quinta-feira, 27 de junho de 2024

ORFÃOS

 

O Rio de Janeiro está dando um banho de teatro nos palcos paulistanos. Nos primeiros meses do ano fomos agraciados com os excelentes Enquanto Você Voava Eu Criava Raízes e Alguma Coisa Podre que vieram da temporada de 2023; seguiram-se Todas as Coisas Maravilhosas e Let’s Play That e neste final de junho foi a vez de Julius Caesar, A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe e Orfãos.

A montagem de Orfãos parte do texto do dramaturgo norte americano Lyle Kessler que mostra a vida solitária dos irmãos Treat e Phillip. 

Treat, o mais velho, perambula pelas ruas roubando para garantir a sobrevivência dele e do irmão menor. Tem personalidade violenta.

Phillip vive recluso por ordens do irmão, acreditando que tem uma doença que o impede de se aventurar nas ruas. Tem um mundo todo seu baseado em heróis das histórias que lê, escondido de Treat, que acredita que ele é analfabeto. É um jovem tímido e inseguro.

Convivendo nessa relação tóxica os irmãos têm carência de afeto de um pai desconhecido e de uma mãe que morreu muito jovem.

É nesse cenário que surge na vida deles um elegante senhor de nome Harold, pessoa de origem escusa, mas que se afeiçoa a eles, procurando ajuda-los tanto no aspecto comportamental como no financeiro. Enquanto Phillip desenvolve-se com os ensinamentos de Harold, o irascível Treat o trata com desprezo, até um desfecho trágico.

Essa simples história é contada de forma surpreendente pelo autor com diálogos ágeis e um conflito há cada dez minutos.

O diretor Fernando Philbert aproveita o ambiente caótico presente no texto para situar a cena em aposento de moradia muito sujo e desorganizado pelo qual Phillip circula para preencher o vazio de sua existência. A medida que a influência de Harold vai aumentando, a casa e os figurinos vão se tornando mais civilizados; solução engenhosa para a qual contribuem Natália Lana (cenário), Vilmar Olos (iluminação) e Rocio Moure (figurinos). A destacar também a trilha sonora criada por Marcelo Alonso Neves e a dinâmica direção de movimento assinada por Toni Rodrigues que atinge seu auge com o verdadeiro balé realizado por Phillip quando circula pela casa nas primeiras cenas da peça, cena que demonstra também o preparo físico do ator Lucas Drummond.

Toda essa parte criativa seria insuficiente se não houvesse elenco de peso para vestir as personagens de Treat, Harold e Phillip.

O grandalhão Treat encontra em Rafael Queiroz o intérprete ideal, seja pelo physique du rôle, seja pela garra com que realiza as cenas dos surtos de violência da personagem.

Em uma bem-vinda volta aos palcos paulistanos, Ernani Moraes interpreta um elegante e comedido senhor Harold com fala mansa e gestos equilibrados, algo bastante diverso das personagens que ele costuma fazer. Belíssimo trabalho.

Finalmente cabe destacar e louvar a surpreendente e emocionante performance de Lucas Drummond. A fragilidade e o espanto de Phillip diante de qualquer novidade são tão presentificadas por Lucas que a vontade do espectador é antecipar aquele afetuoso abraço que Harold lhe oferece na segunda parte da peça. Estamos presentes diante de um jovem grande ator que merece toda a atenção para seu futuro profissional. Além de excelente ator, Lucas é o realizador (foi ele que descobriu o texto em Nova York) e coordenador desse importante projeto.

ORfÃOS está em cartaz no Teatro FAAP apenas às quartas e quintas feiras às 20h até 01 de agosto.

Não perca a oportunidade de assistir a uma consistente história, muito bem dirigida e com excelentes atores. Dá para exigir mais de um espetáculo de teatro?

 

27/06/2024

 

domingo, 23 de junho de 2024

A MENINA ESCORRENDO DOS OLHOS DA MÃE

 

Esse título comercialmente atrativo, mas estranho, remete talvez ao ato do parto quando a criança escorre para o  mundo através do ventre da mãe. Na verdade, o que importa nessa emocionante peça é a relação que escorre entre mães e filhas.

O primeiro grande mérito da dramaturga Daniela Pereira de Carvalho é inserir na ação principal (relação entre mães e filhas) assuntos importantes como a homofobia, o processo de adoção, o aborto e a posição da mulher na sociedade patriarcal. Convenhamos que não é pouco.

