quarta-feira, 30 de março de 2016

AMBIENTE DE FESTIVAL

        
      Cheguei em Curitiba na segunda feira em plena efervescência do Festival. Abri com chave de ouro a estada assistindo ao espetáculo A Cidade Sem Mar dirigido pelas “meninas” da Companhia Brasileira de Teatro Giovana Soar e Nadja Naira com textos do escritor Manoel Carlos Karam (1947-2007) que apesar de nascido em Santa Catarina pode ser considerado um artista curitibano, pois soube como poucos retratar de forma irreverente a cidade que escolheu para viver. A montagem, também irreverente e muito criativa faz parte da Mostra Curitiba idealizada por Nena Inoue que é auxiliada na curadoria por Gabriel Machado. A mostra contempla autores e companhias curitibanas e é uma das principais atrações do festival. Esse evento que devo acompanhar na íntegra deverá fazer parte de matéria específica.
        Como toda cidade grande, Curitiba aprendeu a ser perigosa, mas nada tira o brilho do Festival que está muito bem organizado e com as ruas cheias de pessoal que faz e/ou ama teatro sempre discutindo e comentando sobre esta ou aquela peça. A cidade respira teatro.
        Os encontros dos artistas com a imprensa estão sendo feitos no Solar do Rosário num ambiente extremamente aconchegante permitindo contato bastante próximo e individual entre entrevistadores e entrevistados. Artistas que já entrevistei e seus respectivos espetáculos: Marcos Damasceno, Rosana Stavis e Paulo Alves (Artista de Fuga); Álamo Facó (Mamãe); Paulo Chierentini (Lugar de Ser Inútil); Gabriel Machado (Curitiba Mostra); Silvia Monteiro (Paranã) e Ana Rosa Tezza (Nuon).
        Espetáculos vistos nos dois primeiros dias: Cidade Sem Mar (Curitiba), Encontro das Águas (Rio de Janeiro) e Mamãe (Rio de Janeiro).
        Hoje é dia de assistir a Nuon (Curitiba) no Ave Lola Espaço de Criação. Após o espetáculo farei uma mini palestra apresentando as ideias contidas no meu livro O Teatro Paulistano de 1964 a 2014 – Memórias de Um Espectador.
        Tenho programado alguns espetáculos da Mostra Oficial (curadoria de Guilherme Weber e Marcio Abreu), mas meu foco nesta edição do Festival de Curitiba são as companhias locais e os espetáculos do Fringe (sem curadoria).
        Primeiro balanço de um evento que é a festa de teatro prometida! Obrigado Leandro Knopfholz e companhia.


