segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A CANTORA CARECA


        Essa cantora careca é mesmo de morte! Continua não dando as caras no teatro onde é ansiosamente aguardada.



        Estreou na última sexta feira (16/02) no Teatro Aliança Francesa uma nova montagem dessa pérola do, assim batizado por Martin Esslin, Teatro do Absurdo. A peça fecha a trilogia do festival Que Absurdo!, realização conjunta dos grupos TAPA e Das Dores.
        Em São Paulo A Cantora Careca ganha constantemente leituras e montagens amadoras, mas raramente é encenada profissionalmente. Ao que me consta, a última ocorreu no longínquo ano de 1970 no palco do Teatro Oficina com direção de Antônio Abujamra.
        E eis que esta jovem senhora (ou senhorita?) retorna triunfante pelas mãos mais do que apropriadas de Eduardo Tolentino, mantendo todo o frescor de seus 69 anos de vida. Ionesco (1909-1994) a escreveu em 1949, e ela está em cartaz ininterrupto desde 1957 no Théâtre de la Huchette no Quartier Latin parisiense.
        Tolentino não precisou de nada mais do que um palco nu e de poucos adereços para colocar um elenco de primeira em cena a desfilar os deliciosos diálogos non sense de que é formada essa verdadeira joia do teatro universal. Na verdade a montagem é um extenso “número de cortina” (designação surgida no teatro de revista para esse tipo de cena).
        Mariana Muniz oferece mais do que o original pede. Além de narrar o início da peça, ela empresta sensualidade e ironia para sua personagem Mary. Guilherme Sant’Anna toma conta da cena quando o bombeiro começa a contar suas histórias. E os dois casais (Martin e Smith) são vividos com muito humor pelos talentosos Clara Carvalho, Emilia Rey, Brian Penido Ross e Riba Carlovich, todos “adequadamente” vestidos para um jantar inglês. O perfeito tempo de comédia dos atores pode ser avaliado na primeira cena dos Smiths, no encontro dos Martins e na saborosa cena final onde se acaba de vez com qualquer tipo de lógica.
        A Cantora Careca foi escrita no período pós-guerra quando a realidade era absurda, havia desesperança no ar e a falta de comunicação entre as pessoas era grande. Havia, por traz da situação cômica, uma triste constatação de que a humanidade caminhava em marcha ré. De lá para cá, com o progresso tecnológico galopante, as coisas só pioraram e o resultado é que continuamos a rir de nosso desencanto com os destinos do homem ao assistir esse saboroso espetáculo.

        O Festival do Absurdo segue até 15/04 no Teatro Aliança Francesa com a seguinte programação:

        AS CRIADAS – Quartas e quintas – 20h30
        A CANTORA CARECA – Sextas – 20h30 e sábados – 19h
        UMA PEÇA POR OUTRA – Sábados – 20h30 e domingos – 19h


        19/02/2018

domingo, 18 de fevereiro de 2018

MEDEA MINA JEJE

Foto Julieta Bachin

        Ao som do mar revolto, uma sensação de pequenez diante do universo invade o espectador ao adentrar o espaço onde vai testemunhar o drama da escrava Medea. Graças ao ambiente criado pela diretora Juliana Monteiro,a  imensidão do universo está toda ali, naquele espaço do Sesc Ipiranga que não tem mais do que 50 metros quadrados. Bendita magia do teatro e seus feiticeiros.
        Uma bem sucedida junção do mito grego com rituais africanos (idealizada por Kenan Bernardes e Rudinei Borges e escrita por este último) resultou em dos mais belos e pungentes espetáculos em cartaz na cidade. O bem arquitetado e poético texto relata o drama dessa mulher que opta por sacrificar o filho Age para que ele não seja perseguido e castrado pelo capitão do mato Jasão. A cena onde ocorre o diálogo entre Medea e Jasão sobre a sina do menino é muito forte e me remeteu a outra obra prima que a arte brasileira insiste em nos oferecer; trata-se da canção Tiro de Misericórdia (João Bosco e Aldir Blanc). Quantas mães, neste pobre Brasil, não sofrem esse mesmo drama, com seus filhos barbarizados pelo perverso sistema em que vivemos? Medea Mina Jeje é trabalho urgente para refletir sobre a exploração de crianças pelo trabalho escravo.
        Tragédia tão intensa é mostrada como um poema visual belíssimo por meio da encenação de Juliana Monteiro que harmoniza de maneira brilhante o texto de Rudinei Borges com seu próprio cenário, a belíssima luz de Wagner Antônio, o poderoso som de João Paulo Nascimento, o figurino de Carol Badra e, é claro, a performance, não menos que magnífica, de Kenan Bernardes.
        Kenan Bernardes canta , dança, narra e interpreta a tragédia de Medea por meio de visceral trabalho de voz e corpo (provocação corporal de Luciana Lyra) deixando o espectador perplexo e emocionado.
        É louvável testemunhar que uma produção de caráter modesto como essa reúna profissionais tão criativos e competentes resultando em um dos melhores momentos da nossa recém iniciada temporada teatral. 45 minutos de puro prazer estético com direito a reflexão sobre a realidade brasileira.
        E para encerrar, nada melhor do que Nina Simone cantando I Got Life!

