segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A HORA DO LOBO – UM DEBATE COM O FILME DOGVILLE DE LARS VON TRIER

 

        Descrever o espetáculo é difícil e explicá-lo tecnologicamente é impossível para um leigo como eu.

        O novo trabalho de Christiane Jatahy aprofunda o diálogo do cinema com o teatro, forma de trabalho que a encenadora utiliza há muito tempo e aprimora a cada montagem.

        Jatahy não torna fácil a vida do espectador obrigando-o a distinguir se o que se vê no telão é cena previamente filmada ou cena que está sendo captada na hora ou ainda se é uma junção das duas, feito isso o espectador tem de optar por dirigir o seu olhar para o que está sendo exibido no telão ou para a cena que está acontecendo no palco. Finalmente, para a maioria do público, que não domina o francês, resta a tarefa de ler as legendas em português. Uma vez transpostas essas dificuldades, resta ao espectador apreciar uma das obras mais instigantes surgidas em nossos palcos nos últimos tempos.

        Menos fácil ainda é a vida do elenco que tem de manipular objetos, móveis e câmera, além de atuar, tudo em sincronia com a ação que se desenvolve no telão. Aqui, tudo funciona à perfeição e é fundamental a direção de fotografia e montagem ao vivo realizada por Paulo Camacho.

        Se há essa complexidade na forma, o conteúdo da encenação de Jatahy é bastante claro ao denunciar toda espécie de formas de regimes e ambientes de extrema direita por meio de uma releitura do enredo do filme Dogville de Lars Von Trier. Neste caso, Graça é uma brasileira que opta por sair do Brasil depois do resultado das eleições de 2018 e vai tentar viver na Dogville da peça, sofrendo todas as pressões e humilhações que as atitudes fascistas lhe reservam.

        A personagem procura por um final diferente e mais otimista daquele do filme (“Não há, senhoras e senhores, um fim melhor pra nossa história? Tem de haver um que é bom. Tem de haver” já dizia Bertolt Brecht ao final de A Alma Boa de Set Suan), mas a intolerância mais uma vez sairá vencedora.

        O elenco da peça conta com excelentes atrizes e atores franceses e suíços, mas o destaque fica com a excelente Julia Bernat, que atua nas peças de Christiane Jatahy há muitos anos. Ela interpreta Graça, a protagonista, inspirada em Grace, a personagem de Nicole Kidman no filme de Trier.



Julia Bernat e Christiane Jatahy

        A extensa ficha técnica mostra os cuidados da produção com a música, a cenografia e os figurinos.

        A Hora do Lobo é a primeira peça da Trilogia do Horror montada por Christiane Jatahy. Resta a esperança de que possamos assistir às outras duas peças da trilogia o mais breve possível.

        A HORA DO LOBO está em cartaz no Teatro Anchieta apenas até 15 de outubro com sessões de quarta a sábado às 20h e aos domingos às 18h.

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23/09/2023

       

 

domingo, 24 de setembro de 2023

CADÊ O SOBREVENTO?

 

        Há anos o Grupo Sobrevento vem nos deliciando com seu teatro de animação (de bonecos e/ou de objetos). Cada nova montagem é uma surpresa que enche os olhos, o coração e a mente do espectador.

        A grande sacada do Sobrevento é que seus espetáculos para bebês e infantis agradam também os adultos e os mais que adultos, velhinhos como eu!

        Quanto aos espetáculos para adultos como Noite, Escombros e Pérsia, a beleza da montagem está sempre firmemente associada a reflexões sobre a nossa realidade e a condição humana.

        Nos seus 37 anos de existência o Sobrevento coleciona prêmios e espetáculos bem sucedidos e não é diferente com este Cadê o Sobrevento? recém estreado no SESC Pompeia.

        A trama, bem costurada pelo dramaturgo argentino Horácio Tignanelli, envolve o sumiço dos integrantes do grupo enquanto conta a história da menina Rosita, presa em um castelo pela mãe que teme o mundo lá fora.

        Os bonecos, fantasticamente manipulados por Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Agnaldo Souza e Maurício Santana, contam a história lutando karatê, tomando chá, tocando guitarra, dançando, caindo, levantando, rodopiando no ar e tudo mais que se possa imaginar.

        O surpreendente final, quando o segredo do desaparecimento do grupo é revelado, ficará conhecido apenas por aqueles que forem assistir à peça, porque não vou ser eu o desmancha prazer de revelá-lo aqui.

        O espetáculo é belo e muito cuidado nos mínimos detalhes como a cenografia de Telumi Hellen, a iluminação de Renato Machado, os figurinos (lindos!) de João Pimenta e a fantástica trilha de Arrigo Barnabé que comenta toda a ação da peça.

        Uma dica: tente sentar o mais próximo possível do palco para apreciar os detalhes de cada boneco com seus movimentos e ações.

        Ao final os atores explicam como funciona a manipulação e deixam as crianças “vestirem” os bonecos.

        Tudo muito lindo e mágico.