30/03/2016

terça-feira, 22 de março de 2016

BLANCHE


MAIS UMA DO MESTRE ANTUNES



        Antunes Filho volta a surpreender a começar pela escolha de um homem para interpretar uma das personagens femininas mais importantes e icônicas da dramaturgia mundial. Ela surgiu em 1947 no teatro norte americano pelas mãos de Jessica Tandy e foi imortalizada no cinema por Vivien Leigh(1951). No Brasil Blanche Dubois já foi vivida por Henriette Morineau (1950), Maria Fernanda (1965), Eva Wilma (1974), Tereza Rachel (1986), Leona Cavalli (2002) e Maria Luisa Mendonça (2015); agora é a vez de Marcos de Andrade trazer à luz a frágil e sofrida personagem.
        Retomando e radicalizando a estética de A Falecida Vapt Vupt encenada em 2009 o encenador volta a apresentar um espetáculo no Espaço CPT iluminado apenas com as lâmpadas do local, sem uso de refletores e com reduzidos objetos de cena. O único recurso extra-interpretação usado é a inserção de algumas músicas para ilustrar a ação (trilha sonora selecionada por Raul Teixeira). A casa da irmã Stella não tem portas (as cortinas do espaço servem como tal); a campainha é ouvida pelo som emitido por  quem a toca; os atores mimicam o comer, o beber e o lavar a louça. Tudo se passa como se fosse um ensaio... mas não é um ensaio! Coisas do Mestre Antunes que como sempre resultam em algo inovador e surpreendente.
        Falado em fonemol (qual seria a diferença com gromelô?) a ação torna-se totalmente compreensível para quem conhece a peça de Tennessee Williams uma vez que esta é seguida quase à risca. Para facilitar o acompanhamento da trama é fornecido ao público um roteiro com a sinopse da mesma cena por cena.
        Há a clara intenção de denunciar a violência física e moral com mulheres e travestis e isso é evidenciado com a ênfase na cena do estupro muito bem estilizada pelo diretor.
        Com tal radicalismo na encenação a peça exige muito dos atores que são praticamente o único recurso cênico da mesma. Marcos de Andrade compõe uma Blanche perfeita; sem afetações e maneirismos inúteis ele comunica ao público a graça e a fragilidade da personagem emocionando na medida certa. Outro bom destaque é Alexandre Ferreira com seu patético Mitch. Andressa Cabral se sai bem como Stella, mas falta a Felipe Hofstatter a brutalidade exigida para interpretar Stanley Kowalsky, coisa que fica mais patente com o figurino “arrumadinho” usado por ele (fica difícil acreditar que Stanley use aquele robe de chambre). O restante do elenco cumpre o seu papel.
        Volto a repetir que a interpretação de Marcos de Andrade é tão perfeita que após o estranhamento inicial, esquecemos que estamos diante de um homem travestido, mas sim perante uma frágil senhorita perdida, à procura de um bonde chamado desejo.

        BLANCHE está em cartaz no Espaço CPT do Sesc Consolação de quarta a sexta às 20h e aos sábados às 17h até 30 de abril.


22/03/2016

sábado, 19 de março de 2016

GILBERTO GIL, AQUELE ABRAÇO – O MUSICAL




OITO HOMENS NOTÁVEIS

Eu, tu e todos no mundo
No fundo, tememos por nosso futuro
ET e todos os santos, valei-nos
Livrai-nos desse tempo escuro
(Extra – Gilberto Gil)

        Vivemos dias tensos. Um país à beira do precipício e uma avalanche de ódio e intolerância de todos os lados. Esta sexta feira (18/03/2016) foi um dia pesado com a perspectiva de confrontos na Avenida Paulista durante a manifestação que iria acontecer à tarde. Foi com certa apreensão que sai de casa para me dirigir ao Teatro Procópio Ferreira, uma vez que desceria do metrô na Estação Consolação, em pleno olho do furacão. Na falta de ônibus desci a Augusta a pé sendo presenteado com uma enxaqueca durante o trajeto. Foi nessas condições que me sentei nas desconfortáveis poltronas daquele teatro para assistir ao espetáculo.
        Fazia muito tempo que não levava tamanho banho de alegria, energia e esperança. Oito atores /cantores/instrumentistas nos brindam com canções de Gilberto Gil dramaturgicamente bem amarradas por Gustavo Gasparani que também dirige a montagem. Os oito artistas fazem tudo muitíssimo bem: cantam, movimentam-se no palco, tocam vários instrumentos e interpretam os versos e canções com humor ou dramaticamente. Impossível não se apaixonar e se envolver com tanto talento. Impossível também destacar este ou aquele nome porque todos são excelentes.
        Gasparani encontrou ótimas soluções cênicas para ilustrar as canções de Gil, como aquelas de Se Eu Quiser Falar com Deus e de Refavela, para citar apenas duas. Muitas canções são apenas citadas e outras são cantadas integralmente em um belo trabalho do diretor musical Nando Duarte. Nota dez também para as belas coreografias de Renato Vieira. O cenário de Helio Eichbauer e os figurinos de Marcelo Olinto completam este bem sucedido musical que não é uma biografia de Gil, mas um grato exemplo de musical que ilustra a obra desse grande artista, fugindo da já desgastada fórmula do musical biográfico.
        Durante o espetáculo me emocionei até as lágrimas durante vários momentos, relembrando de uma época em que a música brasileira era tão criativa; mas com a força daqueles oito homens notáveis ao reviver esse passado vislumbrei uma esperança no futuro saindo do teatro cheio de energia e acreditando que a arte, a cultura e a educação ainda podem fazer muito por este Brasil tão desesperançado.

        Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
         Transformai as velhas formas do viver
         Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
        Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
                                       (Tempo Rei)

        Assistindo ao espetáculo fica claro o porquê de Gasparani ter batizado seu trabalho com o belo subtítulo de O Poeta, a Canção e o Tempo.
        Tomei o ônibus para subir a Augusta até a Paulista de maneira bem diferente: cheio de energia e esperança. Na Paulista ainda havia alguns jovens também esperançosos que vieram defender seus ideais. Este Brasil ainda vai dar certo!
        Ao chegar em casa fui direto para os discos do Gil e os ouço até agora.

         Veio gente me aplaudir, veio gente vaiar
         Veio gente dormir nas cadeiras
         Veio gente admirar meu talento
         Veio gente adivinhar meu tormento
         Veio gente me xingar, veio gente me amar
         Veio gente disposta a se matar por mim
                                                                  (Febril)


GILBERTO GIL, AQUELE ABRAÇO – O MUSICAL está em cartaz no Teatro Procópio Ferreira às quintas e sextas (21h), sábados (18h e 21h30) e domingos (18h) até 29 de maio. ABSOLUTAMENTE IMPERDÍVEL!

sexta-feira, 18 de março de 2016

SOBRE RATOS E HOMENS


        No ano de 1956 eu tinha apenas 12 anos e ainda não ia ao teatro, mas adorava assistir aos teleteatros na recém-inaugurada televisão. Era prática comum naquela época que os espetáculos teatrais que saiam de cartaz no domingo fossem apresentados, na íntegra, na segunda feira no Grande Teatro Tupi. Foi ali que este menino assistiu a Ratos e Homens na montagem de Augusto Boal que a pouco deixara o Teatro de Arena. O curioso é que passados sessenta anos eu ainda me lembrava da trama e da atuação de quem representava o patético Lennie. Era um ator grandalhão que mais tarde descobri que se chamava José Serber e que parece não ter feito mais nada no teatro. Lembro-me de sua voz grossa e arrastada chamando pelo George, seu único esteio na vida e também na morte! Mais curioso ainda que não me lembre de Gianfrancesco Guarnieri interpretando o George. Anos mais tarde consegui incorporar ao meu acervo o programa da montagem do Arena, cuja ficha técnica reproduzo abaixo.


        Agora batizada como o original de Sobre Ratos e Homens (Of Mice and Men) a obra de John Steinbeck volta a ser encenada. A montagem é muito bem produzida e tem a marca da delicadeza própria do diretor Kiko Marques. O cenário de Márcio Vinicius reproduz em detalhes o estábulo da fazenda onde vivem nossos pobres heróis e a iluminação de Guilherme Bonfanti é belíssima mudando sua coloração em função do momento dramático. Cabe notar também os adequados figurinos de Fabio Namatame. A montagem tem caráter cinematográfico e não apresenta pontos mortos. Digna de nota a dinâmica cena onde George e Lennie circulam pelos alçapões que separam os beliches.
        O veterano Luiz Serra tem boa atuação e é responsável pelos momentos descontraídos do espetáculo. Ricardo Monastero, também idealizador do projeto, encarrega-se com vigor da personagem de George. Gustavo Vaz, Luciano Schwab e Tom Nunes cumprem a contento seus papéis (trabalhadores na fazenda). Cássio Inácio (Curley, o filho do patrão) e Natallia Rodrigues (Mae, sua mulher) pareciam indecisos na noite de estreia e suas entradas em cena me soaram demasiadamente artificiais. E por último Ando Camargo: seu Lennie é comovedor e o ator soube emprestar sua sensibilidade na criação de tão importante e bela personagem da dramaturgia mundial.
        A montagem de Kiko Marques prova que o texto é um clássico e como tal permanecerá atual enquanto houver solidariedade nestas terras cada vez mais de ninguém.
        SOBRE RATOS E HOMENS está em cartaz no Sesc Bom Retiro de quinta a sábado às 21h e aos domingos às 18h. SÓ ATÈ 17 de abril.

