sexta-feira, 29 de abril de 2016

OS MINUTOS QUE SE VÃO COM O TEMPO



Somos todos espectadores
Somos todos atores
Somos todos passageiros
Neste mundo de meu Deus.



        Existem grupos que temos grande prazer em acompanhar a trajetória e este é o caso da Trupe Sinhá Zózima que nos cativa pelo acolhimento, pela simpatia e, principalmente, pelo talento e pela qualidade de seus trabalhos caracterizados por serem realizados em ônibus e por apresentarem, com muita delicadeza, temas singelos sempre ligados à passagem do tempo, à saudade e à memória. Meu primeiro contato com o grupo foi em 2009 com a apresentação de Valsa Nº 6, que tinha um dos finais mais bonitos que já presenciei em teatro: quando o público descia do ônibus onde a peça era apresentada o elenco se despedia acenando na janela traseira do veículo. Seguiram-se Cordel do Amor Sem Fim em 2012 (na verdade esta é a primeira montagem do grupo estreada em 2007) e Dentro É Lugar Longe em 2013. Todas essas montagens eram apresentadas no ônibus da companhia apenas para os espectadores formais.


        Com Os Minutos Que Se Vão Com O Tempo, o grupo radicaliza sua proposta realizando a peça em transporte público de linhas que trafegam do Terminal Dom Pedro II até cinco diferentes terminais (dependendo do dia da apresentação) com passageiros normais que entram, permanecem ou saem, além dos espectadores que vieram para assistir ao espetáculo. Com tal proposta os atores submetem-se a novas experiências a cada viagem necessitando de grande versatilidade e certo grau de improvisação para enfrentar reações inesperadas de passageiros/espectadores flutuantes que saíram de casa ou estão voltando para ela . Na apresentação a que assisti uma jovem passageira se emocionou de tal maneira quando se cantava uma canção que tratava de saudade que começou a chorar copiosamente tendo sido acalentada por uma das atrizes e por uma senhora moradora de rua que nos acompanhava desde o Terminal Dom Pedro II; a maneira como essa senhora humilde consolou aquela moça constituiu-se em emoção à parte, fazendo com que a gente se pergunte: quem é ator, quem é espectador e quem é passageiro neste mundo de meu Deus?
        A dramaturgia da peça, em processo colaborativo, é assinada por Cláudia Barral e baseia-se em fatos relatados por passageiros e por relatos do próprio grupo, resultando num todo harmonioso e poético.


        A homogeneidade do elenco não nos permite destacar este ou aquele trabalho onde todos, sem exceção, saem-se muito bem na interpretação das personagens, nas improvisações e no canto. Cumpre notar que desde o último trabalho houve enorme progresso no que se refere às interpretações das belas canções, todas elas compostas pelo grupo. A direção musical do espetáculo é de Luiz Gayotto.
        Como encenador Anderson Maurício limita-se a reger o conjunto de atores (inclusive ele) de maneira delicada e harmoniosa sem exibicionismos desnecessários. Há um DVD de Chico Buarque que se refere ao Brasil como “o país da delicadeza perdida”, mas podemos afirmar que ainda se pode encontrar delicadeza dentro de um ônibus que caminha lotado pelas ruas de São Paulo em direção ao Terminal Santo Amaro e que todos aqueles que ali estiveram (espectadores/passageiros) saíram da experiência com a alma alimentada. PARABÉNS SINHÁ ZÓZIMA.

        INFORMAÇÕES SOBRE O ESPETÁCULO:
        (55 11) 98053-0652 / www.sinhazozima.com.br