        Crianças e adultos abandonam o teatro alegres e com as almas alimentadas.

CADÊ O SOBREVENTO? Está em cartaz no teatro do SESC Pompeia só até 01 de outubro, mas seguirá em cartaz na segunda semana de outubro no SESC Belenzinho e posteriormente se apresentará em sua sede na Rua Coronel Albino Bairão, 42 no Brás.

Fotos de Marco Aurélio Olímpio

        VÁ E LEVE A CRIANÇA QUE MORA EM VOCÊ!!

 

        24/09/2023

       

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

QUANDO O DISCURSO AUTORIZA A BARBÁRIE

 

Como são frágeis as democracias latino-americanas!

Na manhã deste domingo eu relembrava muito triste o 11 de setembro de 50 anos atrás, quando um sangrento golpe militar derrubou o governo de Salvador Allende no Chile. Naquela época, a maior parte dos países latino americanos vivia debaixo de ditaduras e o governo de Allende representava uma luz de esperança para todos nós que vivíamos abaixo do equador. Mais triste fiquei ao ler uma reportagem mostrando o crescimento de grupos de ultra direita no Chile que reivindicam a volta de um governo conservador e totalitário e relembrar que também nós no Brasil, após ter sofrido com a ditadura civil-militar tivemos que engolir por quatro anos aquele ser ignóbil que foi eleito pelo povo!!

Foi movido a esse sentimento que me dirigi mais tarde ao SESC Belenzinho para assistir ao novo espetáculo da Companhia De Teatro Heliópolis e a emoção reprimida transbordou em lágrimas durante e após o espetáculo.

Desde Sutil Violento, a performatividade era uma tendência crescente nos trabalhos da companhia e desta vez o encenador Miguel Rocha radicalizou, criando um espetáculo quase sem palavras; elas aparecem aqui e acolá em falas gravadas e nas letras das canções entoadas, permeando as cenas onde os corpos mudos dizem mais do que elas; credite-se isso à excelente direção de movimento de Érika Moura.

Uma potente trilha sonora de Peri Pane e Otávio Ortega mescla trechos gravados com música ao vivo executada por Alisson Amador e Jennifer Cardoso, além de canções interpretadas em coro pelo elenco.

O chão que serve de túmulo também é aquele que fará crescer a vida e as plantas, essa é a primeira mensagem poderosa do espetáculo que inicia com um canto afro interpretado por Dalma Régia. Louve-se a cenografia de Eliseu Weidl, banhada lindamente pelas luzes de Guilherme Bonfanti. Completa a beleza visual da montagem os vídeos cuja edição é assinada por Gabriel Faustino.

Como se pode notar, Miguel Rocha mais uma vez harmoniza forma e conteúdo de maneira exemplar.

O espetáculo faz um dolorido passeio pela violência que sempre esteve presente na história desta terra desde quando os portugueses por aqui chegaram e a batizaram de Brasil culminando com a pandemia da Covid 19 que impulsionada pela negligência do governo do ignóbil vitimou mais de 600.000 pessoas.

Haja coração para suportar as cenas da violência com os escravos, das torturas sofridas pelos opositores do regime militar e da descrição de como eram algumas das vítimas da Covid 19, cena esta que encerra o espetáculo de maneira comovente.

O excelente elenco formado por Dalma Régia (poderosa como sempre!), Davi Guimarães, Walmir Bess, Fernanda Faran, Alex Mendes e Anderson Sales se incumbe das várias figuras que surgem durante o espetáculo. Por questões burocráticas, a menina Isabelle Rocha (filha de Dalma e de Miguel) não faz parte do espetáculo durante a temporada no SESC Belenzinho, mas fará quando o mesmo se transferir para a sede do grupo na Casa Mariajosé de Carvalho no mês de outubro.

Com o coração apertado e lágrimas nos olhos dei um abraço no Miguel Rocha ao final da peça, enfatizando que para mim este é seu melhor trabalho. 

QUANDO O DISCURSO AUTORIZA A BARBÁRIE está em cartaz no SESC Belenzinho até 01/10 às sextas e sábados às 20h e aos domingos às 17h

ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO e IMPERDÍVEL.

LEMBRAR É RESISTIR! 

10/09/2023

terça-feira, 5 de setembro de 2023

CREDORES

 

Foto de Ronaldo Gutierrez

Há clássicos e clássicos!!

Textos clássicos com encenações mornas.

Textos datados com encenações que os revitalizam e que se tornam clássicas por sua vitalidade e sua criatividade.

Texto clássico (de 1887) com encenação (de 2011) que já se tornou clássica, tanto que cada vez que volta à cena surpreende como se acabasse de ser concebida. Obviamente estou me referindo a Credores de August Strindberg (1849-1912), do Grupo TAPA, dirigida por Eduardo Tolentino de Araújo.

As encenações de Tolentino primam pelo seu acabamento tanto na parte técnica (cenografia, iluminação, figurinos) como na escolha e na direção do elenco. Tudo beira à perfeição do melhor teatro.

