples só na aparência, é na verdade uma poderosa metáfora das dificuldades de se comunicar em uma contemporaneidade tão cheia de meios de comunicação que na realidade se mostram superficiais e quase inúteis no que tange à aproximação e à solidariedade humana.
        Essa foi a peça escolhida por Alexandre Meirelles para a reabertura da aconchegante Casa da Gioconda, localizada no bairro da Bela Vista, o nosso amado Bixiga.


        Thiago Carreira brilha na opacidade do melancólico Alfonsito. O ator mostra pleno domínio das expressões corporais e, principalmente faciais, e muitas vezes a mímica “diz” muito mais do que as falas do texto. Há um quê do vagabundo Carlitos de Charles Chaplin no seu modo de expressar os sentimentos da personagem.


        A direção de Marcella Piccin é bastante delicada e foca seu trabalho na interpretação do ator, amparada no eficiente cenário de Cy Teixeira formado por armários cheios de gavetas coloridas que servirão como grande suporte para as ações de Alfonsito e que se tornam quase uma segunda personagem da encenação. Momentos muito poéticos como a cena do cuco ou da suposta conversa de Alfonsito com a atendente do mercadinho atestam a qualidade e a sincronia da equipe dirigida por Piccin: somam-se harmoniosamente atuação, cenário, luz e trilha sonora dando como resultado uma deliciosa hora de convivência com Alfonsito.


        E assim a Casa da Gioconda de Milton Morales Filho reabre com chave de ouro, anunciando grandes novidades com sua parceria com a XYZ Produções Artísticas, que tem coordenação artística de Alexandre Meirelles e José Maria Freixa.


        Em momento caótico para a cultura e o teatro, onde as notícias giram em torno de corte de verbas e fechamento de teatros é mais que alvissareira a notícia da abertura de um espaço teatral.
        Longa vida à Casa da Gioconda!

O TEATRO NOS UNE
O TEATRO NOS FAZ FORTES
VIVA O TEATRO!

        BAIRRO CALEIDOSCÓPIO está em cartaz na Casa da Gioconda (Rua Conselheiro Carrão, 288) até 16 de junho com sessões às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 19h.

            Fotos de Ronaldo Gutierrez



        11/05/2019

terça-feira, 7 de maio de 2019

ANGELS IN AMERICA



        Na época de seu lançamento nos anos 1990, esta peça tinha dois subtítulos: “Uma peça dos tempos da AIDS” e “Fantasia gay sobre temas nacionais americanos”. Mais de vinte anos depois este épico contemporâneo dispensa esses subtítulos, pois por suas qualidades tornou-se um clássico e suas bases são atemporais. A AIDS está muito presente, mas pode ser tomada como uma metáfora dos males e perigos a que a contemporaneidade está sujeita.
        Sendo assim é muito bem vinda e oportuna a iniciativa da Armazém Companhia de Teatro de montá-la nos dias de hoje. A peça é constituída de duas partes de 150 minutos cada (O Milênio Se Aproxima e Perestroika) e está sendo apresentada na íntegra. Em São Paulo houve apenas a montagem da primeira parte em 1995 com direção de Iacov Hillel.
        A peça, bastante abrangente, trata de política (foi escrita durante a republicana e conservadora Era Reagan, com a qual o governo Trump muito se assemelha), homossexualidade, preconceitos raciais e de gênero, além de assuntos filosóficos e existenciais. Bastante complexa recebeu encenação precisa e enxuta de Paulo de Moraes que depois de enveredar por encenações com dramaturgias, a meu modo de ver, bastante equivocadas e fazer um Hamlet mais equivocado ainda, acerta em cheio com esse longo espetáculo com seis horas de duração (cada parte pode ser vista separadamente).
        A encenação é clean, com o espaço cênico quase vazio e com rica projeção (Rico Vilarouca e Renato Vilarouca) em uma tela em plano inclinado situada no alto do palco. Ali são projetadas as explosões e cenas dantescas provocadas pelas visões do personagem Prior e que precedem o surgimento do Anjo. Colaboram para a beleza do espetáculo a iluminação de Maneco Quinderé e a trilha sonora de Ricco Vianna com sugestivos solos de bateria de Rick De La Torre. A direção de movimento dos atores em cena (Paulo Mantuano) é bastante dinâmica e a saída de alguém sempre corresponde à entrada de outrem, evitando os indesejáveis tempos mortos.
        Patrícia Selonk tem novo brilhante momento de sua carreira interpretando vários personagens com destaque para o Rabino, Ethel Rosenberg e a mãe Hannah Pitt. Sempre ótimo e com forte presença, Marcos Martins faz, entre outros, o Anjo. Sérgio Machado transmite energia com seu asqueroso Roy Cohn. Ricardo Martins compõe com precisão o enrustido Joe Pitt. Os gays são apresentados sempre bonitos, sedutores e musculosos e é muito interessante a escolha de um ator sem essas características (Luís Felipe Leprevost) para o papel de Louis. Lisa Eiras é responsável por alguns momentos descontraídos e engraçados como Harper, a esposa de Joe; é ela também a responsável pela primeira personagem que se liberta das amarras familiares e tem uma belíssima fala quase ao final sobre as almas que circulam no espaço. A responsabilidade de Jopa Moraes é muito grande para interpretar o protagonista Prior, mas não corresponde totalmente, principalmente, por suas limitações vocais. E propositalmente por último, o grande destaque do espetáculo: Thiago Catarino está não menos que excepcional como o enfermeiro Belize e merece estar na lista das melhores interpretações do ano (suas intervenções junto ao enfermo Roy são absolutamente deliciosas).
        A cena final no Central Park de Nova York com o anjo Bethesda como testemunha é um voto de esperança no milênio que estava por vir, mas a realidade destes primeiros anos do século XXI tem se mostrado cruel, desesperançosa e muito distante do otimismo com que se aguardava a era de Aquário. 
        ANGELS IN AMERICA é, com certeza, um dos grandes acontecimentos teatrais de 2019 e está em cartaz no recém-batizado Teatro Antunes Filho do SESC Vila Mariana até 02/06.

