As mulheres das primeiras peças de
Tennessee Williams são, em geral, reprimidas e com um passado obscuro e/ou
infeliz. É assim com Amanda e Laura Wingfield em À Margem da Vida, com
Blanche DuBois em Um Bonde Chamado Desejo (Stella nesta peça é uma
exceção que confirma a regra) e é também com Alma Winemuller neste Anjo de
Pedra.
Nas rubricas da peça o autor define
Alma assim: “A sua voz e seus gestos são consequência de anos e anos de
festinhas paroquianas. A sua postura é a de uma anfitriã de reitoria. Os que
regulam em idade com ela a consideram esquisita, comicamente afetada, a ponto
de os fazer rir. Ela cresceu em companhia de pessoas de muito mais idade. A sua
verdadeira natureza ainda está oculta, mesmo dela própria.”, ou seja, Alma
é aquela garota sem graça, muito tensa, que dá risadinhas nervosas e
notadamente infeliz. Quem não conheceu uma mocinha assim na época do colégio?
Sara Antunes incorpora essa repressão
em seus braços, em seus ombros, na postura dos pés e, principalmente, em sua
voz. Ela só irá explodir para uma nova vida a partir da belíssima cena em que
troca o vestido abotoadinho e sem graça por algo mais esvoaçante que estava
guardado no verdadeiro baú de sua liberdade. Cabe aqui um elogio aos figurinos
de todas as personagens desenhados por Marichilene Artisevskis.
Apesar de algumas adaptações, a
montagem de Nelson Baskerville é bastante fiel ao texto de Williams. As
personagens suprimidas de Dr. Buchaman, Gonzales, Rosemary e Vernon não fazem
falta à trama e, no meu modo de ver, apesar da excelência com que Kiko Marques
os diz, os sermões do Reverendo Winemuller ora introduzidos no original são
muito longos e não acrescentam nada na definição desse personagem autoritário,
machista e conservador que quis moldar a personalidade da sua filha Alma.
Um ponto alto da montagem é a exibição
de vídeos que comentam e acrescentam dados à ação. Só como exemplo, cito o
momento em que John tenta tocar em Alma e ela se retrai, mas no filme as mãos
do médico vão para partes mais íntimas da moça, o que na verdade é o seu
desejo. A direção de imagem é mais um belo trabalho da dupla André Grynwask e
Pri Argoud.
É muito boa a solução da cena de Alma e
John crianças com a reprodução de imagens do filme de Peter Glenville de 1961 e
os atores em cena dublando as personagens infantis.
A cenografia de Chris Aizner é bastante
flexível e aberta à imaginação do público só se concretizando no esqueleto do
corpo humano e na fonte com um anjo de pedra em estilo moderno, apesar da ação
da peça se passar em 1916. Baskerville preenche de maneira engenhosa o espaço
cênico com belas movimentações do elenco.
Destaques para a iluminação de Wagner
Freire e para a música original de Marcelo Pellegrini.
Cacilda Becker (1921-1969) tinha 29
anos quando interpretou Alma em 1950, Natália Thimberg (1929-) tinha 31 anos em
1960 quando fez o mesmo papel. Sara Antunes está próxima dos 40, porém, não
tenho dúvidas em afirmar que tem o physique du rôle mais próximo e
apropriado para viver Alma e ela o faz com uma tocante intensidade,
acrescentando mais este trabalho à sua significativa carreira.
Ricardo Gelli interpreta John Buchaman
de forma bastante viril, fazendo valer a rubrica que reproduzo a seguir “...é
um tipo fogoso, intensa e agitadamente vivo em meio a uma sociedade estagnada
... possui aquele ar ousado e fulgurante de um herói épico”. A cena em que
Rosa tira a sua camisa remete àquela emblemática de Stanley (Marlon Brando) e
Stella (Kim Hunter) na escada no filme Um Bonde Chamado Desejo
(1951).
Kiko Marques empresta dignidade ao
autoritário Reverendo Winemuller e Chris Couto dá um toque de humor à cena com
sua insana e perversa Sra. Winemuller. O toque de leveza fica por conta de
Luiza Porto com sua graciosa Nellie.
A austeridade da Sra. Basset fica por
conta de Selma Luchesi e a fogosidade de Rosa Gonzales está nas mãos de
Carolina Borelli. Thomas Huszar interpreta três personagens Dusty, Roger
Doremus e Archie Kramer.
Duas curiosidades sobre a primeira
montagem de Anjo de Pedra no Teatro Brasileiro de Comédia em 1950
dirigida por Luciano Salce: Sérgio Cardoso interpretava o pequeno papel do
caixeiro viajante Archie Kramer que só aparece na cena final e a saudosa Cleyde
Yaconis estreou no teatro substituindo Nydia Licia no papel de Rosa Gonzales (quem
me relembrou deste fato foi a querida Sara Antunes).
A presente montagem de Anjo de Pedra está recheada de amor, de afeto e de respeito pelas mulheres e pelo ser humano de maneira geral e como tal merece ser prestigiada e assistida.
Em cartaz no Tucarena até 15/05 às sextas e sábados às 21h e aos domingos às 18h.
21/03/2022
Querido Cetra, eu tbm fiz essa montagem em 2011. Fui a primeira atriz negra a fazer o papel de Alma Winemuller. Um dia falamos mais sobre isso se quiser, O saudoso João Acaiabe fazia meu pai e eu tinha um elenco muito bacana tbm. Pena que vc não tenha visto. Ia adorar saber sua opinião. Um beijo.
ResponderExcluirRosana Maris
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