Nas apresentações no Galpão do Grupo TAPA, Tolentino faz uma bem-vinda e breve palestra sobre o autor e sua obra, introduzindo o espectador ao espetáculo que irá assistir.

Dois homens e uma mulher discutem relações conjugais de maneira às vezes irônica e outras vezes virulenta. Há muito rancor reprimido que vem à tona durante o desenrolar da ação.

Um elenco de ouro se encarrega com muita garra das personagens do marido Adolfo (Bruno Barchesi), da mulher Tekla (Sandra Corveloni) e do visitante Gustavo que vai desencadear toda a trama (André Garolli). Uma testemunha muda observa toda a ação (Felipe Souza) e só se pronuncia ao final com uma frase, algo como, “Os seres humanos são uma lástima”, que lembra a célebre frase de Shakespeare em Sonho de Uma Noite de Verão: “Como são tolos esses mortais”.

A julgar pelo que se assiste, Strindberg, Shakespeare e Tolentino estão cobertos de razão! 

CREDORES está em cartaz apenas às segundas feiras às 20h, até 25 de setembro.

ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!

05/09/2023

 

sábado, 2 de setembro de 2023

ENSAIO SOBRE O TERROR

 

Foto de Pedro Martins

A denúncia sobre a branquitude que aparece em muitos espetáculos por meios agressivos como apontar o dedo na cara do espectador branco, surge de forma contundente, mas não agressiva, no surpreendente espetáculo de José Fernando Peixoto de Azevedo realizado a partir do não menos contundente conto Pai Contra Mãe escrito por Machado de Assis (1839–1908) há mais de um século. Da minha parte, posso garantir que a denúncia cala mais fundo e faz refletir de maneira muito mais eficiente sobre o racismo que temos dentro de nós sem perceber.

O conto de Machado de Assis, escrito 14 anos após a abolição da escravatura, inicia com uma descrição dos objetos usados para castigar os escravos, para depois contar as agruras de um casal branco e pobre, ironicamente batizados de Cândido Neves e Clara, que culmina com ele trabalhando como caçador de escravos fugitivos, sendo que a maior recompensa está em caçar uma “mulata” grávida que aborta diante dele ao ser devolvida ao seu dono. Pelas dificuldades financeiras, Cândido estava prestes a enviar o seu filho recém-nascido para adoção, mas a recompensa peça caça à “mulata” lhe salva dessa situação. O conto termina com uma frase terrível proferida por Cândido: “Bateu-lhe o coração. Nem todas as crianças vingam”.

A dramaturgia de Azevedo inclui uma espécie de prólogo sobre o medo e o terror e um epílogo para dar fecho à história, entre eles aparece o conto na íntegra.

A encenação, também assinada pelo dramaturgo, segue o eficiente esquema do diálogo entre o teatro e o cinema muito utilizado por ele em outros trabalhos. Uma câmera persegue o ator durante toda a apresentação e a imagem é projetada em três telas colocadas ao fundo do espaço. Em certo momento a personagem sai à rua General Jardim à caça de escravos e a câmera registra toda a ação, através da janela.

O Cândido Neves concebido por Azevedo seria um típico exemplo de “bolsominion” pobre dos dias atuais tanto que ele usa camisa da seleção, bermuda com estampa militar e reza diante de um pneu!

Rodrigo Scarpelli é um ator branco que se entrega totalmente ao seu personagem, despindo-se e cobrindo o corpo com farinha, para se tornar ainda mais branco. Sua interpretação tem muito do que se convencionou chamar de teatro físico e é corajosamente visceral, chegando a incomodar, na sessão a que assisti ao espetáculo, algumas espectadoras “mais delicadas”, apesar de ele alertar que o espetáculo não era interativo. Quase ao mesmo tempo o ator narra (Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada) e interpreta (Eu não lhe dei tempo de dizer nada) a ação, criando um bem sucedido efeito de distanciamento no espectador.

Foto de Pedro Martins

O espetáculo conta com a participação de um músico (o release aponta dois nomes: Abraão Kimberley e Victor Mota) que executa insistentemente a canção Esse Seu Olhar (de Tom Jobim) que adquire intenção totalmente diferente daquela romântica da letra de Tom em sua primeira estrofe: “Esse seu olhar/Quando encontra o meu/Fala de umas coisas/Que eu não posso acreditar”. Qual deve ter sido a troca de olhares entre Cândido e a negra fujona?

Fredo Peixoto tem participação importante na ação com a câmera em cena e editando as imagens. Um jovem, não creditado no release, faz as vezes de ponto, uma vez que o monólogo do ator é bastante longo, mas na apresentação a que assisti sua intervenção não foi necessária.

Ensaio Sobre o Terror é um espetáculo extremamente criativo tanto na concepção cênica como na interpretação pungente de Rodrigo Scarpelli e muito necessário pelo tema abordado, portanto digno de uma visita ao segundo andar da Aliança Francesa (Sala LAB).

Em cartaz até 10 de setembro. Sextas e sábados às 20h30 e domingos às 18h30. 

02/09/2023