quinta-feira, 9 de abril de 2020

‘S WONDERFUL


 
        Em 1960 eu tinha 16 anos e estava no 4ª série do ginásio no Instituto de Educação Anhanguera no bairro da Lapa. Época de muitos sonhos dourados e que antecedeu os bailinhos do colégio, onde iriam reinar Elvis Presley, Bill Halley e seus Cometas e Ray Conniff que é, de certa maneira, o protagonista desta crônica.
        Todo final de tarde eu ouvia um programa, acho que era na Rádio Bandeirantes, que tinha um prefixo que eu simplesmente adorava. A música vinha num crescendo e tinha gran finale com um triunfante “u la la”. Às vezes, no final do programa, essa música era cortada antes do fim o que me deixava muito frustrado. Mas que música era aquela? Quem tocava? Muitas vezes eu vinha correndo da rua para ouvir só o final do programa. Eu era verdadeiramente obcecado por aquela música.
        Há 60 anos não havia meios de pesquisar a origem daquela música e não sei como descobri que quem executava era a orquestra de um tal Ray Conniff, maestro que fazia muito sucesso nos Estados Unidos. Com a soma do dinheiro da minha mesada e daquele gentilmente dado pela minha mãe fui até uma loja de discos na Lapa (acho que era o Bazar Lapeano) e perguntei por um disco daquele senhor. Havia um único LP (long playing, para os mais jovens) dele. Pedi para ouvir e a atendente foi colocando um trecho de cada faixa e meu coração quase pulou para fora na introdução da sexta faixa do lado A.

        - É essa, é essa!! - disse eu emocionado e feliz - pode tirar o disco. Eu vou levar!

        Saí da loja com meu trunfo debaixo do braço. Era o primeiro LP que eu comprava. Só havia um pequeno problema: a vitrola de casa só tocava discos de 78 rpm (rotações por minuto, para os mais jovens) e o LP era em 33 rpm. Onde ouvir o disco?
        Lendo o rótulo do disco fiquei sabendo que a música em questão chamava-se Begin the Beguine de um autor naquele momento desconhecido para mim e que viria a se tornar um dos compositores norte americanos que mais amo: COLE PORTER!

 

        Eu olhava para aquele disco todos os dias e sonhava com o momento em que poderia ouvi-lo. Conversando com minha prima Dirce comentei o fato e ela me disse que o inquilino que morava no fundo do quintal da sua casa tinha uma vitrola “moderna” e que ela ia conversar com ele para que eu pudesse ir lá ouvir o disco. Olha a logística armada para que meu sonho se concretizasse!
        Após alguns dias de ansiedade recebi o sim e lá fui eu para ouvir na íntegra o meu tesouro. Era um casal de meia idade quieto, mas simpático e me deixou à vontade para desfrutar do meu disco. Ainda hoje consigo me imaginar de olhos semicerrados me deliciando com aquelas músicas. Permitiram até que eu tivesse um bis, ouvindo Begin the Beguine pela segunda vez.

        E o resto é história. Mais tarde meu pai mandou adaptar nossa velha vitrola para que ela tocasse as demais rotações além daquela de 78; eram as rotações 45 (para os discos compactos da época) e a já citada 33. Ali eu ouvi muitos dos discos que encantaram a minha juventude e que ajudaram a formar o espectador/receptor apaixonado que sou hoje.

        Foram incontáveis as vezes que dancei ao som desse disco e de todos os outros de Ray Conniff, mas o primeiro Ray Conniff ninguém esquece e hoje, nesses tempos de pandemia, ao reorganizar um armário dei de cara com o tal LP número um e resolvi ouvi-lo na vitrola. Revivi toda aquela emoção da primeira vez na casa do casal de meia idade quieto, mas simpático... e pedi bis para Begin the Beguine!

        09/04/2020

Um comentário:

  1. Vc me fez lembrar meu pai que, às 5 da manhã, acordava para varrer o terreiro de nossa casa, no interior do Ceará, ouvindo seu 78 rotações. Cresci entulhado de Nélson Gonçalves, e ainda hoje me emociono com "Boneca de trapo...". Salve a música, salve a vida e as histórias que ela nos proporciona viver.

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