29/04/2016 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

CANTO PARA RINOCERONTES E HOMENS


        Eugene Ionesco (1909-1994) escreveu O Rinoceronte no final dos anos 1950 ainda sob o impacto deixado pelo terror do nazismo, mas a obra transcende esse período negro da humanidade, pois sua denúncia se estende a qualquer tipo de autoritarismo e à destruição do pensamento humano imposta pela cultura de massa que aliena o homem eliminando sua vontade/individualidade transformando-o em mais um, em um rinoceronte.
        Conectado com a realidade do mundo contemporâneo tragado pelo capitalismo, Rogério Tarifa voltou-se para a obra de Ionesco para criar este urgente Canto Para Rinocerontes e Homens junto com os formandos de 2015 da Escola de Arte Dramática (EAD) e com Jonathan Silva, seu parceiro de outras encenações, que compôs sugestivas canções para parte do texto. A trama do dramaturgo romeno é entremeada com intervenções onde cada ator criou cenas e a transformação de sua personagem em rinoceronte.
        A montagem tem a marca registrada “Tarifa”: recriação de um clássico para o momento atual; espaço cênico e cenografia (de sua autoria) compatíveis com a proposta da encenação; inserção de canções no melhor estilo brechtiano com direção musical de William Guedes; participação do diretor em algumas cenas, além de sua presença vigilante como espectador; citações em vídeo de intelectuais militantes (no caso José Saramago, Pepe Mujica e Eduardo Galeano) e, porque não dizer, certo barroquismo na concepção do todo que alonga o espetáculo alem do necessário.
        O mais admirável de Canto Para Rinocerontes e Homens é o rendimento do elenco. Egressos há menos de um ano da EAD demonstram muito talento e espírito profissional tanto nas cenas de conjunto como nas intervenções individuais. As performances de transformação em rinoceronte são todas bem elaboradas, mas não há como não destacar aquelas de Renan Ferreira e de Viviane Almeida. Merecem destaque também Rubens Alexandre que interpreta o protagonista Bérenger e Murilo Basso com um inflamado discurso à moda Bolsonaro (que horror!).


        Pelos impactos visual e intelectual e também pelo excesso de informações a montagem exige certa deglutição que se completa apenas tempos depois do término da mesma.
        Crítica mordaz ao capitalismo feroz que vem nos engolindo e nos transformando em marionetes, Canto Para Rinocerontes e Homens é espetáculo altamente necessário para os jovens de hoje. Foi com muita alegria que constatei que na sessão a que assisti à peça, a maioria do público era formada por jovens que acompanharam atentos a saga de Bérenger, o último resistente numa sociedade que se transformou em rinoceronte.
        CANTO PARA RINOCERONTES E HOMENS faz mais duas sessões no Centro Compartilhado de Criação (sábado às 20h e domingo às 19h) e volta ao cartaz no dia 07/05 no Galpão do Folias  às sextas, sábados e domingos até 29/05. NÃO DEIXE DE VER.

27/04/2016


segunda-feira, 25 de abril de 2016

SALINA – A ÚLTIMA VÉRTEBRA


        O dramaturgo e romancista francês Laurent Gaudé escreveu Salina em 2003 e esta é a primeira montagem de um texto seu no Brasil. A iniciativa coube ao grupo carioca Amok Teatro liderado por Ana Teixeira e Stéphane Brodt que vem se especializando em espetáculos épicos de caráter étnico. Em 2007 tivemos a oportunidade de assisti-los com Savina ambientado no mundo cigano, depois disso o grupo criou a trilogia de guerra (O Dragão, Kabul e Histórias de Família) que não foi apresentada nos palcos paulistanos.
        Salina é uma epopeia africana com elementos de tragédia grega e essa mistura aparentemente estranha resultou em dos mais belos espetáculos apresentados em São Paulo nesta temporada. Conta a saga de Salina, jovem que por ser obrigada a casar com um homem a quem não ama desencadeia terrível onda de ódio e violência. Nesse aspecto a peça me lembrou de Abril Despedaçado, o filme de Walter Salles de 2002 baseado no romance homônimo de Ismail Kindaré, onde vingança gera ódio que gera morte que por sua vez gera vingança num circulo vicioso interminável; mas em Salina há redenção e perdão como se constata na comovente cena final onde também se justifica o sub título da peça.

