Dois
espetáculos em cartaz na cidade revelam grande potência no que se refere à
defesa dos direitos humanos e em especial àqueles das mulheres e dos negros e
têm muito mais coisas em comum do que aparentam ter: ambos, sem ser panfletário,
vão direto ao ponto de maneira clara, objetiva e com muita arte, cada um à sua
maneira. Uma peça de teatro de 1967 e a vida de uma grande cantora negra combatente
pela vida são as bases para Navalha na
Carne Negra e Elza, respectivamente.
Navalha
na Carne Negra. A montagem de José Fernando Peixoto de Azevedo para o
texto de Plínio Marcos trás três negros nos papeis de Neusa Sueli, Vado e
Veludo e o detalhe que faz toda a diferença na encenação é o tratamento dado ao
personagem do cafetão Vado, sempre mostrado como o machão violento e dono da
situação em outras montagens. Aqui ele é mais um perdido naquela noite suja e
também vítima do submundo onde nasceu e cresceu; sua única linguagem é a
violência, que na verdade demonstra sua fragilidade e insegurança. O
homossexual Veludo é o mais esperto dos três e o que melhor sabe tirar proveito
da situação em que eles vivem.
É
absolutamente sensacional o desempenho de Lucelia Sergio. Suas expressões
faciais são impressionantes e muito bem visualizadas pelos closes permitidos
pela captação em vídeo. Trabalho digno de constar na lista das melhores interpretações
femininas de 2018. Raphael Garcia interpreta Veludo com muita ironia e garra e
a apatia de Rodrigo dos Santos vem de seu personagem (Vado) e não de sua
interpretação. Três trabalhos exemplares que nada ficam a dever àqueles de
Ruthinéa de Moraes, Edgar Gurgel Aranha e Paulo Villaça na antológica montagem
de 1967 dirigida por Jairo Arco e Flexa.
A
direção dos atores é valorizada pelo uso da câmera que capta detalhes das
expressões de cada um, sendo que a “camera
woman” Isabel Praxedes é quase
uma quarta personagem da peça, tanto que ela se incorpora totalmente à ação.
Azevedo usa também o recurso de repetir algumas cenas no intuito de enfatizar o
que elas têm a dizer. O dispositivo cênico também de autoria do diretor é
formado por duas telas que mostram as imagens captadas pela câmera, poucos
adereços e uma cama bonita demais para o hotel de quinta categoria onde se
passa a ação.
Elza
a princípio parece ser mais um musical biográfico como tantos que grassam em
nossos palcos, a maioria proveniente do Rio de Janeiro, mas é muito mais. A
partir do texto escrito por Vinicius Calderoni e de um roteiro de canções
perfeito (a ficha técnica não especifica a autoria desse roteiro) que comenta e
costura a ação, Duda Maia cria um musical só com mulheres (sete atrizes e seis musicistas)
pautado em movimentação cênica vibrante das atrizes (marca registrada de Duda,
haja vista seu trabalho em Auê), uso
de adereços baratos e criativos (baldes e alguns carrinhos), cenário de André
Cortez e excelente direção musical comandada por Pedro Luís. O texto mostra as
agruras vividas por Elza Soares e sua luta constante para enfrentar os limões
que a vida lhe deu, sempre os transformando com muita garra em uma limonada.
Peço perdão pela frase clichê, mas é a que mais se adequa a essa grande mulher.
São sete atrizes/cantoras interpretando Elza e as pessoas que passaram pela sua
trajetória, todas elas excelentes tanto nas falas como no canto. Vozes amplas e
sonoras que ecoam esplendorosamente no grande auditório do Teatro Paulo Autran
do SESC Pinheiros. Larissa Luz é o destaque natural por incorporar a personagem
de maneira impressionante, mas seria injusto não mencionar o belíssimo trabalho
das outras seis intérpretes e das musicistas.
A
reação do público é emocionante com aplausos de pé em vários momentos do
espetáculo.
As
duas peças, como se vê, têm muito em comum no conteúdo, apesar de diferirem totalmente
na forma e no desfecho. Enquanto Navalha
na Carne é bastante pessimista concluindo que aquela vida não passa de “um monte de bosta fedida”, Elza, por outro lado, mostra que apesar
de todos os tombos sofridos, a protagonista (e a mulher na vida real) sempre “levanta, sacode a poeira e dá a volta por
cima”. Dois grandes espetáculos para pensar o tempo presente.
NAVALHA
NA CARNE NEGRA – Cartaz do Centro Cultural São Paulo às sextas e aos sábados
(21h) e aos domingos (20h). Até 11/11.
ELZA
– Cartaz do SESC Pinheiros de quinta a sábado (21h) e domingo (18h). Até 18/11.
27/10/2018
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