O outro grande mérito é a forma que ela encontrou de contar a história. Em recurso dramatúrgico criativo, Daniela situa as ações em dois tempos distintos.

No primeiro, Elisa, uma mãe de 70 anos (Guida Vianna) reúne-se com sua filha Antonia de 50 anos (Silvia Buarque) para tentar quebrar o gelo presente na relação entre elas. A filha, após um longo silêncio resolve contar que teve uma filha há 30 anos que deu para adoção, fato que provoca uma reação violenta da mãe.

O segundo tempo se passa 20 anos depois, Antonia agora com 70 anos (Guida Vianna) vai ao sul conhecer Helena, a filha que entregou para adoção (Silvia Buarque) e esta rejeita uma maior aproximação entre elas.

Essa troca de papeis entre as atrizes e as interpretações das mesmas cria um benéfico distanciamento que evita que o drama apresentado se transforme em um melodrama, mas ao mesmo tempo faz com que a emoção floresça no público.

Guida Vianna, grande atriz brasileira, infelizmente pouco presente nos palcos paulistanos, nos brinda com duas interpretações estupendas: extrovertida e pró ativa como a mãe Elisa e contida e calma como a filha Antonia.

Silvia Buarque tem talento à altura de sua companheira de cena vivendo a contida Antonia na primeira parte e a descontraída Helena na segunda.


Não se trata de um duelo de talentos, mas sim de um jogo cênico onde uma atriz complementa a outra nos diálogos ágeis de Daniela Pereira de Carvalho. Um verdadeiro privilégio para quem tem oportunidade de testemunhar esses momentos do mais puro teatro.

A direção de Leonardo Netto é focada no trabalho dessas grandes atrizes auxiliado pelo sugestivo cenário de Ronald Teixeira formado por um vasto espelho ao fundo, cadeiras e muita folha seca no chão. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros direciona o foco nos monólogos das personagens.

Talvez seja cedo para afirmar, mas arrisco dizer que estamos diante do melhor espetáculo do ano.

        Vai ser difícil suplantar a qualidade da perspicaz dramaturgia de Daniela Pereira de Carvalho, da excelente tradução cênica de Leonardo Netto que nunca resvala para o melodramático e da presença luminosa em estado de graça de Guida Vianna e Silvia Buarque.

        A MENINA ESCORRENDO DOS OLHOS DA MÃE está em cartaz no SESC Pinheiros SOMENTE até 27 de julho com apenas três sessões por semana (quinta a sábado às 20h).

        VOCÊ VAI PERDER ESSE MOMENTO MÁGICO DE PURO TEATRO?

        23/06/2024

 

 

 

 

sábado, 22 de junho de 2024

JULIO CESAR – VIDAS PARALELAS

 

 

Devido à longa viagem que fiz em fevereiro/março seguida do período afastado das atividades teatrais por problemas de saúde (abril e parte de maio) não tenho acompanhado a temporada teatral paulistana com a mesma frequência dos anos anteriores (cerca de cem espetáculos por semestre).

Mesmo assim, neste primeiro semestre, consegui assistir a 49 montagens, 25 antes da queda e posteriormente mais 24, agora tendo como companheira uma cadeira de rodas ou uma bengala.

Um fato curioso é que sete desses 49 títulos têm a ver com Shakespeare, quer sejam peças de sua autoria (Primeiro Hamlet), ou dramaturgias inspiradas em seus textos (Delírio Macbeth, Leão Rosário, Julius Caesar), ou contém cenas de suas peças (Amantes do Teatro) ou ainda onde o bardo é personagem (o excelente Alguma Coisa Podre),  ou até uma brincadeira (Um Porre de Shakespeare).

A Companhia dos Atores que realizou o não menos que brilhante Ensaio.Hamlet há cerca de 20 anos volta a visitar a obra shakespeariana situando a ação em ensaios da peça Júlio Cesar por uma longeva companhia de teatro (qualquer semelhança com o fato da Companhia dos Atores ter 35 anos não é mera coincidência).

Jogo de poder na Roma antiga não difere muito daquele presente numa companhia de teatro e não há muita diferença nas intenções de Brutus, Cassio e Marco Polo (personagens da peça) com aquelas de Júlio, Ricardo e Eduardo (atores no ensaio).

Com um jogo teatral muito bem apoiado na dramaturgia de Gustavo Gasparani o espetáculo circula harmoniosamente entre os conflitos dos atores nos ensaios (todos querem os melhores papeis) e as conspirações no império romano (a ganância do poder).

