Em 1965 eu era um jovem e inexperiente
espectador. Já tinha no currículo Paulo Autran, Maria Della Costa e Dina Sfat
em Depois da Queda; algumas montagens do Teatro Popular do SESI e
Pequenos Burgueses com o elenco milionário do Oficina, todos
assistidos em 1964. Espetáculos importantíssimos, mas ainda vistos com certo
olhar amador.
Conhecia Cacilda Becker dos
teleteatros na TV Record, do filme Floradas na Serra (1954) e de
sua fama de grande atriz: dizia-se que talvez fosse a maior atriz brasileira em
atividade nos nossos palcos.
Uma peça com título estranho para a
época estreava no teatro que levava o nome da atriz situado na Avenida
Brigadeiro Luís Antônio: Quem Tem Medo de Virginia Woolf?
O texto do dramaturgo norte americano
Edward Albee colocava em cena dois casais: Nick e Benzinho formavam o casal
mais jovem interpretado por Fulvio Stefanini e Lilian Lemmertz e o casal mais
velho era Jorge (Walmor Chagas) e Marta (Cacilda Becker). Walmor e Fulvio
estavam ótimos, mas Lilian (que interpretou Marta em 1978, substituindo Tônia
Carrero, quando esta brigou com o diretor Antunes Filho e abandonou o
espetáculo) e, principalmente, Cacilda roubavam a cena.
A peça, hoje bastante conhecida, revela
as marcas deixadas pela vida em casal de meia idade e uma de suas cenas capitais
mostra embate furioso entre Marta e Jorge. Assistindo à interpretação visceral
de Cacilda, descobri que para mim o teatro era a arte mais potente para
enfrentar a vida e a partir daí fui lapidando o espectador teatral que sou
hoje. SIM, DEVO ISSO A CACILDA BECKER!
Cacilda com sua pronúncia tão
particular, sua poderosa voz grave e sua respiração ofegante tornou-se para
aquele jovem espectador o paradigma do que uma atriz de teatro devia ser. Presenciei outras grandes atrizes no palco
como sua irmã Cleyde Yáconis, Marília Pêra, Glauce Rocha, Laura Cardoso e
tantas outras e Cacilda com apenas três peças a que assisti com ela, ficará
para sempre junto às outras no Olimpo do teatro brasileiro. Some-se a isso a
militância da cidadã Cacilda que lutou contra a censura estabelecida pela
censura da ditadura e enfrentou os poderosos para tentar tirar artistas das
garras dos torturadores; sua presença frente à Comissão Estadual de Teatro (CET)
foi de forte impacto positivo para o teatro paulista.
A segunda peça a que assisti com
Cacilda foi Isso Devia Ser Proibido (1967), uma brincadeira de
metateatro escrita por Braulio Pedroso e Walmor Chagas para driblar a ferrenha
censura da época; uma espécie de respiro entre dois trabalhos de grande
envergadura da companhia: Virginia Woolf (1965) e Esperando Godot
(1969). Uma equipe de grande talento assinava a montagem: Gianni Ratto
(direção), Ciro Del Nero (cenário), Alceu Penna (figurinos), Julio Medaglia
(música), Marilena Ansaldi (coreografia) e na interpretação Cacilda e Walmor. Com
todo esse potencial a montagem não teve grande acolhida nem da crítica, nem do
público. Da minha parte, lembro vagamente de Cacilda (de cabelos curtos) e
Walmor no palco representando, de alguma maneira, eles mesmos, mas a peça não
me marcou.
E em abril de 1969, chegou o dia de
esperar Godot. Estreava no Teatro Cacilda Becker a visão de Flávio
Rangel da peça de Samuel Beckett.
Assisti
a Esperando Godot (*) em uma quinta-feira, feriado de primeiro de maio.
Cacilda Becker ainda representou Estragon naquele fim de semana. Na terça feira
seguinte, dia 6 de maio, durante uma apresentação para estudantes, sentiu-se
mal no intervalo, sofreu um aneurisma cerebral e nunca mais retornou aos
palcos. Seu falecimento ocorreu em um sábado, 14 de junho de 1969, dia de luto
para o teatro brasileiro. Naquele feriado eu deveria ir à praia e, caso isso
tivesse ocorrido, teria perdido o espetáculo. Foram poucas as peças a que assisti
com ela, porém foram experiências inesquecíveis. Jamais me perdoaria se tivesse
trocado por um banho de mar a última chance de ver Cacilda.
No capítulo dedicado a Cacilda Becker, apresentado em 19 de outubro de 1981 na série concebida por Julio Lerner para a TV Cultura A Aventura do Teatro Paulista, Walmor Chagas fez um emocionante relato sobre o último espetáculo em que os dois atuaram. Na ocasião tomei nota do que ele afirmou:
Era uma sessão
vespertina para estudantes. Cacilda sempre tomava Cafiaspirina antes de ir para
o teatro. Ao final do primeiro ato me pediu um café. Tomou e fumou um cigarro.
Após o primeiro sinal para o início do segundo ato comentou que estava com dor
de cabeça e queria outra Cafiaspirina. Pediu outro café e sentou-se. Segundo
sinal. “Não estou bem” disse Cacilda. A xícara de café caiu de suas mãos.
