segunda-feira, 6 de outubro de 2025

DUAS MÁSCARAS NUAS

 


UMA NOITE DE BOM TEATRO

        Faz muito bem ao espectador assistir a um bom texto, bem dirigido e interpretado por um elenco de notáveis. Assistir a um espetáculo do “Grupo Tapa” é certeza de ter uma tríade com essas características.

        “Duas Máscaras Nuas” é a reunião de dois textos curtos de Luigi Pirandello (1867-1936): “Cecé” (1910) é uma comédia dos primeiros anos do autor como dramaturgo e “O Homem Com A Flor na Boca” (1922) é um drama escrito logo após de “Seis Personagens à Procura de Um Autor”, marco na carreira de Pirandello.

        “Cecé” mostra as peripécias de um aproveitador que aplica golpes em quem está por perto. O Tapa fez uma versão on line desta peça na época da pandemia (novembro de 2020), mas a versão ao vivo ganha em ritmo, ironia e humor com ótimos desempenhos de André Garolli, Norival Rizzo e Camila Czerkes. O sugestivo cenário rodeado de espelhos parece transmitir a relatividade da verdade, tão cara ao dramaturgo italiano.

        Após um breve intervalo é a vez de “O Homem Com a Flor na Boca”, em um cenário limpo apenas com duas mesas e duas cadeiras onde acontece o encontro do homem do título (Norival Rizo) e um passageiro que aguarda a chegada do seu trem (André Garolli).

        Eu tenho um bauzinho onde guardo com muito cuidado a memória de muitos momentos mágicos e humanos que o teatro me oferece há 60 anos. A belíssima cena em que a personagem de Norival descreve como uma vendedora faz um embrulho de presente foi uma das coisas mais incríveis e belas a que presenciei nesta longa trajetória como espectador e com certeza ela já está guardada no meu bauzinho. Só por esta cena, Norival deveria receber prêmios de melhor ator do ano.



      O passageiro (Garolli) é um ouvinte nem sempre atento, mas também incrédulo, com a conversa do homem e ver as suas reações em cena são um espetáculo a parte.

        Ao final, comentei com Garolli que para ele deve ser um privilégio assistir a cada apresentação a performance de Rizo. É uma verdadeira aula de interpretação!

        As duas peças são dirigidas por Eduardo Tolentino de Araujo com a elegância e o rigor que lhe são habituais.

        De lambuja, Tolentino faz uma muito bem-vinda mini palestra no início sobre a vida e a obra de Pirandello, situando e comentando as duas peças apresentadas.

        Grande noite de teatro ocorrida no aconchegante Galpão do Tapa, sede da companhia situada na Rua Lopes Chaves, 84 na Barra Funda.

        DUAS MÁSCARAS NUAS fica em cartaz até o final da próxima semana com sessões sábado e domingo à 20h.

 

        6/10/2025

domingo, 5 de outubro de 2025

FILOCTETES EM LEMNOS

 

Ontem assisti à performance de Vinicius Torres Machado no TUSP. Experiência rara, e acredito única, na trajetória de um espectador bastante calejado. Sai do teatro confuso e muito tocado por aquela figura nua, muda e isolada do mundo.

Ao chegar em casa comecei a ler o livreto distribuído ao fim do espetáculo que é, segundo Vinicius, “a realidade da matéria viva que originou o espetáculo”. Li a metade do volume e já bastante perturbado fui dormir com medo de perder o sono diante da descrição de tantas dores físicas e morais. Na manhã deste domingo ensolarado terminei de ler e compreendo melhor aquilo a que assisti na noite de ontem. Dilacerante!

O espetáculo remete ao mito de Filoctetes que ficou abandonado pelos gregos   na ilha de Lemnos, após ser mordido por uma serpente e suas feridas exalarem mau cheiro. Filoctetes passou nove anos isolado sofrendo muito com suas dores terríveis e sua solidão. A experiência de Vinicius com as dores terríveis que a doença lhe trouxe e a solidão pelos quartos de hospital pelos quais passou fez com que ele se aproximasse do mito grego e desenvolvesse esse trabalho radical sem palavras e com movimentos mínimos e até infantis quando tenta se comunicar com a escuridão que tem pela frente e é muito doído para o espectador fazer parte dessa escuridão.

Depois de alguns anos Filoctetes foi resgatado pelos gregos para lutar na guerra de Troia e Vinicius “resgatou-se” para a vida e hoje tem condições e muita coragem de apresentar esse trabalho ao público. De alguma maneira não deixam de serem finais felizes.

O espetáculo é esteticamente muito bonito com iluminação precisa e deslumbrante assinada por Dimitri Luppi e Wagner Antônio.

