INTRODUÇÃO
Não há como não
lembrar do romance de Dostoievski ao chegar no Teatro Cemitério de Automóveis.
É muito triste testemunhar a agonia final do espaço com as portas semicerradas,
o bar, antes cheio de vida e de cerveja, agora fechado e as instalações
literalmente caindo aos pedaços, por descaso do síndico e de alguns moradores
do prédio. Fui carinhosamente recebido pelo Lucas Mayor que me relatou parte
das humilhações sofridas por Mário Bortolotto e o grupo.
Em qualquer país onde
a cultura tem importância, Bortolotto seria personagem cultuada por sua
importância como autor, ator e incansável batalhador pelos direitos humanos,
tema sempre presente em suas obras. Não é por certa marginalidade à sociedade
proposta pelo autor tanto em sua obra como em sua vida que ele deveria ser
tratado assim.
Dessa maneira aquele
espaço que durante mais de dez anos abrigou o grupo Cemitério de Automóveis
fecha suas portas para dar lugar a mais um mercadinho. Teatro, música e outras
obras de arte trocadas por pimentões, bananas, mandiopans e muita Coca Cola.
O espetáculo que fecha esse ciclo do Cemitério de Automóveis sugestivamente tem a humilhação como tema.
HUMILHAÇÃO – O ESPETÁCULO
Este espetáculo segue
o mesmo esquema de Corpo, também dirigido por Lucas Mayor e Marcos Gomes
no início de 2020. São cenas curtas com
dois atores tratando de um mesmo tema, neste caso a humilhação, a partir de um
ensaio do norte americano Wayne Koestenbaum.
Aqui se comprova na
plenitude a característica que só o teatro tem: basta um ator, um espectador e
uma boa história e a magia se realiza. Não há um adereço em cena! Recursos
básicos de iluminação e uma trilha sonora discreta complementam a atuação das
atrizes e atores que compõem o homogêneo e talentoso elenco.
Lucas Mayor é o autor
da primeira cena onde um pai é linchado virtualmente por ter deixado a filha
Manu sozinha em um parque enquanto tomava um café. Texto sutil que vai se
construindo aos poucos nas interpretações de Vanessa Bruno (a mãe) e Ernani
Sanchez (o pai).
Na segunda cena,
escrita por Carla Kinzo, uma tímida mulher (Maura Hayas) se candidata a um
emprego onde é submetida a um vexatório procedimento pela contratante (Daniela
Schitini).
A curta terceira cena
é de Claudia Barral e mostra um escritor (Walmir Pavam) que tem o lançamento de
seu livro dependente de seu ex-caso (Pablo Perosa) que o humilha e o abandona.
A quarta e última
cena é assinada por Marcos Gomes que também atua ao lado de Andrea Tedesco. A
cena é impactante é mostra todo o processo de humilhação e vergonha sofrido
pelo grupo com a destruição do espaço Cemitério de Automóveis maquiavelicamente
programada pelo síndico do prédio. Vazamentos de água, de urina e de detritos fecais
estão sendo uma constante na vida do grupo, com danificação de equipamentos,
infiltrações e a triste sensação de que “estão cagando nas nossas cabeças”.
Há uma fala memorável
de Andrea durante a cena onde ela diz mais ou menos o seguinte: “Tanta
humilhação serviu, pelo menos, para que fizemos esta peça”.
Será que um dia este
país vai deixar de ser subdesenvolvido?
Humilhação é um espetáculo
potente e urgente. De uma maneira (especulação imobiliária) ou de outra (quase
um despejo de um inquilino indesejado) nossa cidade vai perdendo seus espaços
culturais como aconteceu recentemente com o Viga Espaço Cênico e agora
com o Cemitério de Automóveis.
A torcida é que, qual
Fênix, eles renasçam em outro lugar.
E VIVA O MÁRIO BORTOLOTTO!!
29/11/2021
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