“Walmor, acho que vou ter um derrame”. Ela quis levantar. “Não estou
conseguindo”. Suas mãos baquearam. “Não sei o que estou sentindo!”. Foram suas
últimas palavras. Solicitamos se havia algum médico na plateia. O Líbero
(Rípoli Filho) pegou Cacilda no colo e, atravessando a plateia já evacuada,
levou-a até a ambulância. Seus dedos foram tocando a primeira poltrona de cada
fileira. Ao chegar ao hospital, Cacilda tentou levantar da cama e, não
conseguindo, caiu no chão e sangrou a boca com o tombo. Socorrida, nunca mais
reagiu nem disse mais nada. Foi operada duas ou três horas depois. Após 39 dias
em coma e cercada de pessoas queridas, faleceu na manhã de um sábado, dia 14 de
junho de 1969.
A Companhia de Cacilda Becker locava o teatro pertencente à Federação Paulista de Futebol, localizado na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 917, ao lado do atual Teatro Bibi Ferreira. Pequeno, agradável e acolhedor, o espaço foi testemunha de boa parte dos trabalhos que Cacilda realizou após sair do elenco do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e também do último ato da atriz. Por isso tudo, se este país tivesse memória e respeito por seus artistas, esse espaço ainda deveria levar o nome de Cacilda. Hoje, fechado para o público, é auditório da Faculdade Ibero Americana.
Este foi meu primeiro contato com a encenação de um texto de Samuel Beckett e o impacto foi muito grande. A peça tem uma estrutura circular e a noção de tempo é eliminada. Junto a uma árvore seca, os vagabundos Vladimir e Estragon discorrem sobre o nada enquanto esperam pela chegada sempre anunciada, mas nunca concretizada, de Godot. Seus caminhos são atravessados pelas figuras bizarras de Pozzo e seu criado Lucky e também por um menino, suposto representante de Godot que vem anunciar que naquele dia Godot não virá, mas que deverá aparecer no dia seguinte sem falta... São dois atos muito parecidos, onde a ação dramática é quase eliminada. No entanto, a perplexidade e a comoção estão presentes durante todo o tempo do espetáculo. Lembro-me bem da direção enxuta de Flávio Rangel, do cenário árido de Cyro Del Nero e das interpretações de todo o elenco, com destaque para o Lucky de Carlos Silveira, um ator sensível e com um enorme potencial, que, no entanto, abandonou o teatro e fez carreira como dublador. O seu longo monólogo permeado de fatos absurdos e desconexos era um dos grandes momentos do espetáculo.
Sentei-me em uma das primeiras
fileiras do teatro, e a cena - eternizada pela câmera de Cristiano Mascaro,
onde ela tenta tirar a bota apertada, era representada a poucos metros da minha
poltrona. Havia tal humanidade nas expressões de Cacilda/Estragon, o seu
sofrimento perante o vazio da existência era tão dilacerante, que não havia
como não se emocionar e compartilhar aquele momento de tamanha grandeza. Lendo
sobre o caráter passional de Cacilda e pelo momento que passava em sua vida
pessoal, fica difícil distinguir a atriz da personagem.
Para sempre ficará em minha memória a patética cena do final de cada ato:
ESTRAGON: Então vamos?
VLADIMIR: Reerga as calças.
ESTRAGON: O quê?
VLADIMIR: Reerga as calças.
ESTRAGON: Para eu erguer as calças?
VLADIMIR: Reerguer as calças.
(Estragon reergue as calças. Silêncio)
VLADIMIR: Então, vamos?
ESTRAGON: Vamos.
(Eles não se movem)
CAI O PANO
“Vamos.” Foi a última palavra de Cacilda
Becker em um palco. E assim, ela deve ter ido ao encontro de Godot e dos
chamados deuses do teatro, pois, se o teatro era a sua vida, foi também a sua
morte.
Neste 06 de abril de 2021 Cacilda
estaria completando um centenário. Dificilmente ela estaria viva hoje, mas
podia ter sido poupada por mais algum tempo e não ter sua vida ceifada com
apenas 48 anos. Tenho certeza que, se assim fosse, Walmor, Cleyde, Cuca, Clara, a classe teatral, o público e, com certeza, todo o teatro brasileiro, teriam sido muito mais felizes.
VIVA CACILDA BECKER!
VIVA O TEATRO!
(*) O relato referente ao
espetáculo Esperando Godot, faz parte do meu livro O Palco Paulistano
de Golpe a Golpe (1964-2016).
06/04/2021
Viva CAcilda!
ResponderExcluirNão tive, como você, a chance de assistir Cacilda. Quando ela faleceu eu tinha apenas cinco anos. E o engraçado é que, muito provavelmente pela diversidade e riqueza de informações recebidas posteriormente, parece que me lembro desse dia. Eu a imagino como uma grande deusa do teatro. Li vários recortes e depoimentos sobre sua vida, assim como sua biografia e, mesmo não a conhecendo e nem pessoalmente ao seu trabalho, ela só fez aumentar a minha paixão pelas artes cênicas e o desejo de ser ume espectador mais apurado. Hoje atuo como produtor local e jornalista cultural em Uberlândia (MG) e posso afirmar com certeza que as informações que obtive sobre Cacilda sedimentaram um pouco dessa caminhada. E achei linda a sugestão de desfecho para um possível filme sobre a artista. Carlos Guimarães
ResponderExcluirBelíssimo texto e homenagem a grande Cacilda. Parabéns ����
ResponderExcluirBelíssimo texto e homenagem a grande Cacilda. Parabéns 👏👏👏👏
ResponderExcluirQue lindo relato!!!
ResponderExcluirParabens. O teatro, eata arte efemera, está aqui muito bem homenageado com um espectador atendo e sensivel como voce. Eu, como atriz que sou, só tenho um gesto para voce: aplausos!!!
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