18/03/2016
       
       


quinta-feira, 17 de março de 2016

O MUSICAL MAMONAS



A IRREVERÊNCIA DOS MAMONAS ASSASSINAS COM O TOQUE DE CLASSE DE JOSÉ POSSI NETO

        Quando os Mamonas Assassinas estouraram em 1995 eu já era cinquentão e confesso que fui um pouco avesso à música daqueles garotos que ao meu entender (na época) vinham contribuir para a deteriorização que a música brasileira vinha sofrendo desde o início da década. Puro preconceito e falta de humor. Quando esses meninos sofreram o terrível acidente que acabou com suas vidas o Brasil parou e chorou. Sensibilizado com o fato resolvi ouvir com maior atenção aquele único disco e surpreendi-me com o besteirol que eu tanto admirava no teatro agora na forma de música. Tarde demais para pedir “Quero mais”.

Os originais

        Exatas duas décadas depois do acidente de 1996 eis que o pedido que não pude fazer na época é, de alguma forma, atendido. Os Mamonas estão de volta!

O elenco

         José Possi Neto muniu-se de uma equipe de ouro para realizar este delicioso e divertido espetáculo baseado na curta existência do grupo: do texto enxuto de Walter Daguerre que parte de uma interessante premissa “celestial”, às mais que competentes e criativas coreografias de Vanessa Guillen e também aos figurinos de Fábio Namatame, recriados a partir dos modelos originais. Tudo funciona banhado pela iluminação de Wagner Freire. Possi orquestra todos esses elementos e um elenco afinadíssimo de jovens atores que canta e dança muito bem. Em elenco tão homogêneo fica difícil fazer destaques; porém é impossível não citar o desempenho de Ruy Brissac como Dinho; de Patrick Amstaldem, hilário em todas as personagens que desempenha e de Bernardo Berro, mais parecido com o Jô Soares do que o próprio Jô Soares!!
        Por último, mas não menos importante, noto a parte musical dirigida por Miguel Briamonte e muito bem executada por uma banda que, por opção da direção, não aparece em cena, uma vez que os atores estilizam o uso dos instrumentos.
        O MUSICAL MAMONAS é diversão pura para quem curtiu e também para quem não curtiu a banda original e destaca-se, por sua criatividade, dos mornos musicais biográficos que têm grassado em nossos palcos.
        AH! O programa da peça é lindo e inclui um DVD com o making of da montagem.
        Em cartaz no Teatro Raul Cortez às quintas e sábados (21h), sextas (21h30) e domingos (19h). Até 29 de maio.

17/03/2016




domingo, 13 de março de 2016

3ª MITsp 2016 - (MEU) BALANÇO


        Neste domingo, 13 de março, chegou ao fim mais uma bem sucedida edição do evento idealizado e realizado com tanta garra por Antonio Araújo e Guilherme Marques. Foram onze dias muito bem preenchidos por espetáculos e por atividades paralelas.
          Comento abaixo os oito espetáculos internacionais a que assisti na ordem da importância para mim. Deixei de ver as duas peças nacionais pelo fato que entrarão em cartaz na cidade nos próximos dias.


           ÇA IRA (França)– O grande momento da MITsp 2016. Numa só palavra: superlativo. Escrevi matéria a respeito neste blog. Só por ele se justificaria o evento.