Depois de uma hora, Vinicius cobre seu corpo e senta-se na cadeira em que iniciou o trabalho. As meninas da produção abrem as portas do teatro dando sinais que o espetáculo terminou, mas o público demora a abandonar o espaço e mesmo lá fora, ainda sob o impacto daquilo que presenciou, fica vagando enquanto recebe o livreto que complementa essa obra tão radical e tão importante para compreendermos nossos corpos e nossas almas.

Esse precioso espetáculo fica em cartaz só até hoje (5/10) no TUSP Maria Antonia.

CORRA!! 

5/10/2025

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

ADULTO

 

Foto de Julieta Bacchin

“Então foram felizes para sempre...” 

Fran Ferraretto é uma bela mulher de pouco mais de 30 anos que ousa dizer que na maioria das vezes esse final está longe de ser feliz, se é que há um final.

Para tanto monta a dramaturgia da peça “Adulto” com dois casais: um deles bastante disfuncional (João e Sara) e o outro (Vitor e Paula) que mantém sua harmonia (e felicidade?) quando cada um preserva sua individualidade e sua liberdade. Esses dois casais se conhecem e se encontram em reuniões barulhentas e nem sempre amigáveis. As mulheres parecem se dar bem, mas há ciúmes e inveja de João em relação ao sucesso profissional de Vitor. Está montada a estrutura para Fran mostrar a emancipação da mulher.

Em recurso dramatúrgico não original, mas muito interessante, a peça reúne quatro intérpretes para fazer uma leitura dessa peça que fala sobre os dois casais. A apresentação transcorre entre a leitura da peça e cenas da própria peça provocando um bem-vindo dinamismo à montagem.

O texto é nervoso e a direção de Lavínia Pannunzio reforça ainda mais esse nervosismo imprimindo muita velocidade, principalmente nas cenas de conjunto onde o elenco grita, corre para lá e para cá e muitas vezes fala simultaneamente, além de estar acompanhado pelo barulho ensurdecedor de uma máquina de lavar roupa.

Iuri Saraiva representa João, o frustrado marido de Sara, oscilando entre o sentimento de ser traído por ela e a revolta com as atitudes liberais da mulher.

Sidney Santiago Kuanza empresta seu talento para interpretar Vitor, o amigo melhor sucedido de João de quem este tem inveja.

Jennifer Souza tem seus bons momentos como a emancipada Paula prejudicados pela voz muito estridente que, por vezes, dificulta a compreensão daquilo que ela está falando.

Fran Ferraretto brilha como a líder do grupo que faz a leitura e a personagem de Sara que depois de seu caso/traição no Uruguai enxerga os relacionamentos com outros olhos.

De um modo geral as interpretações são muito boas, apesar de gritadas demais. Alguns momentos de silêncio soaram como um bálsamo para este espectador.

A montagem conta com o cenário de Mira Andrade (uma grande mesa e cadeiras com várias funções), desenho de luz de Gabriele Souza, figurinos de Anne Cerutti e os terríveis ruídos da máquina de lavar roupa (quase uma personagem!) na trilha sonora assinada por Rafael Thomazini.

Pela importância do tema tratado é importante prestigiar a peça de Fran Ferraretto. 

ADULTO está em cartaz no SESC Ipiranga até 12/10 às sextas e sábados às 20h e aos domingos às 18h 

3/10/2025

 

 

terça-feira, 30 de setembro de 2025

JOB


Job é exemplo de peça bem escrita: personagens bem definidos e bem construídos, diálogos ágeis e cortantes, trama bem urdida revelando aos poucos as razões de cada personagem ocasionando reviravoltas que mantém o público em constante atenção e surpresa até uma revelação final, quase sempre bombástica, que leva os espectadores à catarse final que termina em aplausos calorosos. Os manuais de dramaturgia, quase sempre de origem norte-americana, costumam dar o caminho para se produzir a assim chamada “playwriting” bem sucedida, mas não há receita para quem não tem imaginação nem talento.

Conhecimento dos trâmites das redes sociais, imaginação e talento não faltaram para o jovem (30 anos) dramaturgo norte-americano Max Wolf Friedlich ao escrever essa trama envolvendo uma profissional da internet que foi afastada da empresa depois de ter um surto ao filtrar conteúdos agressivos e/ou pornográficos da rede social e um terapeuta responsável por elaborar um laudo que permita ou não que ela volte ao trabalho. A trama respira perversidade e há um clima parecido com as primeiras peças de Edward Albee.

A peça inicia com uma cena muito agressiva que se torna clara ao retornar pouco antes das luzes se apagarem anunciando o final da apresentação. Entre essas duas cenas acontece o duelo de noventa minutos entre as duas personagens.