Ariane Hime (Salina) - Foto de Daniel Barbosa

         A trama inicia com Salina, ainda uma jovem bonita e graciosa que ainda “não sangrou” e termina em sua velhice , quando já “não sangra” mais e está sofrida e desfigurada, exigindo um tour de force da atriz que a interpreta (Ariane Hime). O elenco, formado apenas por atores negros, surgiu a partir de oficina realizada em 2014 pelo Amok Teatro. Algumas interpretações são irregulares, sem, porém, comprometer o todo.  Cumpre destacar as interpretações da já citada Ariane Hime e de Tatiana Tiburcio, talvez a presença mais poderosa em cena com sua potente voz e perfeita dicção.

Tatiana Tiburcio (Khaya Djimba) - Foto de Daniel Barbosa

        A partir de pesquisas realizadas pelo grupo a narrativa é permeada por cantos e danças africanas sem jamais cair no aspecto meramente folclórico. Os coloridos e vistosos figurinos (Prêmio Shell nessa categoria no Rio de Janeiro em 2015) criados pela dupla de encenadores emolduram esses belos momentos do espetáculo.
        Sem maiores destaques na mídia paulistana o espetáculo cumpre temporada menor do que um mês no Sesc Belenzinho, a qual se encerra no próximo domingo, dia 1º de maio, o que é lastimável, pois trata-se de montagem digna que, além de valorizar o trabalho dos atores negros (tão carentes de protagonismo na cena teatral brasileira), conta uma bela história por meio de narrativa que mantém o espectador preso na poltrona durante as suas três horas de duração.
        Sábado e domingo às 18h no Sesc Belenzinho. IMPERDÍVEL.

25/04/2016

         

quinta-feira, 21 de abril de 2016

AS SOMBRAS DE DOM CASMURRO


        É sempre lastimável assistir a um bom espetáculo no último dia de sua apresentação, compartilhar o entusiasmo com a obra numa matéria, mas não poder recomendá-lo, pois já saiu de cartaz. Foi essa a minha sensação ao sair do Sesc Ipiranga em 20/04, último dia da apresentação de As Sombras de Dom Casmurro no teatro daquela unidade, mas a notícia da continuidade da temporada em outro teatro torna mais útil esta matéria elogiosa a tão belo trabalho.
        Ciente da diferença entre escrever para ser lido e escrever para ser encenado Toni Brandão realizou adaptação teatral da obra prima de Machado Assis respeitosa e fiel ao original, mas também muito zelosa em respeitar as regras teatrais.
        Fortemente apoiada na criativa iluminação de César Pivetti, no simples, mas eficiente cenário de Duda Arruk e Márcio Macena e na interpretação de Marcos Damigo; Débora Dubois realiza um dos seus melhores trabalhos: simples na aparência, mas altamente sofisticado na concepção.
        A bela iluminação cria cores que definem os tempos da ação e também os sentimentos de Dom Casmurro (seus ataques de ciúmes, por exemplo, são sempre banhados por iluminação lilás) e ajuda, em conjunto com alguns objetos de cena, a criar personagens como Capitu, Escobar e Ezequiel. Tratando-se de trabalho onde um único ator interpreta várias personagens esse recurso revelou-se criativo e revelador: as cenas dos diálogos entre Bentinho e Capitu onde um facho de luz nas mãos do ator e uma leve variação na voz deste revelam que é ela que está falando são belas e extremamente teatrais.
        De nada valeria todos esses recursos se não houvesse um ator à altura e Marcos Damigo dá conta de todas as personagens com muita versatilidade, valendo-se de mudar a postura corporal apenas para fazer o agregado José Dias, a meu ver, a concepção de personagem mais fraca da montagem, perante a riqueza e sutileza das outras. É gratificante assistir ao seu trabalho que se soma a vários outros excelentes monólogos surgidos na atual temporada.
        Espetáculo de tal qualidade ficou em cartaz apenas por um mês e só às quartas feiras com sessões educativas às 14h30 e noturnas às 20h e merece uma segunda temporada onde o boca a boca fará muito por ele. Essa temporada ocorre no Teatro Livraria da Vila do Shopping JK Iguatemi de 07 a 29 de maio, aos sábados às 20h e aos domingos às 18h. NÃO FAÇA COMO EU E NÃO DEIXE PARA O ÚLTIMO DIA!