     AN OLD MONK (Bélgica) – Uma gratíssima surpresa. Começa cenograficamente feio (propositalmente, segundo o diretor) e termina com desnecessária projeção de slides após cena que seria belíssimo e catártico final, mas em compensação, que recheio!! Um velho ator conta a saga de uma vida ao som de inspiradíssima música a partir da obra de Thelonius Monk. Comovente e humano na medida certa.


        STILL LIFE (Grécia) – Espetáculo a ser contemplado com vagar, da mesma maneira como se explora um quadro. Visualmente perturbador e belo, apesar de alguns tempos mortos e exaustivos, como aquele em que os atores retiram “esparadrapo” do chão do palco por quase dez minutos.


        CINDERELA (Bélgica/França) – Outro belo trabalho do encenador Joël Pommerat (ele também é o diretor de Ça Ira). Foi o espetáculo de abertura da mostra e alvo de matéria neste blog.


        (A)POLÔNIA (Polônia) - Esperava muito desta encenação do polonês Krzystof Warlikowski, mas ela me decepcionou. Poluída tanto visual (vídeos, movimento simultâneo de atores e objetos em vários pontos do palco) como dramaturgicamente (pastiche de tragédias gregas com vários outros textos), torna-se cansativa em suas quatro horas de duração.
        A CARGA (Congo) - Teatro dança narrado em bom português pelo coreógrafo Faustin Linyekula. Falando da memória incorporada em seu corpo ele traduz a mesma através de gestual bastante próprio.
         100% SÃO PAULO (Alemanha/Brasil) - Ideia bastante criativa de tentar reproduzir no palco aquilo que mostram as estatísticas que resulta, porém, em espetáculo monótono e repetitivo depois da primeira meia hora.
        REVOLTING MUSIC (África do Sul) - Não se trata de teatro musical, mas de show do cantor Neo Muyanga cujo único vínculo com teatro é a temática comum a todas as músicas (canções de protesto que libertaram a África do Sul).

        Quanto às atividades paralelas tive oportunidade de presenciar as falas de Joël Pommerat e Josse de Pauw dentro do bloco Pensamento em Processo e as três mesas de discussão no bloco Reflexões Estético-Políticas.


         Não tive a oportunidade de comparecer ao Cabaré que parece ter sido ótimo ponto de encontro e de diálogo entre os amantes do teatro.
        Foi uma MIT de poucos, mas ótimos espetáculos, além dos importantes eixos reflexivo e pedagógico, o que reforça a sua importância e a extrema necessidade de sua continuidade. Que venha a 4ª MITsp em 2017!
        Mais uma vez parabéns Antonio Araújo, Guilherme Marques e equipe.

13/03/2016
       

                                                                            

terça-feira, 8 de março de 2016

ÇA IRA


SERIA CURIOSO, SE NÃO FOSSE TÃO SÉRIO!


        Ao se assistir a este espetáculo tem-se a impressão que ele foi criado a partir de uma encomenda dos organizadores da MITsp com o intuito de mostrar o Brasil de hoje: a situação econômica crítica; as falcatruas e incompetências dos que estão no poder; idem, idem, daqueles que querem tomá-lo; o radicalismo e o ódio crescente entre posições políticas diferentes e até mesmo dentro do mesmo partido, haja vista as brigas dentro da Assembleia Nacional. Não chegamos ao caos da Paris de 1789, mas estamos à beira do precipício. Essa constatação é assustadora, mas vamos ao espetáculo da Compagnie Louis Brouillard dirigido por Joël Pommerat que é um dos grandes momentos de minha jornada de mais de meio século como espectador de teatro.
        O texto inspira-se na revolução francesa, mas se passa na contemporaneidade. Realizada em processo colaborativo entre encenador e elenco a escritura é tão bem construída e isenta de maniqueísmo que o público é surpreendido ora concordando com os argumentos de uma personagem para, a seguir, concordar com aqueles de seu antagonista. Assim, ali mesmo, durante o embate, o espectador tem que refletir e tomar partido de que lado está. Dialética em estado puro. Quando toma partido o texto torna-se irônico e engraçado como na cena em que a deputada contra revolucionária recebe banhos de água e de creme enquanto faz seu ridículo discurso na Assembleia Nacional.


