Um
pouco de história
Meu
currículo de espectador abriga cerca de 3800 peças desde que me apaixonei pelo
teatro em 1964. Em meu livro O Palco Paulistano de Golpe a Golpe (1964-2016)
atesto uma grande lacuna ocorrida no final dos anos 1970 quando, por diversas
razões, não pude assistir à antológica montagem de Gota d’Água escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes (1940-1976) e dirigida
por Gianni Ratto (1916-2005) com a visceral interpretação da já saudosa Bibi
Ferreira (1922-2019), desaparecida nesta semana. A emoção se renova cada vez
que ouço os monólogos de Joana contidos no LP gravado na época por Bibi.
Outras
Joanas povoaram nossos palcos nesses 40 anos: Cleide Queiroz, poderosa, na
montagem dirigida por Gabriel Villela em 2001, Georgette Fadel (2006) e Laila
Garin (2016); estas duas últimas em versões adaptadas do original.
A
montagem atual
Em
momento oportuno do nosso país e com a intenção de dar voz a elenco negro, uma
vez que a peça tem ação na Vila do Meio Dia, zona periférica onde a raça negra predomina, Jé Oliveira
realiza esta potente montagem em cartaz no Itaú Cultural. Trata-se da primeira
montagem com elenco negro, mas não a primeira Joana negra, pois Cleide Queirós
já a interpretou na encenação já citada de Villela.
O
texto de Chico Buarque e Paulo Pontes tem muita força nos dias atuais onde a
ganância e o poder concentrado nas mãos de poucos continuam a dominar o cenário
brasileiro, mas há certa verborragia que poderia ser trabalhada pelo diretor, o
mesmo, porém, optou pela montagem integral
com direito a inserções de cenas de candomblé que somadas a problemas de ritmo
(que devem ser sanados durante a temporada) resultaram em apresentação de quase
três horas e meia de duração. Com exceção do início com a conversa das vizinhas
que demora a engrenar, o primeiro ato é impactante e ao seu final, o público
emocionado aguarda ansioso a continuidade da trama. O segundo ato, porém,
carece de ritmo e arrasta-se para um final, que da maneira que é apresentado, é
bastante frustrante.
O uso intermitente de microfones revela-se não funcional e cansativo, sendo mais um dos elementos que prolongam desnecessariamente o espetáculo.
A
peça conta com três grandes interpretações: Salloma Salomão está emocionante
como o sábio e suave Egeu; Rodrigo Mercadante tem força, talento e ótima dicção
para nos indignar com seu asqueroso Creonte e Juçara Marçal, cantora, estreando
como atriz, e que atriz! Sua Joana é tocante tanto na fúria como na suavidade,
lembrando (sem imitar) momentos consagrados por Bibi Ferreira que só conheço em
gravação. Causa estranhamento uma mesma atriz interpretar a vizinha Zaíra e a
filha de Creonte, uma vez que a montagem não utilizou o sistema coringa, nem
recursos épicos na sua concepção. Jé Oliveira se sai melhor como encenador do
que como ator: seu Jasão tem o gingado do malandro do morro, mas não tem força
para enfrentar Joana, nem consegue externar suas mudanças de comportamento até
se consolidar como aproveitador e comparsa de Creonte.
Citações
de Você Não Gosta de Mim, Mas Sua Filha
Gosta e Deus Lhe Pague, permeiam as canções originais de Chico Buarque para a
peça, assim como, ritmos afros e de rap dando colorido especial e atualidade à
encenação, há porém, uma incômoda trilha gravada que acompanha certos números
musicais. O acompanhamento musical ao vivo é ótimo e é interessante e bonito o
uso das vozes de Bibi Ferreira e de Chico em certos momentos, como também a
homenagem que se faz à montagem original de 1975 incluindo entre os adereços de
cena a capa do LP gravado na época.
Resta
ainda uma saudação a Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianninha, que
adaptou a Medeia de Eurípedes para a
televisão e essa adaptação foi a inspiração para Chico e Pontes escreverem a
obra prima Gota d’Água.
GOTA
d’ÁGUA (PRETA) está em cartaz até o próximo domingo (17) no Itaú Cultural com
sessões gratuitas bastante concorridas (sexta e sábado às 20h e domingo às 19h).
Volta ao cartaz de 08 a 24 de março no Centro Cultural São Paulo ás sextas e
sábados ás 20h30 e domingos às 19h30.
15/02/2019
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