São
inúmeros os casos, no cinema e no teatro, de atrizes e atores que tiveram
grandes momentos interpretando personagens com alguma deficiência. O caso mais
emocionante que me veio à memória assistindo a Luvas e Anéis foi a peça O
Milagre de Anne Sullivan encenada em São Paulo no ano de 1967 onde uma
tutora com baixa visão tenta educar a menina Helen Keller, uma pessoa surdocega.
As pungentes interpretações de Berta Zemel (Anne) e Reny de Oliveira (Helen)
renderam muitos prêmios às duas atrizes. A peça também resultou em belo filme
(1962) com Anne Bancroft (Anne) e Patty Duke (Helen).
A
escritora irlandesa Rosaleen McDonagh, cadeirante, nascida com paralisia
cerebral, pertence a uma minoria étnica cigana e sofre duplo preconceito
(étnico e por sua deficiência). Nessas condições, Rosaleen escreveu esse
emocionante texto que mostra a difícil relação de uma garota surda com seu pai,
que desconhece a língua de sinais. A moça vive o conflito de casar e ter uma
vida acomodada ou de se dedicar ao boxe, esporte que adora. A peça tem como
principal mote o empoderamento feminino e a luta contra os preconceitos.
Domingo
Nunez e Beatriz Kapschitz Bastos da Cia. Ludens, incansáveis
pesquisadores e realizadores da dramaturgia irlandesa em palcos brasileiros,
têm buscado, também dentro dessa dramaturgia, peças que tratam das deficiências
e nesse percurso encontraram o belo texto de Rosaleen McDonagh ora encenado no
SESC Santana.
Para
interpretar a garota surda escalaram Catharine Moreira, uma performer e atriz
surda e aí está toda a força e significância dessa importante montagem. E isso,
por si, seria significativo, mas é muito mais do que isso porque Catharine é
uma grande atriz e com seu gestual e emissão de sons comunica toda a emoção da história
ao espectador, que é auxiliado por legendas projetadas em uma tela. Seu pai,
vivido com o todo o talento, por Edgar Castro é o contraponto de suas ações. O
ator e intérprete de libras Fabiano Campos realiza belo e discreto trabalho
fazendo a interpretação das falas do pai na língua brasileira de sinais (a
Libras)
Destaque
para o belo e simétrico cenário assinado por Chris Aizner constituído por dois
ringues de boxe com um saco de pancadas no meio.
Aquilo
que o privilegiado espectador presencia no palco do SESC Santana é um momento,
que não seja o único, onde se aliam talento, solidariedade, comunhão e muitas provas
de que não há limites para a capacidade humana.
A
peça tem suas últimas apresentações neste final de semana, mas urge que estenda
suas apresentações em outros locais, pois além de ser um excelente espetáculo,
é uma lição de vida.
Obrigado
a todas e todos envolvidas/os por esta incrível experiência.
P.S.
Para não incorrer em erros de nomenclatura contei com a valiosa colaboração de
Paula Souza Lopez que sugeriu a inclusão da seguinte frase:
“Acredito firmemente
que a arte def, ou seja, a arte feita por pessoas com deficiência tem o
potencial para nos tirar, como artistas, da nossa zona de conforto. O trabalho
do Domingos Nunez inova ao colocar uma atriz surda e um ator ouvinte
contracenando em igualdade de importância. Este trabalho impactou a própria
maneira dele mesmo trabalhar.”
Obrigado, Paula!!
25/11/2023
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