O sucesso desse tipo de trabalho depende do talento e da garra dos intérpretes.

Edson Fieschi transita entre a frieza do terapeuta e o assombro do homem quando acuado.

Bianca Bin é um furor no palco desde a primeira cena; despindo-se de sua beleza natural ela se entrega totalmente à personagem da neurótica e desleixada Jane. Sua interpretação se inscreve nas melhores do ano.

      Fernando Philbert foca a direção nos dois intérpretes sem deixar de lado os recursos cenográficos (Natália Lana), os figurinos discretos (Ronald Tixeira) e a iluminação preciosa de Vilmar Olos que ilustra os pensamentos dos personagens quando estes se afastam do diálogo para refletir sobre o que está ocorrendo. A trilha sonora soturna de Marcelo Alonso Neves também colabora para o tenso clima da peça.

 Repito aqui um termo não muito elegante que usei ao sair da peça: Fiquei CHAPADO!!

        JOB esteve em cartaz no Teatro Vivo até o último domingo, dia 28/09 e deve estrear no Rio de Janeiro em breve.

        A peça já saiu de cartaz, mas eu não poderia deixar de registrar aqui os méritos da mesma e como ela me deixou CHAPADO!

        30/09/2025


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

ELÃ Peça do Livro de Linhas

 

E, no entanto, é preciso cantar

Mais que nunca é preciso cantar

É preciso cantar pra alegrar a cidade

(Vinicius de Moraes) 

        Em momento tão grave de sua trajetória a “Cia. Mungunzá de Teatro” realiza o espetáculo mais descontraído de seu repertório. Não se trata de trabalho descompromissado, muito menos alienado, a denúncia e a militância tão próprias do grupo estão ali, mas de maneira irônica e até bem humorada, graças em boa parte à direção de Isabel Teixeira. Um momento especial do espetáculo retrata bem isso, quando Virginia Iglesias à bateria acompanha Nina Simone cantando a icônica canção “I Feel Good” (Eu me sinto muito bem), enquanto as imagens mostram a tragédia de um carro rolando na ribanceira matando todos os seus passageiros.

        O processo de criação que envolveu idas e vindas de textos criados/improvisados pelo grupo e supervisionados por Isabel resultou em um belo livro costurado a mão; desse livro saiu o texto teatral apresentado.

        São cenas envolvendo situações e personagens diversas apresentadas de maneira aparentemente aleatória e desta vez cabe ao público costura-las da maneira que achar melhor.

        É surpreendente e muito prazeroso assistir à descontração das moças Sandra Modesto, Verônica Gentilin e, principalmente, Virginia Iglesias, em papéis bem diferentes daqueles que realizaram até hoje. Dilma Corrêa é uma delícia como a mãe do vendedor de morangos interpretado por Marcos Felipe, que na realidade é filho dela. Lucas Bêda tem grande momento como o animador de velórios (clara referência à agonia do Teatro de Contêiner). E é sempre uma alegria testemunhar a evolução de Leo Aiko e Pedrinho das Oliveiras (também filho de Dilma e irmão de Marcos)) como atores.

        Esta não é uma crítica, nem tampouco uma matéria, é apenas um conselho para que você não perca este instigante trabalho de um dos mais importantes grupos teatrais de São Paulo.

        ELÃ está em cartaz no SESC Pompeia até 12/10 de quinta a sábado às 20h e domingo às 18h

        29/09/2025

terça-feira, 23 de setembro de 2025

SEIS ATORES EM BUSCA DE SÉRGIO CARDOSO

 

1.   Prólogo

As respostas mais comuns à pergunta “Quem foi Sérgio Cardoso?” são: 

         - Queemm?

         - Sei lá!

         - É aquele do teatro?

        Essas respostas podem ser encontradas inclusive entre jovens que fazem teatro e se trata de um dos maiores atores surgidos no Brasil no século XX.

        Por tudo isso e em memória do nosso teatro é muito bem-vinda a homenagem que o Teatro Sérgio Cardoso e a Associação Paulista dos Amigos da Arte estão realizando no ano em que Sérgio completaria cem anos.

        Nesta semana estreia a peça escrita e dirigida por Rita Batata e no dia 13 de outubro (data na abertura do teatro em 1980) é inaugurada uma mostra permanente da vida e da obra de Sérgio e de Nydia Licia, a grande responsável pela existência do teatro (muito merecidamente a sala maior do teatro leva o nome dessa grande atriz).

2.   A peça

       Autora, diretora e elenco bastante jovens procuram recriar   Sérgio Cardoso, pincelando fatos sobre sua vida e sua obra.