        MEDEA MINA JEJE sai de cartaz do Sesc Ipiranga neste domingo (18/02 às 18h30), mas deve cumprir nova temporada em local que reúna as características de luz e som necessárias e fundamentais para o seu bom rendimento .  Fique atento! É espetáculo imperdível.

18/02/2018

        

sábado, 10 de fevereiro de 2018

FUNÂMBUL@S


        Concepções cênicas arrojadas, criativas e arrebatadoras têm sido constantes nas encenações de Eric Lenate e Funâmbul@s não foge à regra. Em palco quase nu, o diretor brinca com as luzes, com os sons e os movimentos do elenco para criar espetáculo feérico que enche os olhos do espectador desde a primeira em cena onde a personagem Júlia anda na corda bamba.
        Problemas técnicos no som inviabilizaram a apresentação na estreia. Tendo recebido o texto na ocasião, tive a oportunidade de lê-lo antes de assistir à montagem na semana seguinte. Priscila Gontijo usa mote muito simples e corriqueiro - três irmãs às voltas do que fazer com o pai senil – para desenvolver narrativa fragmentada onde se entrelaçam três situações: peça/realidade/sonho. Apesar de entremear talentosamente teatro do absurdo, metalinguagem e teatro realista a dramaturga às vezes recai em certa prolixidade que prolonga desnecessariamente a trama. Na leitura do texto nem sempre ficou claro para este leitor em qual das três situações se estava e fiquei curioso em ver como o diretor resolveria esse aspecto.
        A prolixidade que vejo no texto se acentua na montagem: o longo monólogo de Júlia na corda bamba que aparece duas vezes no texto, na encenação é repetido três vezes e a cena onde Seu Augusto em seu desvario interpreta uma cena de Júlio Cesar transformou-se em um longo pot-pourri de falas de personagens das peças de Shakespeare que se por um lado mostram o imenso talento de ator de Lenate, por outro prolongam ainda mais a peça.
        Quanto às três situações (peça, realidade, sonho) o encenador tenta fazer a diferenciação por meio do belo jogo de luz criado por Aline Santini, mas nem sempre isso fica claro para o espectador. Juntem-se à iluminação, os figurinos clownescos de Rosângela Ribeiro, a precisa trilha sonora de L.P. Daniel. os adereços de Lenate e o visagismo (não creditado) para criar junto com a movimentação do elenco um todo que funciona de maneira harmoniosa e perfeitamente sincronizada.


        Quanto ao elenco, a primeira surpresa vem com a personagem criada por Michelle Boesche. Michelle revela profundo preparo físico para andar na corda bamba, fazer piruetas em cena e preparo interpretativo ao fazer tudo isso dando humanidade à sua Júlia.
        Vanise Carneiro cria a extrovertida Clara jogando muito bem com as variações vocais exigidas pela personagem.
        A mais humana das três, Ana, ao que me parece, é o alter ego da dramaturga, não só por também ser escritora, mas pelas posições que defende. Rafaela Cassol defende Ana com muito carinho e talento.
        Eric Lenate vive Seu Augusto com expressão corporal que jamais esquece a velhice e a senilidade do personagem. Revela muita ternura e compreensão do mundo no belo diálogo com a filha Ana quase ao final, assim como sua versatilidade como ator no já citado intermezzo shakespeariano.
        Pela proposição do encenador o elenco emite sua voz em falsete durante quase toda a apresentação, fato que em certos momentos dificulta a compreensão do texto.

