Virginia Buckowski
Desta vez a Velha Companhia mergulha fundo nas águas turvas de um Brasil
desumano e violento para contar a saga de Maíra, uma bióloga marinha traumatizada
com seu passado obscuro e que ao ir atrás dele descobre não só as suas origens
como os fatos que levaram ao assassinato do seu suposto pai pelo fato dele ter
denunciado a morte de 500 caminhoneiros no estado do Pará na década de 1980. O público
é guiado por um escafandrista que o conduz literalmente até o fundo do poço
brasileiro.
Leonardo Fernandes
A peça de Kiko Marques é dividida em
três atos que ele chama de estágios de apneia. No primeiro (O Tubarão de Okinawa) o autor faz o seu
costumeiro jogo com o tempo e o espaço de maneira não cronológica para contar
um pouco sobre quem é a protagonista Maíra. O ato termina com um diálogo entre
Maíra e um tubarão do aquário de Okinawa que, ao que se sabe, é o único de sua
espécie que vive confinado em um viveiro. O segundo estágio (A Casa) é mais linear e no meu modo de
ver, o melhor elaborado, ali conhecemos a família de Maíra e parte do seu
passado. No terceiro ato (Lago de
Lágrimas) uma madura e agora vivida Maíra já com todos os detalhes do seu
passado e de sua origem provoca uma verdadeira explosão em relação aos seus predadores.
Mais não escrevo para não ser desmancha prazer. Apesar de estarem
dramaturgicamente bem amarrados, com pequenos ajustes cada um desses atos
poderia funcionar como uma peça independente.
A elaboração do texto começou a partir
de oficinas realizadas pela Velha
Companhia em 2018. Os participantes relataram casos fictícios ou reais. Um
desses fatos - terrivelmente cruel e retrato do Brasil violento em que vivemos
- somado a um sonho que Kiko teve com casa submersas foi o embrião da obra que
hoje se chama Casa Submersa. Trata-se do texto mais
complexo do dramaturgo e ele completa a Trilogia
das Águas iniciada com a obra prima Caís
ou Da Indiferença das Embarcações de 2013 e continuada com Sinthia em 2016.
Para dar conta do texto a encenação é
tão complexa quanto ele. O cenário de Marisa Bentivegna que corta o espaço
cênico numa semi diagonal expõe e esconde os personagens, além de servir de
tela para as projeções de imagens, a iluminação através de uma porta com as
entradas e saídas do escafandrista sugerem os quadros de De Chirico. Os belos
figurinos de João Pimenta são bastante estilizados sugerindo a personalidade da
cada personagem. Bruno Menegatti criou uma poderosa trilha musical para
acompanhar as ações.
Kiko Marques harmoniza todos esses
elementos com um elenco tão homogêneo que fica difícil destacar esta ou aquela
interpretação.
O autor dá um verdadeiro presente para
sua companheira Virginia Buckowsky por meio da personagem Maíra que vai da
insegurança das primeiras cenas ao total domínio da situação no final da peça.
Virginia atravessa praticamente toda a peça em cena e aproveita cada momento de
sua personagem nos presenteando com uma vigorosa interpretação.
Kiko Marques
Kiko reservou para si o difícil personagem do
Senador e o faz com grande brilho. Willians Mezzacapa está ótimo como o patético
português Augusto, enamorado de Maíra e homenageia Maurício de Barros no modo
de falar com o Seu Dejair. Os Marcelos Marothy e Diaz brilham como sempre, o
primeiro como o asqueroso Salsicha e o segundo como o impagável tubarão de
Okinawa. Valmir Sant’Anna que foi uma revelação em Sínthia confirma seu talento como o injustiçado pai. Leonardo
Fernandes faz sua estreia na companhia em grande estilo como o escafandrista. Bruno
Menegatti e Rodrigo Vellozo encarregam-se da parte musical, além do último
também interpretar o psiquiatra que cuida de Maíra.
Patrícia Gordo
Adriana Dham
E o que dizer do elenco feminino? As
três irmãs de Maíra ganham vida nas intervenções de Patrícia Gordo (cada dia
melhor), Adriana Dham e Ana Negraes, sendo que esta última interpreta uma
sensual “sereia” no primeiro ato. Muito simpática e oportuna a inclusão de uma
verdadeira índia (Sandra Nanayna) como Dulce que além de boa atriz canta com
uma linda voz.
Juliana Sanches
Por último, mas não menos importante: a
talentosíssima Alejandra Sampaio interpretaria a personagem de Maíra Mãe, mas
sua nenê deu sinais de querer vir ao mundo antes do tempo e ela teve que
abandonar temporariamente o projeto. Substituída às pressas por Juliana
Sanches, esta teve menos de uma semana para se preparar para o papel. Contando
com o carinho e o apoio do grupo, com seu esforço e com o imenso talento que o
Universo lhe deu, Juliana já na noite de estreia nos ofereceu tanto uma “Maíra
Mãe” como “A Que Ria das Dores” plenas de humanidade e verossimilhança.
Essa somatória de talentos só poderia
resultar em mais uma vitória da Velha Companhia.
CASA SUBMERSA está em cartaz no SESC
Pompeia de quarta a sábado às 20h e aos domingos às 18h. São poucos lugares e a
temporada é curta (só até 22/09). Corra e acompanhe o escafandrista por nossas
águas turvas! É doloroso, mas é necessário!
07/09/2019
Parabéns por texto tão completo qto às observações realizadas sobre essa linda história e tão bem interpretada!
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