21/04/2016

        

quarta-feira, 13 de abril de 2016

AS ONDAS ou UMA AUTÓPSIA




         No ano de 2002 uma elogiosa crítica do saudoso Alberto Guzik no Jornal da Tarde sobre o espetáculo Loucura ressaltava “Miziara exibe um talento vigoroso.”. Fui conferir aquele trabalho encenado nas escadas do Teatro Brasileiro de Comédia e na ocasião escrevi em meu diário: “Um grande momento de puro teatro e o testemunho do surgimento de um grande ator”. Aquele jovem de 21 anos pertencente à Cia. Elevador Panorâmico de Teatro dirigido por Marcelo Lazzaratto impressionou, tanto o renomado crítico, como o espectador apaixonado que eu era (e ainda sou!) na ocasião.
         Nessa mesma época o jovem ator assistiu ao filme As Horas de Stephen Daldry que mostra o suicídio da escritora Virginia Woolf (interpretada por Nicole Kidman) nas águas do rio Ouse na Inglaterra.
        Quatorze anos se passaram e Gabriel Miziara comprovou o talento revelado naquele espetáculo e nesse período tornou-se um estudioso apaixonado da vida e da obra da escritora inglesa. Se houver alguma dúvida sobre isso basta assistir a As Ondas ou Uma Autópsia, ora em cartaz no Espaço Beta do Sesc Consolação.
         Miziara escolheu o romance As Ondas para tratar do universo de Virginia Woolf focando dentro dele a questão da morte. O romance tem seis personagens e o ator dá voz a quase todas elas sem deixar muito claro de quem se trata, mas isso não é problema para a compreensão da ação visto que uma das personagens do livro diz “não sou uma pessoa, sou muitas; não sei bem quem sou, nem como distinguir minha vida das suas”, conforme revela o elucidativo programa da peça.

Foto de João Caldas

         Literalmente banhado em água (referência também ao suicídio de Woolf) Miziara dá a luz a essas figuras que filosofam sobre a vida e a morte. O desempenho do ator é não menos que magnífico entrando para o rol das grandes interpretações masculinas do ano.
         A cenografia do espetáculo também de autoria do ator é composta de alguns objetos de cena e de chuveiros de água que em conjunto com a iluminação de Aline Santini formam um todo de grande beleza plástica.
         Destaque para o vestido lindo e funcional criado por Fause Haten que Miziara veste e desveste com elegante facilidade.
         Cabe notar também os cuidados da produção do espetáculo (André Canto) no material de divulgação, no programa e nos detalhes do elaborado cenário e demais itens da encenação.
         As Ondas é verdadeiro biscoito fino nessa época de tanta bolacha Maria embolorada. Acessível, mas sem abrir mão de elaborado conteúdo, é prova que o bom teatro paulistano resiste.
         AS ONDAS está em cartaz no Espaço Beta do Sesc Consolação às segundas e terças feiras às 20h até 26 de abril, devendo cumprir uma segunda temporada posteriormente no Viga Espaço Cênico. IMPERDÍVEL.

13/04/2016


         PS: Comprovando a eficiência e o diferencial da Canto Produções acabo de interromper a escrita desta matéria para receber, através de um portador, envelope preto  com convite nominal para assistir à sua nova produção No Coração das Máquinas que estreia no próximo dia 14 de abril na Oficina Cultural Oswald de Andrade.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

PLAYGROUND


       


