O que esperar de um sujeito de 28 anos, engenheiro, pós-graduado em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas e trabalhando numa multinacional holandesa, senão o retrato perfeito de um futuro “executivo burguês bem sucedido”? Não fossem as constantes escapadelas para as artes (cinema, teatro e música), a indignação com a ditadura brasileira e a Myrian Muniz, isso teria acontecido. Corria o ano de 1972 e esse jovem sentia a necessidade de algo que mudasse o rumo de sua vida: nos fins de semana dirigia um grupo de teatro na PUC e buscava algo mais. Foi então que o Sesc Consolação abriu um curso intitulado “Teatro – Comunicação e Criatividade” ministrado por Myrian Muniz e seu então marido Sylvio Zilber. Eu já havia assistido a algumas peças com Myrian (O Inspetor Geral, La Moschetta e Marta Saré, entre outras) e admirava muito aquela atriz com interpretações viscerais e dona de voz inconfundível, então resolvi me inscrever no curso. No prospecto anunciava-se que “as aulas visam exercitar o autoconhecimento físico e psíquico, o inter-relacionamento e a dinâmica do comportamento”. Enquanto Sylvio cuidava do físico por meio de aulas de ginástica e expressão corporal, Myrian cuidava de mexer com nossos corações e mentes por meio de exercícios de comunicação e criatividade e de laboratórios de sensibilidade e interpretação. Já no primeiro dia, durante a costumeira apresentação individual, Myrian solicitou que as pessoas se apresentassem cantando, a seguir propôs exercícios de toque físico, encerrando com a solicitação de que cada um indicasse três de suas qualidades e três de seus defeitos. Houve quem chorou nesse primeiro encontro e até quem desistiu do curso. Com muita sensibilidade, mas também com certa agressividade, Myrian pegava pesado, criticando individualmente posturas e ações dos integrantes.
E assim sucederam-se as aulas. Eram aulas de três horas e meia, três vezes por semana. Na primeira hora e meia havia esquentamento físico com o Sylvio e nas duas horas seguintes Myrian desenvolvia exercícios com o uso de objetos, de instrumentos musicais (principalmente castanholas), de poemas e textos teatrais. Esses exercícios eram de tal maneira viscerais que saíamos das aulas, literalmente, cambaleando. Por meio desses exercícios o grupo ficou muito unido e até íntimo, uma vez que nos desnudávamos durante a realização dos mesmos. Não foram poucos os preconceitos e os sentimentos de culpa que deixamos naquela sala do Sesc Consolação. Tudo jogado no lixo, que era o local mais apropriado para tais coisas. Nunca mais fui o mesmo após esses quatro meses.
Myrian era transgressora e corajosa. Naquele período ela foi convidada para dirigir um grupo de teatro no Clube Harmonia, ponto de encontro da alta burguesia paulistana. Escolheu um texto de Brecht para montar com o grupo (seria bem mais cômodo ter selecionado um vaudeville ou algo do gênero) e nada menos que “O Casamento do Pequeno Burguês”! Claro que foi um escândalo e ela convidou o nosso grupo para assistir ao espetáculo junto com as senhoras bem casadas do clube. Essa era a Myrian Muniz.
Nunca mais perdi o contato com ela. Em cada peça que ela atuava, eu ia até o camarim cumprimentá-la e reafirmar que ela tinha sido muito importante na minha formação humanista; ela, então, dava aquela gargalhada tão sua e me abraçava.
A última vez que a vi foi na homenagem que ela recebeu no Teatro de Arena no dia 20 de outubro de 2004. Emocionada e bastante fragilizada fisicamente, Myrian ajoelhou-se e beijou aquele chão, testemunha de grandes momentos de sua carreira. Dois meses depois Myrian partia, deixando em cada de nós um pouco de sua irreverência e coragem. Obrigado, Mestra!
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