Se nos piscarem, não
sangramos?
Se nos fizerem cócegas,
não rimos?
Se nos envenenarem,
não morremos?
Se nos ultrajarem, não nos vingamos?
O discurso/desabafo do judeu Shylock
pouco antes do final da peça, talvez seja o cerne de “O Mercador de Veneza”,
essa potente obra de Shakespeare (1564-1616), ora revisitada e discretamente
atualizada pelos olhos atentos de Bruno Cavalcanti, tradutor e adaptador do
original.
Ali fica claro que a obra não é
antissemita como muitos chegaram a declarar, pelo contrário, é um libelo contra
o preconceito, no caso contra os judeus, mas poderia ser contra os negros, os
homossexuais ou qualquer outro grupo que não se encaixe nos padrões da “dita”
civilização branca. Está aí a grandeza
da obra de Shakespeare, que continua a dizer coisas e cutucando depois de mais
de quatro séculos. Talvez por ter um final feliz, até um pouco forçado e
artificial, a obra, escrita entre 1596 e 1597, é classificada como comédia, mas
encerra temas bastante dramáticos que afetam a humanidade como vingança, guerra,
oportunismo, ganância e o já citado preconceito.
A encenação de Daniela Stirbulov é
límpida e muito fiel ao texto, utilizando o espaço do Tucarena como poucos
espetáculos ali realizados conseguiram fazê-lo, valendo-se do prático cenário
criado por Carmem Guerra, do excelente desenho de luz de Wagner Pinto e Gabriel
Greghi e da dinâmica direção de movimento de Marisol Marcondes que não deixa o
elenco ficar de costas por muito tempo para nenhum lado da plateia.
O elenco coeso e talentoso completa
esse excelente espetáculo: Gabriela Westphal brilha tanto como Pórcia como a
mesma travestida do juiz que muda o rumo do julgamento; Cesar Baccan interpreta
o mercador Antônio, antissemita predador; Marcelo Ullmann é Bassânio,
oportunista e ganancioso é amigo e algo mais de Antônio; Amaurih Oliveira tem
garra e graça tanto como o Príncipe de Marrocos como Lorenzo; Rebeca Oliveira
tem a brejeirice de Nerissa; Marisol Marcondes interpreta Jéssica, a filha de
Shylock; Marcelo Diaz marca presença cômica como o empregado Lancelotte, assim
como Thiago Sak como Príncipe de Aragão; Renato Caldas dá dignidade à
personagem de Solânio, amigo de Antônio; palmas para Augusto Pompeo e Junior
Cabral que emprestam suas potentes vozes para , respectivamente, o Duque e
Graciano
E um parágrafo especial sobre Dan
Stulbach: por meio de poucas falas com sotaque levemente carregado, muitos
silêncios e gestual contido onde mãos e dedos têm grande destaque ele constrói
a personagem de Shylock de maneira primorosa com muita verdade e humanidade.
Mais um dos grandes trabalhos de ator desta rica temporada de 2025.
A ficha técnica revela o cuidado da
produção na escolha dos profissionais que integram a montagem, cabendo destacar
o nome do especialista shakespeariano Ricardo Cardoso, como consultor sobre a
vida e a obra do bardo.
O programa impresso da peça, além de
muito bonito, contém importantes textos sobre a obra.
Com grande afluência de público, o
espetáculo deve estender a temporada até 2026, reestreando no mesmo espaço no
final de janeiro.
Grande momento de nosso teatro!
NÃO PERCA
17/11/2025


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