Apesar de a peça levar o nome de Júlio Cesar, o personagem de maior destaque é Brutus que é um dos primeiros a aparecer em cena e o último a morrer. Cesar pouco aparece e morre no início do terceiro ato (a peça tem cinco). Por conta disso os atores disputam (nem sempre eticamente) o papel de Brutus.

Quem dirige a peça é Catarina, autoritária e arrogante, é ela que a cada ensaio distribui os papeis provocando controversos sentimentos entre os atores. Em certo momento ela assume o papel de Júlio Cesar sob o olhar indignado do elenco que vai preparar um golpe para sua queda.

Não é à toa que a peça tem o sub título de Vidas Paralelas. Os séculos caminham, mas a humanidade continua rastejando.

Para representar as vidas paralelas (império romano/ensaio nos dias atuais) conta-se com os veteranos do grupo Cesar Augusto (Brutus/Júlio), Gustavo Gasparani (Cassio/Ricardo) e a presença luminosa de Isio Ghelman surpreendente como Marco Antonio/|Eduardo. Suzana Nascimento (Julio Cesar/Catarina) se sai melhor nas cenas de impacto e alta dramaticidade do que quando se comunica com a plateia forçando uma interatividade absolutamente desnecessária. Completam o elenco os jovens Gabriel Manita e Tiago Herz.

Gustavo Gasparani dirigiu o espetáculo com sobriedade, deixando os atores (inclusive ele) numa aparente informalidade de ensaio, mas pontuando claramente as diferenças entre interpretar ator no ensaio e interpretar personagem da peça Júlio Cesar.

O cenário propositalmente despojado é de Bell Araujo com iluminação de Ana Luzia De Simoni e os significativos figurinos levam a assinatura de Marcelo Olinto, outro veterano da Companhia.

 

JULIUS CAESAR – VIDAS PARALELAS está em cartaz no Teatro Anchieta (SESC Consolação) até 14/07 de quinta a sábado às 20h e domingos às 18h

 

23/06/2024

 

 

 

 

 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

COPO VAZIO

 

 

A caminho do SESC Belenzinho numa gentil carona oferecida pela Marcia Marques comentei que a julgar pelos últimos espetáculos a que assisti estava achando a temporada morna; não propriamente ruim; mas morna, fato que me desenergizava e tirava a vontade de ir ao teatro. O copo estava vazio e eu gostaria de enchê-lo rapidamente.

E foi o COPO VAZIO que aqueceu para mim a temporada morna.

Duas qualidades afloraram já nos primeiros minutos do espetáculo, que é livremente inspirado no livro de Natalia Timerman:

- O belo resultado estético em cena da diferença de altura entre o muito alto Vinicius Neri e a pequenina Carolina Haddad. A primeira cena dele a entrelaçando por trás, sob uma luz lilás, sintetiza tudo o que virá depois.

- Ao introduzir o ator e a atriz em cena, narrando os fatos ocorridos entre as personagens Mirela e Pedro, a adaptadora Angela Ribeiro resolveu o difícil problema que é transpor narrativa de romance para linguagem teatral. Há momentos saborosos de metalinguagem no espetáculo, quando os intérpretes (ator e atriz) questionam as atitudes das personagens (Pedro e Mirela).

Como já ocorreu em outros trabalhos (“Ato a Quatro”/2015, “Chernobyl”/2019 e “O Beijo no Asfalto”/2019) a direção de Bruno Perilo é delicada e elegante, qualidades estas que caracterizam o seu estilo de trabalho. Mesmo ao tratar de um assunto espinhoso que é a desilusão/depressão/revolta de Mirela com o desaparecimento abrupto de Pedro, Bruno o faz com delicadeza e sem nenhum arroubo melodramático, para isso conta com a excelente interpretação de Carolina Haddad. Outra demonstração dessa elegância está na forma bonita e poética como o encenador apresenta a cena de relação sexual entre os personagens.

Os cuidados da produção podem ser observados pelos profissionais nela envolvidos: Chris Aizner assina o cenário minimalista; a direção de movimento do elenco de Marina Caron preenche harmoniosamente o grande espaço da sala multiuso do SESC Belenzinho; Gabriele Souza (filha do querido Jorge do antigo Viga) é responsável pela colorida iluminação; canções conhecidas que ilustram as ações fazem parte da trilha sonora criada por Pedro Seneghini e as imagens projetadas são mais um admirável trabalho dos Cafofos (André Grynwask e Pri Argoud).