        O texto do norte americano Rajiv Joseph (1974) tem o título de Gruesome Playground Injuries, algo como Danos (físicos ou morais) Terríveis no Playground e o tradutor (Mateus Monteiro) optou pelo título simplificado de Playground. Trata-se da primeira montagem do autor (bastante prestigiado nos Estados Unidos) em palcos brasileiros e é uma grata revelação. A peça mostra os encontros entre Daniel e Karina (Doug e Kayleen, no original) em fases diferentes de suas vidas entre os oito e os 38 anos de idade.
        Por que Playground? Considerando-se o título original e as observações feitas pela espectadora Nadya Milano pode-se interpretar que “playground” é metáfora para o corpo de cada um daqueles dois jovens, pois o que eles mais fazem durante toda a trama é brincarem perigosamente com seus corpos em processo autenticamente autodestrutivo: ele sempre colocando seu corpo em situações de perigo e ela literalmente se mutilando. A peça tem até algumas cenas engraçadas, mas no todo é bastante densa, dramática e triste.
        Marco Antônio Pâmio consolida cada vez mais sua carreira como encenador que já tem algumas características: a delicadeza no tratamento do assunto e o extremo cuidado com os pormenores da produção: movimentação cênica, iluminação, música, figurinos, projeção de imagens fluindo harmoniosamente em direção à interpretação dos atores.
        A trama exige que os atores mudem de figurino (Cassio Brasil) e de maquiagem (Beto França) várias vezes e o que poderia se tornar enfadonho transforma-se em um espetáculo à parte graças à direção do movimento dos atores criada por Marco Aurélio Nunes: o gestual com que os atores trocam de roupa assim como a ação de por e tirar um objeto de cena têm o brilho de passos de balé.

Foto de Leekyung Kim

        As mudanças de cena são costuradas de maneira perfeita pela bela trilha sonora de Gregory Silvar e pelas imagens projetadas ao fundo (edição de vídeo de Gian Marco Delle Sedie).
        Banhando todo esse conjunto temos a precisa iluminação de Aline Santini.
        E quanto aos atores? Lara Hassum encontra na personagem Karina uma oportunidade de mostrar sua versatilidade e seu talento e tem um comovente momento na cena final. O incansável Mateus Monteiro (já chegou a estar em três espetáculos em cartaz na atual temporada) foi quem descobriu o texto, traduziu e tem talvez o melhor desempenho de sua curta, mas já sólida carreira mostrando as nuances de um menino de oito anos, de um jovem que vai se destruindo entre os 18 e os 32 e do homem, antecipadamente velho e acabado, aos 38 anos. Atuando em plena sintonia a dupla renova as esperanças de que o futuro do teatro brasileiro está em boas mãos.

Foto de Leekyung Kim

        Marco Antônio Pâmio, assistido na direção por Gonzaga Pedrosa, orquestra todos esses instrumentos de maneira brilhante oferecendo ao espectador um excelente momento da temporada de 2016.

        PLAYGROUND está em cartaz no Viga Espaço Cênico às sextas (21h30), sábados (21h) e domingos (19h) até 29/05. NÃO DEIXE DE VER.

11/04/2016



quarta-feira, 6 de abril de 2016

FESTIVAL DE CURITIBA 2016 - BALANÇO PESSOAL E AFETIVO

         Como sempre acontece, as primeiras verbas cortadas em tempos de crise são aquelas para as ironicamente chamadas inutilidades (educação e cultura). Foi assim com a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) e com o Festival de Curitiba que , se não fosse a garra de seus organizadores, teriam deixado de acontecer neste conturbado ano de 2016.
         O Festival de Curitiba encerrado no último domingo foi um verdadeiro sucesso artístico e de publico tendo recebido cerca de 180 mil pessoas para assistir aos 34 espetáculos da Mostra Oficial (curadoria de Guilherme Weber e Márcio Abreu) e àqueles 312 do Fringe (sem curadoria).
         Mais da metade dos títulos da Mostra Oficial constou de espetáculos já testados no Rio de Janeiro e/ou em São Paulo, mas houve algumas estreias nacionais e até uma corajosa Mostra IliadaHomero com 24 atores paranaenses apresentando em monólogos os 24 cantos da Ilíada de Homero sob a direção de Octavio Camargo.
         As grandes surpresas (boas e más) sempre ficam por conta do Fringe com espetáculos altamente sofisticados como Artista de Fuga até aqueles cujos títulos já revelam seu teor (Homem Casado Com Mulher Feia Não Gosta de Finais de Semana Nem Feriados / A Tarada do Boqueirão).
         Minha opção durante a estadia em Curitiba na segunda semana do Festival foi pelo Fringe e em especial pelas montagens curitibanas. Assisti a 13 espetáculos, sendo cinco da Mostra e oito do Fringe e dentre eles nove de Curitiba. Abri e fechei essa jornada curitibana com chaves de ouro: Cidade Sem Mar na primeira noite e O Causo É o Seguinte na última manhã.