        A encenação, na sua aparente simplicidade, é arrebatadora. Boa parte da ação se passa na plateia e o público sente-se envolvido nas inflamadas discussões tendo a vontade de participar das mesmas. No palco os adereços de cena são mínimos, ao contrário de Cinderela, do mesmo diretor também apresentada nesta mostra, que prima pela sofisticação tanto no cenário como na iluminação.
        Trata-se de espetáculo onde o verbo é essencial e a compreensão das palavras, fundamental. Atores excelentes na postura cênica e na dicção dão plena conta de realizar a tarefa de tornar compreensível texto de tal complexidade. As discussões ocorrem em ritmo vertiginoso e louve-se o trabalho do operador de legendas que conseguiu acompanhar quase na totalidade a velocidade do texto dito pelos atores.
        Ça Ira (Agora a coisa vai, numa tradução livre) dura 4h20 e somando-se os intervalos nos faz permanecer no teatro por mais de cinco horas, fato irrelevante perante a grandiosidade e a importância do espetáculo. A cena final com os revolucionários tomando posse da mesa de bilhar do rei é um achado dramatúrgico de mestre.
        Muito já se escreveu sobre a revolução francesa. No teatro, desde os fundamentais 1789 criado por Ariane Mnouchkine para o Théâtre du Soleil e Marat-Sade de Peter Weiss na encenação de Peter Brook (que no Brasil teve uma histórica montagem de Ademar Guerra em 1967), passando pela ópera Ça Ira de Roger Waters, até o edulcorado musical Les Misérables de Alain Boubill e Claude-Michel Schönberg, mesmos autores da anterior (e superior) ópera rock La Révolution Française. No meu modo de ver, entre os espetáculos a que tive a oportunidade de assistir, a encenação de Pommerat junto com 1789 e Marat-Sade é o que melhor se criou em teatro sobre esse momento tão importante para a história da humanidade.
        ÇA IRA integrou a programação da 3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) de 2016.
        QUEM VIU, VIU. QUEM NÃO VIU, NÃO VERÁ JAMAIS!

08/03/2016
       








         

sexta-feira, 4 de março de 2016

MITsp 2016 – ABERTURA e CINDERELA


       Ontem, dia 03 de março, aconteceu a abertura da 3ª MITsp. Na cerimônia de abertura apresentada por uma simpática e descontraída Roberta Estrela Dalva houve os discursos de praxe: Guilherme Marques falou em nome da organização do evento e representantes dos patrocinadores também se manifestaram. Roberta não deixou de comentar sobre os perigos que correm os espaços teatrais em função da especulação imobiliária dando um sutil “puxãozinho de orelha” nas autoridades presentes. Comentou também a importância da MITsp para a cidade, solicitando o empenho de todos para a realização da 4ª MITsp em 2017.


        O espetáculo de abertura foi o instigante CINDERELA do encenador Joël Pommerat com a Compagnie Louis Brouillard. A peça é uma releitura radical da história de Cinderela. Traumas infantis relativos à perda das mães rondam a jovem Sandra e o príncipe, que de encantado não tem nada. A figura autoritária da madrasta é apresentada de formas patética e ridícula, como ridículos são todos os prepotentes e donos do poder.
        Em um palco vazio poucos adereços ilustram a vida daqueles seres, cada um a seu modo, solitários e tristes: Sandra, seu pai, a madrasta, suas filhas e o príncipe. O espaço é preenchido por belas projeções de imagens. A iluminação é sóbria e a maioria da ação acontece quase na penumbra.
        A história é narrada por uma voz também muito triste que não tem certeza se aquilo aconteceu exatamente daquele jeito, assim como, revela que parecem ter sido as imaginações de Sandra e do príncipe que conduziram suas vidas. Tudo é tão relativo, parece ser a conclusão que a peça nos oferece.
        Interpretações na medida certa e bastante contidas dão um ar frio à montagem o que parece ter provocado os aplausos também contidos da plateia. O espetáculo merecia aplausos mais vigorosos.
        Um senão: não me parece que esse espetáculo atraia menores de 16 anos, apesar dele se classificar como infanto—juvenil.
        VIVA a MITsp que está apenas começando!