Carolina Haddad realiza um belo trabalho como Mirela, sempre à beira de um ataque de nervos e Vinicius Neri mostra firmeza como Pedro, apesar de ser um ator bastante jovem.

As qualidades do belo livro de Natalia Timerman estão muito bem representadas no espetáculo de Bruno Perillo.

AUTORA/DIRETOR/ADAPTADORA

A ALMA SE FORTALECE QUANDO ASSISTIMOS A UM BOM ESPETÀCULO.

Em tempo: Tive o prazer de sentar ao lado de Natalia Timerman, autora do livro que inspirou a peça e também de “As Pequenas Chances”, pungente relato sobre os últimos dias e morte de seu pai.

COPO VAZIO está em cartaz no SESC Belenzinho até 23/06 com sessões às sextas e aos sábados às 21h30 e aos domingos às 18h30,

NÃO DEIXE DE VER

 

10/06/2024

 

 

 

 

segunda-feira, 3 de junho de 2024

TIO VÂNIA

 

 

Um brinde de champanhe a Anton Tchekhov de quem falamos MUITO bem, mais de cem anos depois de sua morte e com certeza se continuará falando daqui a outros cem anos. Ele abriu caminhos e o teatro seguiu.

Uma pessoa desavisada que vá assistir a uma peça que trata da posição da mulher na sociedade, da questão ambiental, das diferenças entre o rural e o urbano e da eterna questão das relações humanas ficará surpresa ao saber que esse texto foi escrito há cento e vinte quatro anos. Tio Vânia, assim como os outros textos de Tchekhov, é um clássico e como tal deve ser tratado.

Eduardo Tolentino de Araújo é profissional talhado para encenar Tchekhov; já o fez com Ivanov (1998), O Jardim das Cerejeiras (2019) e as curtas O Urso e O Pedido de Casamento (virtualmente em 2021) e agora nos presenteia com essa pérola que é a montagem de Tio Vãnia.

Um Tchekhov perfeito no ritmo suave e lento requerido pelos personagens da trama que precisam de  silêncio entre uma frase e outra. O tom ocre presente no cenário e nos figurinos é belamente banhado pela iluminação de Wagner Pinto.



O elenco impecável atua dentro do clima tchekhoviano desde a linda abertura com as falas da criada Babá até o monólogo final de Sonia, um dos mais belos de toda literatura teatral.

Camila Czerkes desfila Helena pelo cenário com classe e talento, Tato Fischer empresta leveza e humor para Bexiga.

Os pequenos papeis carinhosamente reservados para as grandes atrizes Walderez de Barros (Babá) e Lilian Blanc (Maria) são um verdadeiro presente tanto para o restante do elenco como para o público.

Bruno Barchesi tem um de seus melhores desempenhos desde que está no TAPA, ampliando a importância do personagem do médico Astrov que é um grande defensor do meio ambiente.

Zecarlos Machado é um bravíssimo ator, porém, a meu ver, sua composição de Serebriakov é muito gritada, destoando daquelas do restante do elenco.

Acredito que quando imaginou a figura de Tio Vânia há 124 anos, Tchekhov deve ter se inspirado em um ator ainda não nascido de nome Brian Penido Ross. Revoltado, mas ao mesmo tempo acomodado e muito sofrido, Brian oferece ao público todas as nuances desse icônico personagem do dramaturgo russo.

Sonia tem todas as características do lado melancólico e introspectivo do universo de Tchekhov. É personagem que oferece grande chance interpretativa para uma atriz e Anna Cecília Junqueira agarrou a oportunidade com força: pequenina no tamanho, mas imensa no talento, interpreta Sonia indo das tímidas falas no início da peça até a grande emoção do monólogo final.

O Tio Vânia de Tolentino é um Tchekhov perfeito e maduro merecendo todas as honrarias reservadas ao teatro paulistano.

Infelizmente boa parte do público presente na sessão de sexta feira (31/05) às 15h no SESC Santana não compreendeu a sutileza do espetáculo, conversando durante o mesmo, ligando e atendendo o famigerado celular. Por que essa gente não fica em caso vendo BBB e deixa os interessados curtirem obra tão significativa e bela?

 

TIO VÂNIA está em cartaz no SESC Santana até 16/06 de quinta a sábado às 20h e domingos às 18h.

ESPETÁCULO DE ALTO VALOR ARTÍSTICO QUE PRECISA SER PRESTIGIADO!

 

03/06/2024