A denúncia sobre a
branquitude que aparece em muitos espetáculos por meios agressivos como apontar
o dedo na cara do espectador branco, surge de forma contundente, mas não
agressiva, no surpreendente espetáculo de José Fernando Peixoto de Azevedo
realizado a partir do não menos contundente conto Pai Contra Mãe escrito
por Machado de Assis (1839–1908) há mais de um século. Da minha parte, posso
garantir que a denúncia cala mais fundo e faz refletir de maneira muito mais
eficiente sobre o racismo que temos dentro de nós sem perceber.
O conto de Machado de
Assis, escrito 14 anos após a abolição da escravatura, inicia com uma descrição
dos objetos usados para castigar os escravos, para depois contar as agruras de
um casal branco e pobre, ironicamente batizados de Cândido Neves e Clara, que
culmina com ele trabalhando como caçador de escravos fugitivos, sendo que a
maior recompensa está em caçar uma “mulata” grávida que aborta diante dele ao
ser devolvida ao seu dono. Pelas dificuldades financeiras, Cândido estava
prestes a enviar o seu filho recém-nascido para adoção, mas a recompensa peça
caça à “mulata” lhe salva dessa situação. O conto termina com uma frase
terrível proferida por Cândido: “Bateu-lhe o coração. Nem todas as crianças
vingam”.
A dramaturgia de
Azevedo inclui uma espécie de prólogo sobre o medo e o terror e um epílogo para
dar fecho à história, entre eles aparece o conto na íntegra.
A encenação, também
assinada pelo dramaturgo, segue o eficiente esquema do diálogo entre o teatro e
o cinema muito utilizado por ele em outros trabalhos. Uma câmera persegue o
ator durante toda a apresentação e a imagem é projetada em três telas colocadas
ao fundo do espaço. Em certo momento a personagem sai à rua General Jardim à
caça de escravos e a câmera registra toda a ação, através da janela.
O Cândido Neves
concebido por Azevedo seria um típico exemplo de “bolsominion” pobre dos dias
atuais tanto que ele usa camisa da seleção, bermuda com estampa militar e reza
diante de um pneu!
Rodrigo Scarpelli é
um ator branco que se entrega totalmente ao seu personagem, despindo-se e
cobrindo o corpo com farinha, para se tornar ainda mais branco. Sua
interpretação tem muito do que se convencionou chamar de teatro físico e é
corajosamente visceral, chegando a incomodar, na sessão a que assisti ao
espetáculo, algumas espectadoras “mais delicadas”, apesar de ele alertar que o
espetáculo não era interativo. Quase ao mesmo tempo o ator narra (Cândido
Neves não lhe deu tempo de dizer nada) e interpreta (Eu não lhe dei
tempo de dizer nada) a ação, criando um bem sucedido efeito de
distanciamento no espectador.
O espetáculo conta
com a participação de um músico (o release aponta dois nomes: Abraão Kimberley
e Victor Mota) que executa insistentemente a canção Esse Seu Olhar (de Tom
Jobim) que adquire intenção totalmente diferente daquela romântica da letra de
Tom em sua primeira estrofe: “Esse seu olhar/Quando encontra o meu/Fala de
umas coisas/Que eu não posso acreditar”. Qual deve ter sido a troca
de olhares entre Cândido e a negra fujona?
Fredo Peixoto tem
participação importante na ação com a câmera em cena e editando as imagens. Um
jovem, não creditado no release, faz as vezes de ponto, uma vez que o monólogo
do ator é bastante longo, mas na apresentação a que assisti sua intervenção não
foi necessária.
Ensaio Sobre o Terror é um espetáculo
extremamente criativo tanto na concepção cênica como na interpretação pungente
de Rodrigo Scarpelli e muito necessário pelo tema abordado, portanto digno de
uma visita ao segundo andar da Aliança Francesa (Sala LAB).
Em cartaz até 10 de setembro. Sextas e sábados às 20h30 e domingos às 18h30.
02/09/2023
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