        ParteI: O Milênio Se Aproxima – Sextas, 21h/ Sábados, 18h
        Parte II: Perestroika – Sábados, 21h/ Domingos, 18h

        06/05/2019


sábado, 4 de maio de 2019

ANTUNES FILHO



ATÉ A PRÓXIMA!

QUEM NÃO TEM UMA HISTÓRIA COM O MESTRE ANTUNES?

        Seja ator ou atriz ou outras pessoas ligadas às atividades teatrais ou simplesmente espectador você com certeza cruzou com aquele homem franzino no saguão de algum teatro onde se apresentava uma peça dirigida por ele. Desde 1984 o cenário habitual de Antunes era o SESC Consolação, onde hoje ele se despede de todos nós.
        Eu sempre quis chegar ao Antunes, a minha admiração por sua obra e, principalmente, por Paraíso Zona Norte, peça que considero uma das mais significativas e marcantes da minha vida de espectador. Não era muito fácil chegar ao mestre, mas em 1997, ele criou no CPT um curso de designer sonoro coordenado por Raul Teixeira - que viria a se tornar um grande amigo - e eu consegui uma vaga. Lembro que me emocionei muito no dia em que soube que havia sido aprovado e chorei copiosamente enquanto subia a Consolação para voltar para casa. Era a chance de se aproximar do Mestre. Daí em diante foi mais fácil e eu até lhe entreguei parte da minha dissertação de mestrado onde escrevo sobre seus trabalhos, mas não sei se um dia ele chegou a ler. A primeira peça a que assisti dirigida por ele foi A Megera Domada no Teatro Aliança Francesa em 1965 e daí até hoje as únicas que perdi foram O Assalto e Esperando Godot, ambas encenadas em 1977, ano em que eu estava fora do Brasil. Há histórias engraçadas ocorridas durante o tempo que passei pelo CPT (cheguei a iniciar um curso de dramaturgia e até arrisquei substituir o Raul na sonoplastia do grupo, mas naquele momento o Antunes estava mais interessado em um marceneiro do que em um sonoplasta!)
        Grande Mestre com quem tanto aprendi, não no fazer teatral, mas ao assistir seus espetáculos criativos e instigantes.
        Sendo assim eu não poderia deixar de testemunhar sua última cena e para tanto me dirigi ao Teatro Anchieta na sexta feira pela manhã.
        Eu estava emocionado, mas controlado, porém, ao adentrar a sala de espetáculos e me deparar com o palco coberto de coroas de flores e o caixão no meio da cena, desabei e as lágrimas quiseram brotar para me certificar que Antunes tinha realmente partido.



        A comoção era geral desde em veteranos como Laura Cardoso, Eva Wilma e Sergio Mamberti, como nos eternos Romeu e Julieta de 1984 (Marco Antônio Pâmio e Giulia Gam), passando por uma geração formada no CPT (Sabrina Greve, Susan Damasceno, Emerson Danese, Eric Lenate e o famoso Geraldinho, entre outros) até em jovens provavelmente participantes do CPTzinho nos dias de hoje. As pessoas se encontravam, se abraçavam muito forte e não havia como não recordar esta ou aquela frase ou história do Mestre.


        Foi bonita a despedida: houve muitas palmas, oração em fonemol, dança ao som de O Danúbio Azul e falas de várias pessoas, inclusive do Professor Danilo, que emocionado disse que o teatro do SESC Vila Mariana passa a se chamar Teatro Antunes Filho. Homenagem mais que justa, mas a meu ver, aquele que deveria levar o nome do Mestre, seria o Teatro Anchieta, palco onde ocorreu a maioria dos trabalhos dele. Desculpe Padre Anchieta, mas o Antunes foi muito mais importante do que o senhor nesse espaço sagrado do teatro paulistano.

        VIVA ANTUNES FILHO!
        VIVA O TEATRO!

        04/05/2019