Claudete Pereira Jorge - Canto 1 da Ilíada de Homero

         Dentro da Mostra assisti ao belíssimo Nuon que já foi alvo de matéria publicada neste blog; o Canto 1 da Ilíada numa interpretação espantosa da grande atriz Claudete Pereira Jorge, inexplicavelmente desconhecida em São Paulo; Mamãe, solo do ator carioca Álamo Facó sobre a doença e a morte de sua mãe; Quem Tem Medo de Travesti, montagem cearense bastante digna sobre o mundo de discriminação e preconceitos em que vivem os travestis, com direção de Jezebel De Carli e Silvero Pereira que já nos deram o memorável BRTrans e Tebas Land, original exercício de meta linguagem vindo do Uruguai com autoria e direção de Sergio Blanco versando sobre as entrevistas que um dramaturgo realiza com um parricida e  com o ator que irá interpretar o assassino em uma peça escrita pelo entrevistador, a relação entre os três resulta em um espetáculo intimista e provocador.
         No Fringe assisti apenas a um espetáculo não curitibano (O Encontro das Águas, montagem carioca dirigida por Leonardo Miggiorin) e as gratíssimas surpresas ficaram por conta dos trabalhos locais.
         Não é sempre que se tem a chance de se descobrir autores, encenadores, companhias e atores de uma cidade. A Curitiba Mostra idealizada pela atriz Nena Inoue realizou essa tarefa de forma exemplar com a apresentação de cinco espetáculos de grupos locais com textos de autores curitibanos. Tive a oportunidade de assistir a quatro desses trabalhos, todos eles transgressores e inovadores. No meu modo de ver o mais bem realizado foi A Cidade Sem Mar inspirado na obra de Manoel Carlos Karam com direção de Giovana Soar e Nadja Naira da Companhia Brasileira de Teatro, mas as performances Pinheiros e Precipícios (Wilson Bueno) e Autoras Curitibanas também se revelaram provocativas além da primeira me surpreender com o carisma de Claudete Pereira Jorge que posteriormente me deixaria de boca aberta no já citado Canto 1 da Ilíada. O mais convencional, mas não menos interessante, Paranã é formado por três monólogos pontuados por pequenos textos de Dalton Trevisan interpretados por Nena Inoue; excelentes atores com destaque para Rafael Camargo numa divertida interpretação de texto de Domingos Pellegrini. Deixei de ver o trabalho sobre a obra de Dalton Trevisan.
         Uma curiosidade é a adaptação de parte da casa de atores/encenadores como espaço teatral. As casas do encenador Marcos Damaceno e do autor/ator/diretor Edson Bueno são exemplos disso e nesses espaços tive a chance de ver dois importantes trabalhos:

Casa do Damaceno
         Artista de Fuga tem dramaturgia do diretor Marcos Damaceno a partir de texto de Guto Gevaerd e trata da crise existencial e artística (Ah! O tormento da página em branco!) de um escritor à beira de um ataque de loucura. A encenação de Damaceno é contemporânea e criativa tendo como pontos fortes a instigante cenografia de autoria do diretor e de André Coelho e as poderosas interpretações de Rosana Stavis, Paulo Alves e Eliane Campelli (dona de voz bela e exuberante). A cena final é um surpreendente soco no estômago!

Estúdio Delírio (Residência de Edson Bueno)

         Se Eu Morresse Amanhã de autoria de Edson Bueno é teatro convencional muito bem feito. Trama bem contada sobre um homem que recebe a visita da morte que diverte e comove na medida certa. Excelentes interpretações do autor/encenador e de Ricardo Westphalen.

Ave Lola Espaço de Criação

         Domingo ensolarado pela manhã, horas antes de regressar a São Paulo volto ao Ave Lola Espaço de Criação para fechar lindamente a estadia em Curitiba: no paradisíaco jardim do espaço; belamente adornado pelo sol, pelas plantas e pelas crianças; apresentaram-se Richard Rebelo e o Trio Caipora em O Causo é o Seguinte , contação de causos deste vasto Brasil por Rebelo, mesclada com canções interpretadas pelo grupo. Espetáculo que contagiou com alegria e emoção o grande público presente.