       A peça inicia com todo o elenco mostrando facetas de Sérgio. No afã de falarem seus textos os atores interrompem um ao outro. Todos querem ser Sérgio Cardoso em uma cena dinâmica e bonita.

        As cenas melhor resolvidas são aquelas em que se evita a recriação trechos de algum dos espetáculos interpretados pelo ator, como por exemplo a cena do “Ser ou não ser” de Hamlet onde o texto é projetado em um telão e um ator faz mímicas das ações do personagem. Outra cena memorável é aquela em que Madame Clessy (de “Vestido de Noiva”) dialoga com o próprio Sérgio.

        A criatividade de Rita está presente nesses dois momentos, enquanto as recriações de cenas das peças soam, para este espectador, artificiais. Não dá para não imaginar como Sérgio estaria fazendo!

        O elenco coeso desloca-se de maneira harmoniosa em cena sob a direção de movimento de Luaa Gabanini.

        No todo trata-se de espetáculo digno e bem realizado que cumpre o objetivo de mostrar para o público quem foi Sérgio. É uma bela homenagem a ele, a Nydia Licia e a Sylvia Cardoso Leão, filha do casal que conserva com muita garra e amor o acervo deixado pelos pais.

3.   Epílogo

        Com muita alegria doei para Sylvia o programa da peça “Lampião”, primeira peça produzida pela Cia. Nydia Licia – Sérgio Cardoso em 1954, que segundo ela era o único que faltava em seu acervo.

        Digno de nota também é o belo programa impresso do espetáculo. 

VIVA SÉRGIO CARDOSO!

VIVA NYDIA LICIA!
VIVA O TEATRO BRASILEIRO!
 

SEIS ATORES EM BUSCA DE SÉRGIO CARDOSO está em cartaz na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso. Sexta, sábado, domingo e segunda à 19h.

23/09/2025

 

sábado, 20 de setembro de 2025

REPARAÇÃO

 

Foto de Mara Chama

Uma menina de 16 anos é violentada por dois colegas da escola em uma cidade do interior. O fato torna-se público e as reações das pessoas em relação à menina são positivas (em geral das mulheres) ou negativas (em geral dos homens). Carlos Canhameiro abriga esse microcosmo em um salão de beleza onde o elenco representando funcionários e clientes emprestam suas vozes para falar os depoimentos recolhidos por Canhameiro na cidade onde o fato ocorreu. Uma amostra da sociedade machista brasileira.

A dramaturgia do autor é completada por cenas ficcionais onde aparecem a menina, os pais e o sujeito que a engravidou.

O caso teve consequências trágicas com o assassinato da criança pela própria mãe.

Se a dramaturgia é bastante interessante, intercalando falas reais com cenas ficcionais, a tradução cênica assinada pelo próprio dramaturgo é digna dos maiores aplausos.

Foto de Mara Chama

O cenário criado por Canhameiro e José Valdir Albuquerque reproduz em detalhes o “Suely Hair e Unha’s – UNISSEX”, salão de beleza onde são reproduzidos os depoimentos recolhidos (imagens projetadas mostram fotos e profissões de quem deu o depoimento) e na parte superior são apresentadas as cenas de ficção. Essa dinâmica cria um vínculo com o público que não é quebrado durante as quase duas horas da peça. 

Um elenco coeso se reveza com muita versatilidade nas várias personagens criadas.

Marilene Grama interpreta a menina, depois moça, com muita garra; Daniel Gonzalez mostra energia como o pai, Luiz Bertazzo vai de cliente do salão a uma vizinha fofoqueira com muito humor e Yantó e um assombro com sua bela voz pontuando as canções apresentadas.

Nilcéia Valente merece destaque com sua classe e voz límpida tanto como a mãe como cliente do salão e, por último, Fábia Mirassos, atriz cada vez mais presente em nossos palcos que vai desde a cocote Suely, dona do salão à mãe, em cenas bastante dramáticas.

Reforçando o realismo do cenário estão em cena duas profissionais da estética da beleza, uma manicure (Maria França) e uma cabelereira/maquiadora (Rosa De Carlos).

Pela originalidade e criatividade tanto na dramaturgia como na encenação, vejo “Reparação” como um marco na carreira de Carlos Canhameiro.

O espetáculo fica em cartaz no CCSP até 21/09 e desloca-se para o Teatro de Arena Eugênio Kusnet a partir de 25/09 até 12/10 de quinta a sábado às 19h e aos domingos às 18h.

Fica a curiosidade de como ele vai caber no Teatro de Arena!!

NÃO DEIXE DE VER.

20/09/2025