04/03/2016

quinta-feira, 3 de março de 2016

URINAL NO TEATRO PORTO SEGURO e a volta de NOSSA CLASSE



   
         Ontem fui rever Urinal.  O musical estreou em abril de 2015 na sede do Núcleo Experimental, lotou seu pequeno teatro de 50 lugares durante todo o ano de 2015 e devido ao grande e merecido sucesso transferiu-se para o imenso palco do Teatro Porto Seguro que dispõe de 508 poltronas. Esse tipo de mudança tem seus prós e seus contras. Se por um lado perde em proximidade e mesmo intimidade com a plateia, ganha em visibilidade tanto para o grupo como para a peça, além do maior retorno financeiro. Sobre essa questão reproduzo parte da matéria que escrevi em 07/04/2015, ocasião da estreia da peça:

         “Com o bizarro título de Urinetown, the Musical este musical de Mark Hollmann e Greg Kotis estreou num pequeno teatro de Nova York em 2001 e devido ao sucesso alcançado passou a ocupar maiores teatros na Broadway terminando por abocanhar três prêmios Tony, o maior laurel concedido pelo teatro americano; fato bastante semelhante ocorreu anteriormente com Hair (1967) e Rent (1996) naquela mesma cidade. Aqui em São Paulo o ator Altair Lima comprou os direitos de Hair e estreou a peça no antigo Teatro Bela Vista (onde hoje se localiza o Teatro Sérgio Cardoso), o sucesso foi tamanho que com a bilheteria arrecadada Altair Lima comprou e reformou um amplo teatro que batizou de Aquarius em homenagem ao espetáculo, tornando-se um mega empresário teatral.
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         Desejo um sucesso enorme a Urinal, porém não veria com bons olhos a sua transferência para o Teatro Renault! Também espero que se reconheça cada vez mais o talento de Zé Henrique de Paula e que ele continue a ser o criativo encenador que já realizou tantos excelentes espetáculos sempre atento ao binômio: conteúdo sociopolítico e entretenimento. Tenho certeza que não faz parte dos seus planos tornar-se um mega empresário teatral!”

         Diante do sucesso a transferência para um teatro maior era inevitável, porém, tudo permanece fiel à proposta original e isso é mais um fato que prova ser o Núcleo Experimental um dos mais sérios, responsáveis e talentosos grupos da cidade de São Paulo.
         Com poucas alterações no elenco -onde todos estão ótimos- nota-se um grande amadurecimento nas interpretações de Caio Salay e Bruna Guerin (muito mais engraçada do que nas outras vezes em que assisti).
         Com apenas sonorização de palco (belo trabalho de Raul Teixeira e João Henrique Baracho) e sem microfones individuais a montagem ganha em espontaneidade, mas perde na compreensão do que é dito e cantado.  
         O cenário de Zé Henrique de Paula ampliado para as dimensões do palco do Porto Seguro continua a manter o clima dos becos daquela cidade onde se passa a ação da peça.
         Agora no fosso do palco, a orquestra não é mais visível e sente-se falta de ver os braços de Fernanda Maia agitando-se na regência das canções.
         Tudo isso para concluir que Urinal saiu-se muito bem na transferência de um pequeno para um grande espaço.
         URINAL está em cartaz no Teatro Porto Seguro às quartas e quintas às 21h. QUEM AINDA NÃO VIU NÂO PODE PERDER! ESTE NÃO É UM MUSICAL COMO QUALQUER OUTRO!


