domingo, 26 de novembro de 2023

LUVAS E ANÉIS

 

        São inúmeros os casos, no cinema e no teatro, de atrizes e atores que tiveram grandes momentos interpretando personagens com alguma deficiência. O caso mais emocionante que me veio à memória assistindo a Luvas e Anéis foi a peça O Milagre de Anne Sullivan encenada em São Paulo no ano de 1967 onde uma tutora com baixa visão tenta educar a menina Helen Keller, uma pessoa surdocega. As pungentes interpretações de Berta Zemel (Anne) e Reny de Oliveira (Helen) renderam muitos prêmios às duas atrizes. A peça também resultou em belo filme (1962) com Anne Bancroft (Anne) e Patty Duke (Helen).

        A escritora irlandesa Rosaleen McDonagh, cadeirante, nascida com paralisia cerebral, pertence a uma minoria étnica cigana e sofre duplo preconceito (étnico e por sua deficiência). Nessas condições, Rosaleen escreveu esse emocionante texto que mostra a difícil relação de uma garota surda com seu pai, que desconhece a língua de sinais. A moça vive o conflito de casar e ter uma vida acomodada ou de se dedicar ao boxe, esporte que adora. A peça tem como principal mote o empoderamento feminino e a luta contra os preconceitos.

        Domingo Nunez e Beatriz Kapschitz Bastos da Cia. Ludens, incansáveis pesquisadores e realizadores da dramaturgia irlandesa em palcos brasileiros, têm buscado, também dentro dessa dramaturgia, peças que tratam das deficiências e nesse percurso encontraram o belo texto de Rosaleen McDonagh ora encenado no SESC Santana.

        Para interpretar a garota surda escalaram Catharine Moreira, uma performer e atriz surda e aí está toda a força e significância dessa importante montagem. E isso, por si, seria significativo, mas é muito mais do que isso porque Catharine é uma grande atriz e com seu gestual e emissão de sons comunica toda a emoção da história ao espectador, que é auxiliado por legendas projetadas em uma tela. Seu pai, vivido com o todo o talento, por Edgar Castro é o contraponto de suas ações. O ator e intérprete de libras Fabiano Campos realiza belo e discreto trabalho fazendo a interpretação das falas do pai na língua brasileira de sinais (a Libras)

        Destaque para o belo e simétrico cenário assinado por Chris Aizner constituído por dois ringues de boxe com um saco de pancadas no meio.

        Aquilo que o privilegiado espectador presencia no palco do SESC Santana é um momento, que não seja o único, onde se aliam talento, solidariedade, comunhão e muitas provas de que não há limites para a capacidade humana.

        A peça tem suas últimas apresentações neste final de semana, mas urge que estenda suas apresentações em outros locais, pois além de ser um excelente espetáculo, é uma lição de vida.

        Obrigado a todas e todos envolvidas/os por esta incrível experiência.


        P.S. Para não incorrer em erros de nomenclatura contei com a valiosa colaboração de Paula Souza Lopez que sugeriu a inclusão da seguinte frase:

“Acredito firmemente que a arte def, ou seja, a arte feita por pessoas com deficiência tem o potencial para nos tirar, como artistas, da nossa zona de conforto. O trabalho do Domingos Nunez inova ao colocar uma atriz surda e um ator ouvinte contracenando em igualdade de importância. Este trabalho impactou a própria maneira dele mesmo trabalhar.”

Obrigado, Paula!!

        25/11/2023

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