          Fotos de Leekyung Kim

        FUNÂMBUL@S está em cartaz no Centro Cultural São Paulo até 11/03/2018 ás sextas e sábados (21h) e domingos (20h)

10/02/2018

        

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

VELHA ROUPA DESBOTADA - CINE PAISANDU


       Não sei quantas vezes encostei nessa que um dia foi bilheteria do Cine Paisandu para comprar ingresso para algum filme.


       Lembro bem da primeira vez! Foi em 1958. Eu tinha 14 anos e acabara de ter autorização dos meus pais para ir sozinho à “Cidade” (era assim que as pessoas chamavam o centro de São Paulo). Claro que minha opção foi por uma sessão de cinema e o filme era Torturados Pela Angústia (1957) sobre a amizade de dois garotos, um americano e um japonês, durante a segunda guerra mundial. Depois vieram outros tantos na tela desse cinema enorme (mais de 2000 poltronas) inaugurado em 1957 e localizado no Largo do Paisandu, em pleno coração da Cinelândia paulistana, que também abrigava outros luxuosos templos cinematográficos como o Marrocos, o Olido, o Ipiranga, o Metro e o Marabá. Alí assisti a Meu Pecado Foi Nascer com Clark Gable e Yvonne De Carlo, drama passado no sul dos Estados Unidos que tentava reviver o clima de ... E o Vento Levou e ao monumental e hollywoodiano Guerra e Paz com a inesquecível Audrey Hepburn interpretando a princesa Natasha.



       Hoje, como boa parte da “Cidade”, tanto o prédio do cinema como seu entorno, se encontram deteriorados e decadentes. Aquele que um dia foi luminoso na frente do prédio ainda ostenta na vertical o nome PAISAND, o U deve ter sido levado pelo vento.



       Sinal dos tempos... Mas que dói, dói. E dá uma tremenda saudade. Mas como dizia Belchior:

            "O que há algum tempo era novo, jovem
             Hoje é antigo
             E precisamos todos rejuvenescer"


09/02/2018

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

OS CADERNOS DE KINDZU


        Eis que mais uma vez a companhia carioca Amok Teatro nos brinda com um significativo espetáculo. A última vez foi em 2016 com Salina – A Última Vértebra e agora em temporada relâmpago de apenas oito espetáculos é a vez de Os Cadernos de Kindzu, criado pelos encenadores Ana Teixeira e Stéphane Brodt, a partir da obra Terra Sonâmbula do moçambicano Mia Couto.
        Os Cadernos de Kindzu é encenação de caráter épico que narra a saga do rapaz Kindzu, sua relação com os pais (o pai está morto, mas lhe aparece) e com o adorável indiano Surendra, sua partida da terra natal devastada pela guerra, a descoberta de um navio e o encontro com Farida pela qual ele se apaixona e assume o encargo de partir em busca do filho da moça. Narrativas paralelas surgem ao longo de sua trajetória. Parte da peça é falada na língua nativa e em português lusitano.
        Em cenário limpo onde os atores permanecem mesmo quando não estão em ação veem-se os objetos de cena e os instrumentos que serão usados tanto na interpretação das belas canções compostas pelo grupo como também na criação de sons que ilustram as cenas (barulho do mar, movimentos dos atores). O desenho de luz de Renato Machado é responsável pelos belíssimos recortes de cena (uma jangada, uma cama, os diversos recintos onde se passam as ações e até um “toque” de mar no azulado do instrumento que reproduz o barulho das ondas).
        Thiago Catarino tem forte presença cênica e faz interpretação emocionada do perplexo protagonista, chegando às lágrimas em vários momentos da peça. Stéphane Brodt brilha na hilária cena em que é apresentado o indiano Surendra. Graciana Valladares tem força como a sofrida Farida e renderia mais se fosse menos melodramática e não gritasse tanto. Luciana Lopes está ótima como a prostituta cega Juliana, mas não convence tanto como a mãe como a narradora do estupro devido à entonação de voz extremamente artificial. Gustavo Damasceno, Sérgio Loureiro e Vanessa Dias (dona de bela voz) completam o elenco.
        A direção de Ana Teixeira e Stéphane Brodt é bastante criativa conjugando harmoniosamente elenco, cenário, figurino, iluminação e as belas canções de estilos indiano, africano e português que embalam todo o espetáculo. No meu modo de ver a encenação lucraria com alguns cortes na narrativa (saga de Farida é excessiva, conversa de Quintinho com o defunto) reduzindo as atuais duas horas de duração.
        Pela beleza da encenação e das músicas apresentadas e pelo tema tratado (imigrantes fugindo das atrocidades provocadas por guerras insanas) Os Cadernos de Kindzu é espetáculo que precisa ser visto.