         EM TEMPO: NOSSA CLASSE, belíssimo espetáculo do Núcleo Experimental de 2013, tem bem vinda reestreia em 04/03 na sede do grupo, com sessões às sextas e sábados às 21h e domingos às 19h até 01/05. Sob o título “Crepúsculo de tantas vidas” escrevi matéria sobre a peça que pode ser acessada no link abaixo:

VIVA O BOM TEATRO!

03/03/2016


terça-feira, 1 de março de 2016

FEVEREIRO TEATRAL 2016 e ESCLARECIMENTO DE UMA POSIÇÃO



EU TENHO TUDO

CARANGUEJO OVERDRIVE


        No ano passado ao programar a data da cirurgia da vesícula escolhi o mês de janeiro porque sempre foi o mês mais tranquilo em relação às atividades teatrais. Ledo engano! Neste janeiro de 2016 estiveram em cartaz, entre estreias e reestreias, mais de 100 espetáculos, sendo que nada menos de 71 eram de dramaturgos brasileiros. Sendo assim, comecei o mês de fevereiro com um déficit razoável e para compensar assisti a 22 espetáculos nos 29 dias que me foram dados para viver neste ano bissexto.
        Confesso que muitos espetáculos não me disseram muito e outros até me decepcionaram, houve aqueles de interpretações excepcionais como os monólogos de Denise Weinberg (O Testamento de Maria) e Luciano Chirolli (Memórias de Adriano) ou de divertimento inteligente/irreverente (Volpone) e ainda aqueles que realmente me surpreenderam e me tiraram do chão justificando a minha paixão pelo teatro e a crença que vale a pena ser espectador, são eles: Caranguejo Overdrive e Eu Tenho Tudo (excepcional interpretação de Pedro Vieira) . Todos esses títulos foram alvo de matéria deste blog, além de, Los Lobos Bobos,  Amarelo Distante e Dadesordemquenãoandasó. Não tive oportunidade de escrever sobre Teorema XXI e Pessoas Sublimes, dois trabalhos sérios e dignos de atenção.
        Muita gente comenta que só falo do bem dos espetáculos que comento em meu blog. A questão é outra: só escrevo sobre os espetáculos dos quais eu gosto. Quando o blog foi criado, tive e continuo tendo a intenção de escrever sobre os trabalhos que me tocam de maneira positiva e que gostaria de compartilhar com meus parceiros. Não tenho a intenção de falar mal daqueles espetáculos que me desagradam nem tampouco sobre os que nada me dizem. Cabe lembrar que a maioria dos projetos teatrais é feita com muito suor e lágrimas e merece todo o respeito; se, no meu modo de ver, o resultado não é satisfatório não me interessa publicar uma crítica negativa (deixo isso reservado para meus escritos pessoais) e muito menos sugerir que as pessoas evitem assisti-lo. Mais que tudo, respeito o esforço profissional de quem faz teatro, excluindo desse contexto aqueles espetáculos caça niqueis com títulos esdrúxulos que contam com enorme público, independentemente do que penso ou acho.
        A função da arte recebeu no meu entender a sua melhor definição nas palavras de Ferreira Gullar: A arte tem de ter algo que me tira do chão e me deslumbra.  É sempre com a perspectiva de me deslumbrar ou no mínimo de me surpreender que me dirijo a um teatro para assistir a um espetáculo. Uma cortina fechada de um palco italiano ou o apagar das luzes em um teatro de arena sempre me colocam numa excitante expectativa positiva em relação ao que vai ser apresentado, o que, muitas vezes não é correspondido.   
        Sendo assim, neste blog a princípio você lê o ponto de vista de um espectador apaixonado (expressão roubada de um antigo livro de Ruggero Jacobbi) sobre aqueles trabalhos que, de alguma maneira, o tiraram do chão.


01/03/2016