Existem obras que já nascem clássicas.
Escrevi essa frase ao assistir a Cais ou Da Indiferença das Embarcações
de Kiko Marques em 2012 e não tenho a menor dúvida de repeti-la para este Sueño
de Newton Moreno.
Moreno é autor muito presente nos
palcos paulistanos desde o início do século quando estreou Deus Sabia de
Tudo... em 2001. A partir daí foram mais de 20 textos encenados, entre eles
obras significativas como Agreste (2004), Assombrações do Recife
Velho (2005), Jacinta (2013), Um Berço de Pedra (2016) e As
Cangaceiras (2019), mas nada se compara a Sueño que para mim é uma
obra prima.
Harmonizar Shakespeare e sua peça Sonhos
de Uma Noite de Verão com as ditaduras latino americanas do último quarto
do século 20 para retratar o Brasil de 2021 não é para qualquer um! Esse grande
mérito não é o único: a forma como o encenador Moreno se utilizou para mostrar
o conteúdo da peça do dramaturgo Moreno é também, no mínimo, deslumbrante.
A peça é dividida em dois atos.
O primeiro ato inicia com uma cena
digna de qualquer antologia que se faça sobre dramaturgia que é o diálogo entre
um hilário Shakespeare (Paulo de Pontes) com Vine, um encenador chileno (José
Roberto Jardim) no ano da queda de Allende e início da sangrenta ditadura
chilena (1973). A partir daí mesclam-se cenas da peça de Shakespeare com o
drama do casal revolucionário Laura (Michele Boesche) e Vine que tem que
abandonar o Chile de Pinochet. A mãe de Laura (Denise Weinberg) e um
representante dos torturadores (Leopoldo Pacheco) são figuras importantes desta
parte da trama. Como não poderia deixar de ser, Puck está presente em vários
momentos, na interpretação deliciosa de Simone Evaristo.
O segundo ato se passa vinte anos
depois em 1993 quando Vine/Lisandro retorna ao Chile em busca de sua Laura/Hérmia.
Aqui o tratamento é de melodrama com um desfecho que remete ao destino
inexorável presente nas tragédias gregas e o autor/encenador o faz de modo
brilhante, sem jamais resvalar para a pieguice e, mais importante, mantendo
acesa a chama da reflexão no espectador sobre a situação socio política do
Brasil atual.
Como não se emocionar até as lágrimas
com o diálogo entre Vine e o velho ator que foi preso e torturado durante o
regime militar? O público comunga com o elenco de um minuto de silêncio em
homenagem a tantos mortos e desaparecidos em governos opressores. Estamos ali
unidos lembrando dos mortos não só nas masmorras da ditadura, mas também daqueles
que foram vitimados pela covid 19 por negligência desse vergonhoso desgoverno
brasileiro.
A peça só podia terminar como começou:
o encontro de Shakespeare com o agora envelhecido e desiludido encenador. Aos
poucos a música cessa e as luzes vão se apagando.
O resto é silêncio!
Ao escrever estas linhas eu volto a me emocionar com a pujança e a beleza desse espetáculo.
Literalmente deslumbrado com este magnifico
trabalho, por obra e graça de Dionísio eu o assisti duas vezes em dois dias
seguidos e na segunda noite pude apreciar de perto a performance de Gregory
Slivar. Ele pontua todo o espetáculo com sons, ruídos e músicas, muitas delas
compostas pela imortal Violeta Parra (1917-1967). Admirar a performance de
Slivar é um espetáculo em si.
Seriam muitos os nomes envolvidos com
a encenação de Sueño a serem elogiados aqui, haja vista a excelência da
dezena de profissionais presentes na ficha técnica; sem querer esgotar enumero
alguns deles:
Em primeiríssimo lugar, o elenco!
Denise Weinberg é sempre poderosa quer como Elisabeth I, quer como a tragicômica
mãe de Laura, quer como a patética Titânia. Leopoldo Pacheco tem a difícil
função de humanizar o asqueroso militar torturador e se incumbe também de
Oberon e de um funcionário de uma multinacional. Como já citado, Simone
Evaristo se encarrega de Puck e também de uma feiticeira guerreira das
florestas. Michele Boesche interpreta duas personagens antagônicas com extrema
versatilidade. José Roberto Jardim é o único do elenco que interpreta um único
personagem, ou melhor, dois (Vine e Lisandro) e o faz de maneira brilhante com
sua costumeira elegância corporal, adquirindo neste caso ares de sofisticada
coreografia. E o que dizer de Paulo de Pontes? Suas interpretações de
Shakespeare, do operário minerador, de Píramo e do velho ator são absolutamente
geniais. Existe alguma premiação que contempla coletivamente o elenco? Em caso
positivo, este é o principal candidato. Sem esquecer de incluir a performance
sonora de Gregory Slivar que é parte fundamental da encenação.
Mais elogios para a escolha da ambientação
cênica no jardim do Teatro João Caetano, sob uma árvore ancestral, testemunha,
sabe Deus, de quantos alegres ou tristes acontecimentos e o toque de mestre de
Chris Aizner (cenógrafo) para emoldurar esse cenário natural. Aizner também
assina os sugestivos figurinos junto com Leopoldo Pacheco. À luz natural do fim
da tarde soma-se aos poucos a delicada iluminação de Wagner Pinto. Não há como esquecer
da importante matéria de Ricardo Cardoso contida no programa da peça que muito
auxilia a compreensão das várias camadas que compõem o texto e a encenação de
Newton Moreno.
Esta matéria procura transmitir todas
as sensações positivas e todas as reflexões em torno da temática proposta por
este fundamental espetáculo que provoca perfeito equilíbrio entre coração e
mente do espectador.
São pouquíssimos lugares (pouco mais
de 20) e a peça tem apenas mais sete apresentações até o fim da temporada em
05/12: domingo (28/11) e na próxima semana de terça (30/11) a domingo (05/12).
PROGRAME-SE E CORRA para assistir ao mais importante e belo espetáculo de 2021.
Ingressos gratuitos distribuídos uma hora antes da apresentação.
25/11/2021
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