quarta-feira, 18 de julho de 2018

REFÚGIO



        O dicionário define refúgio como o “local para onde alguém foge a fim de estar em segurança; asilo, abrigo. Apoio, amparo, proteção; socorro”. Que refúgio é esse proposto pelo dramaturgo Alexandre Dal Farra?
        Os seres retratados na peça têm um cotidiano modorrento envolvido com pequenas coisas. São pessoas conformistas, alienadas e voltadas para o próprio umbigo; suas conversas são banais e sem sentido. Vivem em uma sociedade injusta, sentem que há muita coisa errada, mas não têm coragem de tomar uma atitude para tentar mudar o status quo. De repente, quase por milagre, as pessoas começam a desaparecer e isso se torna a máxima preocupação do casal que deixou de sumir. Mais tarde elas voltam revigoradas e com mudança radical no comportamento, parecendo dispostas e com coragem para mudar as coisas, talvez até pegando em armas (a sacola do pai está cheia de armas) no melhor estilo dos rebeldes da Revolução Francesa. A peça de Dal Farra parece dar esse recado redentor e apesar de seus méritos, falha ao mostrar a transformação não como uma consciente tomada de posição, mas como o milagre citado acima.
        O texto é recheado de bons momentos com diálogos ágeis e saborosos ditos com muito brilho pelo excelente elenco. O monólogo sobre as baratas, dito com muita leveza por Carla Zanini, é antológico, assim como o diálogo das duas mulheres sobre o primeiro desaparecimento. Outra cena notável é a fala da nora para um sogro que come de maneira assustadora.
        Fabiana Gugli tem uma das melhores interpretações de sua carreira como a assustada dona de casa que vê, ao lado do marido, seu mundinho se esfacelando. Marat Descartes empresta seu habitual talento à personagem do marido. Completam o elenco André Capuano e Clayton Mariano, também ótimos.

Fabiana Gugli e Carla Zanini

        O cenário móvel de Marisa Bentivegna, também iluminado por ela, se presta muito bem às necessárias mudanças dos locais de ação da peça. A trilha sonora de Miguel Caldas enfatiza o suspense presente na trama, assim como as cenas captadas por uma câmera nas mãos de um dos atores e projetadas nas paredes, destacando os detalhes das expressões das personagens.  
        Na cena final todos estão confinados em um espaço reduzido. Vão ter forças de sair dali e ir para o refúgio e tentar mudar o mundo? Como toda a dramaturgia de Dal Farra, esta também não procura dar respostas, mas criar perguntas e reflexões na cabeça do espectador. Grande mérito do autor!
        REFÚGIO está em cartaz no Sesc Bom Retiro até 29 de julho ás sextas e aos sábados às 21h e aos domingos às 18h.

        18/07/2018
       

2 comentários:

  1. Caro José Cetra, após assistir ao espetáculo Refúgio, em consonância com sua percepção, saí sem respostas, mas com perguntas. Mais precisamente com sensações de desconforto e questionamentos que sugerem e motivam a reflexão. Tomo a liberdade de compartilhar aqui alguns pensamentos que tomaram forma após a leitura de seu texto. É realmente misterioso o desaparecimento dos personagens da cena, algo ressaltado pelo truque cênico escolhido para nos chamar a atenção a isso, uma decisão que não deve ter sido feita por acaso e, portanto, mais com a intenção de dizer ou não dizer algo, do que por não saber resolver na trama os motivos da transformação, como que atribuindo esta passagem a um milagre. Se assim o fosse, de fato, como apontado por você, seria um deslize ou falha na narrativa, algo pouco provável para mim, uma vez que, como um todo, a obra me pareceu muito bem construída e cuidadosamente pensada. Aliás, vale ressaltar que estamos de acordo que a peça suscita perguntas e cria desconfortos e, portanto, não pretende resolver algo ou dar respostas. Neste contexto, se houvesse tentativas de propor discussões no campo racional que pudessem motivar ou justificar uma transformação consciente do personagem, embora talvez nos fosse mais confortável e nos convidassem a gozar em discussões lógicas, a passagem estaria em desacordo com o restante e, aí sim me pareceria uma falha na narrativa, outrossim, não causaria desconforto e não sugeriria outras hipóteses para reflexão. Dito isso, o sumiço e retorno dos personagens, em consonância com os diálogos nonsense presentes em toda peça, sem dizer sugerem que há algo que não vemos operando não apenas nas transformações do indivíduo, mas também nas relações entre os indivíduos e, em última instância, na construção da sociedade. É desconfortável aceitar essa constatação na medida em que esse algo que não vemos torna limitada nossa capacidade de entender e explicar as coisas na forma como sabemos fazer atualmente. Afinal, não é possível entender como nos transformamos se parte desse processo ocorre fora de nossa esfera de percepção, assim como os processos que mediam as relações entre indivíduos não emanam de um contexto lógico comum, mas especifico a cada indivíduo. Conforme narrado na peça quando um personagem some, ou nas conversas nonsens, respectivamente.
    Para finalizar, acho importante mencionar que a princípio me senti reativo, estranhando o desenrolar sem lógica aparente da narrativa, as falas nonsense, o não entender o porque das imagens, da saída dos personagens de cena. No entanto, o desconforto que senti me sugeriu haver alguma empatia naquilo tudo que estava sendo apresentado. E, de fato, depois da peça parece que passei a reconhecer em meu cotidiano situações que não consigo entender e conversas também nonsense, indicando que a peça, de fato, ainda que eu não entendesse estava falando algo de mim, ou que me diz respeito. Vejo aí uma grande qualidade do texto, sem dizer o que está fazendo, descortina aspectos da realidade que antes simplesmente não enxergava, ou se os percebesse não conseguia entende-los ou explica-los a partir das ferramentas lógicas/racionais que disponho atualmente, neste contexto e tempo histórico em que vivo. Como se a forma de olhar e entender o mundo pós iluminismo, que faz uso da racionalidade e lógica propostos pela ciência e seus métodos não sejam mais suficientes para explicar as coisas (será que já foram?).
    Parece que a única sugestão dada é que estamos num momento de mudança de paradigma, talvez por isso a identificação do texto com sendo de um momento de pré-guerra. Talvez seja um prenúncio de que grandes mudanças na forma de entendermos o mundo e como construímos a sociedade estejam se avizinhando

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    1. Bela e lúcida análise Sérgio Oliveira. Obrigado por compartilhá-la aqui. Isso torna este blog mais rico e feliz por criar este diálogo. Viva!

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