sábado, 7 de setembro de 2019

CASA SUBMERSA



Virginia Buckowski
 
         Desta vez a Velha Companhia mergulha fundo nas águas turvas de um Brasil desumano e violento para contar a saga de Maíra, uma bióloga marinha traumatizada com seu passado obscuro e que ao ir atrás dele descobre não só as suas origens como os fatos que levaram ao assassinato do seu suposto pai pelo fato dele ter denunciado a morte de 500 caminhoneiros no estado do Pará na década de 1980. O público é guiado por um escafandrista que o conduz literalmente até o fundo do poço brasileiro.
 
Leonardo Fernandes

         A peça de Kiko Marques é dividida em três atos que ele chama de estágios de apneia. No primeiro (O Tubarão de Okinawa) o autor faz o seu costumeiro jogo com o tempo e o espaço de maneira não cronológica para contar um pouco sobre quem é a protagonista Maíra. O ato termina com um diálogo entre Maíra e um tubarão do aquário de Okinawa que, ao que se sabe, é o único de sua espécie que vive confinado em um viveiro. O segundo estágio (A Casa) é mais linear e no meu modo de ver, o melhor elaborado, ali conhecemos a família de Maíra e parte do seu passado. No terceiro ato (Lago de Lágrimas) uma madura e agora vivida Maíra já com todos os detalhes do seu passado e de sua origem provoca uma verdadeira explosão em relação aos seus predadores. Mais não escrevo para não ser desmancha prazer. Apesar de estarem dramaturgicamente bem amarrados, com pequenos ajustes cada um desses atos poderia funcionar como uma peça independente.

         A elaboração do texto começou a partir de oficinas realizadas pela Velha Companhia em 2018. Os participantes relataram casos fictícios ou reais. Um desses fatos - terrivelmente cruel e retrato do Brasil violento em que vivemos - somado a um sonho que Kiko teve com casa submersas foi o embrião da obra que hoje se chama Casa Submersa. Trata-se do texto mais complexo do dramaturgo e ele completa a Trilogia das Águas iniciada com a obra prima Caís ou Da Indiferença das Embarcações de 2013 e continuada com Sinthia em 2016.

         Para dar conta do texto a encenação é tão complexa quanto ele. O cenário de Marisa Bentivegna que corta o espaço cênico numa semi diagonal expõe e esconde os personagens, além de servir de tela para as projeções de imagens, a iluminação através de uma porta com as entradas e saídas do escafandrista sugerem os quadros de De Chirico. Os belos figurinos de João Pimenta são bastante estilizados sugerindo a personalidade da cada personagem. Bruno Menegatti criou uma poderosa trilha musical para acompanhar as ações.

         Kiko Marques harmoniza todos esses elementos com um elenco tão homogêneo que fica difícil destacar esta ou aquela interpretação.
 
         O autor dá um verdadeiro presente para sua companheira Virginia Buckowsky por meio da personagem Maíra que vai da insegurança das primeiras cenas ao total domínio da situação no final da peça. Virginia atravessa praticamente toda a peça em cena e aproveita cada momento de sua personagem nos presenteando com uma vigorosa interpretação.
 
Kiko Marques

          Kiko reservou para si o difícil personagem do Senador e o faz com grande brilho. Willians Mezzacapa está ótimo como o patético português Augusto, enamorado de Maíra e homenageia Maurício de Barros no modo de falar com o Seu Dejair. Os Marcelos Marothy e Diaz brilham como sempre, o primeiro como o asqueroso Salsicha e o segundo como o impagável tubarão de Okinawa. Valmir Sant’Anna que foi uma revelação em Sínthia confirma seu talento como o injustiçado pai. Leonardo Fernandes faz sua estreia na companhia em grande estilo como o escafandrista. Bruno Menegatti e Rodrigo Vellozo encarregam-se da parte musical, além do último também interpretar o psiquiatra que cuida de Maíra.
 
Patrícia Gordo
 
Adriana Dham

         E o que dizer do elenco feminino? As três irmãs de Maíra ganham vida nas intervenções de Patrícia Gordo (cada dia melhor), Adriana Dham e Ana Negraes, sendo que esta última interpreta uma sensual “sereia” no primeiro ato. Muito simpática e oportuna a inclusão de uma verdadeira índia (Sandra Nanayna) como Dulce que além de boa atriz canta com uma linda voz.
 
Juliana Sanches
 
         Por último, mas não menos importante: a talentosíssima Alejandra Sampaio interpretaria a personagem de Maíra Mãe, mas sua nenê deu sinais de querer vir ao mundo antes do tempo e ela teve que abandonar temporariamente o projeto. Substituída às pressas por Juliana Sanches, esta teve menos de uma semana para se preparar para o papel. Contando com o carinho e o apoio do grupo, com seu esforço e com o imenso talento que o Universo lhe deu, Juliana já na noite de estreia nos ofereceu tanto uma “Maíra Mãe” como “A Que Ria das Dores” plenas de humanidade e verossimilhança.
 

         Essa somatória de talentos só poderia resultar em mais uma vitória da Velha Companhia.

         CASA SUBMERSA está em cartaz no SESC Pompeia de quarta a sábado às 20h e aos domingos às 18h. São poucos lugares e a temporada é curta (só até 22/09). Corra e acompanhe o escafandrista por nossas águas turvas! É doloroso, mas é necessário!

         07/09/2019

        

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Parabéns por texto tão completo qto às observações realizadas sobre essa linda história e tão bem interpretada!

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