        Não haverá apresentações no Carnaval. As últimas ocorrerão nos dias 15, 16, 17 e 18 de fevereiro sempre às 19h15. Na Caixa Cultural (Praça da Sé). Ingressos gratuitos.

05/02/2018


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

APROXIMANDO-SE DE A FERA DA SELVA


Foto de João Caldas


        Segundo a astrologia, a conjunção de astros no espaço celeste é tida como momento mágico para a humanidade. O mesmo sucede quando um raro momento teatral conjuga dramaturgia, direção, elenco, iluminação, cenografia, figurino e trilha sonora e alguns privilegiados dessa humanidade têm o prazer de testemunhá-lo.
        Isso aconteceu ontem na estreia de Aproximando-se de A Fera da Selva no Centro Cultural São Paulo, coprodução da Canto Produções e Meimundo.
        Em sua segunda incursão na dramaturgia (a primeira foi com a bem sucedida Alice – Retrato de Mulher Que Cozinha ao Fundo), Marina Corazza mescla momentos da vida e do relacionamento do escritor norte-americano Henry James (1843-1916) com a escritora norte-americana Constance Fenimore Woolson (1840-1894), com trechos (narrados e interpretados) do conto A Fera na Selva de Henry James e com observações dos atores dirigidas diretamente ao público. Essa complexa mistura chega até o espectador de maneira harmoniosa e delicada.

A dramaturga Marina Corazza

        A elegante encenação de Malú Bazán traduz de maneira ímpar o clima proposto pelo texto. Desde a movimentação dos atores (alguns momentos mereciam ser fixados para a posteridade como o puxar das cortinas, a atriz sentada no chão com a saia apenas colocada sobre seu figurino básico, o primeiro encontro dos dois escritores e a cena onde Henry James descreve o breve encontro erótico com seu companheiro de quarto Oliver enquanto vê-se a atriz deitada de costas para o público com o dorso nu) até o melhor uso que já se fez do Espaço Ademar Guerra desde 1994 quando Francisco Medeiros alí apresentou sua antológica encenação de A Gaivota.
        Conforme citado acima a aparentemente simples cenografia de Renato Caldas faz com que o espaço contribua com o espetáculo ao contrário de outras montagens ali apresentadas onde parecia haver uma disputa entre elas e o local. Limitado por cortinas que são manipuladas pelos atores, o espaço cênico contorna os graves problemas de acústica do local.
        A iluminação de Miló Martins banha o espaço oferecendo momentos que tornam perfeita a conjunção dos elementos.
        Figurinos simples de Mareu Nitzchke constituídos de vestes cinza muito parecidas dos dois atores que são adornadas por um colete e uma saia que têm contribuição decisiva para o entendimento da trama.


        Pontual e também perfeita é a trilha sonora de Daniel Maia.
        Parece que faltou algum elemento nessa conjunção: a cumplicidade cênica de Gabriel Miziara e de Helô Cintra Castilho. Miziara, dono de imenso talento, já demonstrado em tantos trabalhos, está perfeito nas diversas personagens que interpreta e a grande surpresa para mim é a interpretação de Helô Cintra Castilho: afastada dos palcos há algum tempo, por conta de suas atividades como assessora de imprensa, retorna em grande estilo com belíssima interpretação tanto da personagem de Constance, como da protagonista do conto e da narradora informal que dialoga com o público. Helô transita com rara elegância pelo palco lembrando as dançarinas criadas por Degas.
        Pode-se achar que esta matéria abusa dos elogios, mas como foi citada no início essa preciosa conjunção precisava ser louvada.
        Algo significativo ocorreu nos agradecimentos: o público, constituído basicamente por elementos da classe teatral, aplaudiu calorosamente demonstrando claramente a sua aprovação, mas não se levantou. Aplaudir de pé se tornou algo tão banal que essa atitude bonita, no meu modo de ver, mostrou o respeito e a adesão dos presentes ao espetáculo.
        Noite memorável fechada com chave de ouro com um brinde oferecido aos presentes.

Fim da festa
       
        APROXIMANDO-SE DE A FERA DA SELVA está em cartaz no Espaço Ademar Guerra do Centro Cultural São Paulo de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 20h. Entrada gratuita. IMPERDÍVEL.

02/02/2018