         E para encerrar esta matéria nada melhor do que um texto de Guimarães Rosa dito por Richard Rebelo em O Causo É o Seguinte que ele graciosamente transcreveu para mim:

         “Ando com fome de coisas sólidas e ânsia de viver só o essencial. Penso que chega um momento na vida da gente em que o nosso único dever é lutar ferozmente para introduzir no tempo de cada dia o máximo de eternidade”.

FALTA DE EDUCAÇÃO E FALTA DE CULTURA OS MALES DO BRASIL SÃO.

VIVA MÁRIO DE ANDRADE!


06/04/2016

sábado, 2 de abril de 2016

NUON


AVE LOLA NO FESTIVAL DE CURITIBA 2016

        Nuon, o espetáculo do grupo curitibano Ave Lola Trupe de Teatro dentro do Festival de Curitiba curiosamente me remeteu ao filme Apocalypse Now (1979) dirigido por Francis Ford Coppola. As cenas finais do filme são dantescas e mostram de maneira violenta a cruel destruição humana causada pela guerra do Vietnã ouvindo-se em off a voz de Coronel Kurtz (interpretação de Marlon Brando) exclamando “ O horror!  O horror”.
        A dramaturga e diretora Ana Rosa Tezza trilha caminho inverso optando por olhar poético e de rara beleza para falar desse mesmo horror, neste caso provocado pelo genocídio causado pelo Khmer Vermelho no Camboja entre os anos 1975 e 1979 quando grande parte da população foi dizimada. O tema é de violência ímpar, mas o tratamento dramatúrgico/cênico faz a opção pelo belo e o resultado é tão devastador quanto o do filme.
        Sem acusar nem apontar culpados, mas ressaltando o ambiente que propiciou o acontecimento dos fatos a  peça   faz o espectador refletir sobre o assunto e perceber reflexos na situação atual do Brasil. A trama é narrada por Nuon, uma sobrevivente do massacre e se passa em grande parte em uma noite durante um ritual de homenagem aos ancestrais. Um coro com características do coro grego, mas com máscaras com traços orientais abre e fecha o espetáculo na melhor tradição das tragédias helênicas.


        Tudo é delicado e funciona na encenação de Ana Rosa: o elenco é homogêneo e atua com perfeição, com destaque para o trabalho de Regina Bastos como a narradora; os figurinos criados por Eduardo Giacomini após pesquisas sobre os trajes cambojanos são de um colorido vivo, magnificamente complementados pela plástica dos personagens e máscaras de Maria Adélia; a música de Mateus Ferrari é executada ao vivo por ele e por Breno Monte ilustrando a ação de maneira harmoniosa e finalmente a iluminação de Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski que banha suavemente toda essa beleza. Há momentos sublimes como aquele da entrada dos plantadores de arroz com seus chapéus típicos e também um raro suspense quando as duas irmãs caminham em um campo minado.



        Para coroar essa alimentação para a alma resta comentar sobre o acolhimento - incomum na maioria dos nossos teatros - que o grupo oferece ao público. O espaço muito aconchegante é dotado de um lindo jardim que, infelizmente, não foi possível usufruir na noite em que lá estive em função da forte chuva. E como não é só a alma que precisa de alimento disponibiliza-se um cardápio com prato típico do país tratado na peça em cartaz, no caso, um tradicional peixe cambojano herdado do Império Khmer que pode ser degustado acompanhado da cerveja artesanal Mekong criada especialmente para o espetáculo.



            Alma e corpo alimentados. Querer mais é ser guloso? Não! Porque ainda pode-se visitar a exposição Flores do Khmer (Retratos do Camboja) do artista plástico Max Carlesso.


        Raro momento teatral, NUON está em cartaz no Ave Lola Espaço de Criação em Curitiba, durante o Festival e cumprirá temporada após o término do evento. Resta torcer para que um dia ele chegue aos palcos paulistanos.

01/04/2016