Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o
fere.
A trajetória do grupo A Motosserra Perfumada é bastante acidentada. Em 2015 eles foram
“contemplados” com o roubo de seu material de trabalho, segundo eles por outro
grupo de teatro (!!), quando da temporada de seu primeiro espetáculo (Aquilo Que Me Arrancaram Foi a Única Coisa Que Me Restou) no subterrâneo da Rua
Xavier de Toledo. Em 2019 teve a temporada desta nova peça suspensa na Funarte por
“aquele senhor rego pinheiro”, após o mesmo ler a sinopse da mesma (seria
cômico se não fosse trágico). Não há dúvida que esses percalços alavancaram o
interesse do público por Res Pública 2023,
além, é claro, de seus inegáveis méritos que o boca a boca está tratando de
divulgar; prova disso é a casa lotada e os lugares disputados em todas as
sessões agora realizadas no Centro Cultural São Paulo que bravamente abrigou a
peça censurada na Funarte por “aquele senhor rego pinheiro”. Nem tudo está
perdido e a prefeitura da cidade com as ações de sua secretaria de cultura mais
o SESC e o Itaú Cultural têm mostrado isso.
E a peça? Pode-se adotar qualquer atitude ao assisti-la,
menos a indiferença. Pós-tropicalista, anárquica, antropofágica, canibalista,
excessiva, épica, brechtiana e outros mil adjetivos poderiam lhe ser aplicados,
mas nenhum deles talvez esteja tão de acordo com uma fala do personagem John “Punk que é punk é contra o sistema e tem que
gritar!” e isso é o que a peça faz durante todo o seu desenvolvimento com
um final aterrador, pessimista e apocalíptico, remetendo aos finais dos filmes Cabaret e Os Deuses Malditos (Ah! A antropofagia!). É isso então? Trata-se de
uma peça punk? Mais que uma classificação, o que importa é que o espetáculo da Motosserra busca desesperadamente uma
maneira nova e transgressora da arte refletir sobre a realidade e isso é o mais
importante de tudo, mesmo levando em conta certos excessos notados por este
ranheta velho espectador.
Os maiores excessos, a meu modo de ver, ficam por conta das
atuações de Bruno Caetano e Camila Rios que, apesar de serem bons
intérpretes, passam a maior parte do tempo aos gritos e em atitudes histéricas.
Curiosamente o ator mais contido em cena é o próprio diretor e dramaturgo,
Biagio Pecorelli e isso tem a ver com a personagem que interpreta, mas também
com sua maneira de interpretação. Leonarda Glück é uma figura potente em cena
como a travesti Valentina e tem seu grande momento no monólogo quase ao final,
remetendo aos famosos apartes que Brecht colocava em seus espetáculos como a Jenny e os Piratas da Ópera dos Três
Vinténs. Nota-se o uso desse valioso recurso de distanciamento em vários
outros momentos da montagem. Mais antropofagia.
Pensando em antropofagia, não há nada mais antropofágico na
encenação do que a excelente trilha sonora que vai de Wagner a Ray Conniff
passando, é claro, pelo punk executado ao vivo pelos músicos Edson Van Gogh e
Jonnata Doll.
É impossível ignorar o espetáculo deste grupo relativamente
novo que sem dúvida tem muito a dizer, tanto na forma como no conteúdo, que
mescla a República de Platão com
fatos sobre a nossa República, talvez a mais periférica região do centro de São
Paulo.
Minhas referências talvez não sejam suficientes para analisar
mais a fundo tudo o que se propõe em Res
Pública 2023, mas minha intuição diz que a Motosserra Perfumada está em um caminho certo e inovador.
Talvez pelo nome do grupo lembrei do provérbio brega citado
em epígrafe que as garotas dos anos 1960 costumavam colocar em seus diários.
Parafraseando o tal provérbio, eu diria “Sê como aquele espectador, que reflete
sobre o que a Motosserra tem a lhe dizer, mesmo que isso não o perfume”.
RES PÚBLICA 2023 está em cartaz no Centro Cultural São Paulo
de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 20h. só até o final da próxima semana (10/11)
OBS: É uma pena que a ingrata acústica do Espaço Ademar
Guerra continue impedindo que se entenda na plenitude o que os atores estão
falando, mesmo que gritem!
03/11/2019
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