segunda-feira, 27 de abril de 2020

O PALCO PAULISTANO EM 2020



        Do início de janeiro até o fatídico 14 de março, depois do qual todos os teatros foram fechados, assisti a 44 espetáculos, sendo três shows, duas leituras dramáticas e 39 peças teatrais, entre as quais dez estrangeiras dentro da MITsp 2020. Foram, portanto, 29 produções nacionais e escrevi sobre 19 delas o que comprova meu entusiasmo com a temporada promissora que estava apenas começando e que foi abruptamente interrompida deixando todo o pessoal da área teatral desamparado e sem perspectivas futuras. Já se vão 45 dias e não se tem notícia de quando nossos teatros poderão retornar às suas atividades.

        Acompanho os espetáculos a que pretendo assistir com um diagrama feito manualmente com o objetivo de organizar minha agenda e olhando para o último sinto imensa tristeza ao ver que 19 espetáculos dessa lista estão lá a espera de serem assistidos. Alguns talvez tenham a oportunidade de estrear ou voltar ao cartaz, mas outros podem se perder para sempre.

        Nossa cultura já tão desprezada pelos órgãos públicos sofre mais este golpe vindo da natureza e nossos bravos artistas tentam se reinventar e sobreviver com “lives” ou mesmo realizando outras atividades, mas tenho certeza que sobreviveremos e vamos sair mais fortes dessa pandemia. O teatro nunca vai morrer. Mais que nunca é necessário que, mesmo à distância, nos abracemos:

O TEATRO NOS UNE
O TEATRO NOS TORNA FORTE
VIVA O TEATRO! 
 

        Dedico este texto a todos os profissionais de teatro, às assessorias de imprensa e a todos aqueles que amam essa que para mim é a mais apaixonante das artes.

         27/04/2020

         

quinta-feira, 23 de abril de 2020

1789 – THÉÂTRE DU SOLEIL


 
1.   Teatro filmado, live e vídeo gravado.

         Neste momento de pandemia onde os artistas têm se valido desses formatos, discussões sobre se eles são ou não teatro têm agitado as manifestações de vários colegas da área teatral, entre eles Gabrielle Araújo e Márcio Boaro.
         Eu diria que em termos de forma o bom resultado de qualquer um deles vai depender das técnicas áudio visuais utilizadas, independentemente do conteúdo. O material gravado com técnicas cinematográficas (close, composição, ângulos/planos obtidos por mais de uma câmera) será posteriormente editado com cortes, preservando a continuidade da ação, respeitando assim os cinco Cs do cinema. Na live isso não é possível, resultando em geral, numa produção mais simples.
        Teatro filmado existe desde que surgiu o cinema e temos boas lembranças dos teleteatros realizados no início da televisão; o live surge com maior força nos tempos atuais com resultados variáveis. Mas que fique claro: trata-se de “teatro filmado”, “teleteatro” e “live” e não de TEATRO. TEATRO é arte do efêmero, ao vivo e só acontece uma vez na frente de determinado público e do estado de espírito de quem o está realizando. Todas as formas são válidas, mas é bom que se separe uma da outra. O TEATRO nunca vai morrer! Já se previu isso quando surgiu o cinema e também com o advento da televisão e não é o corona vírus que vai acabar com ele.

2.   1789
 

        Um grande desafio é filmar com resultado atraente um espetáculo durante uma apresentação ao vivo e a encenadora Ariane Mnouchkine é uma expert no assunto desde os primórdios do Théâtre du Soleil quando realizou o filme 1789 a partir de 13 apresentações ao vivo. Escolheu-se o melhor de cada apresentação e respeitando a continuidade montou-se o filme. Filmado em branco e preto.
        50 anos! 1789 estreou na Itália em uma quadra de esportes sob os auspícios do Piccolo Teatro de Milão, fazendo longa temporada em seguida na Cartoucherie de Vincennes nos arredores de Paris, local que se tornaria sede do Théâtre du Soleil até os dias de hoje.
         O espaço cênico é formado por vários tablados onde acontecem as ações enquanto o público assiste ao espetáculo em pé em volta dos tablados ou sentado nas arquibancadas laterais. A complexa cenografia de Roberto Moscoso ,assim como, a encenação de Ariane Mnouchkine têm inspiração no espetáculo Orlando Furioso de Luca Ronconi, mas foram elas que se tornaram mais populares e serviram de base para espetáculos de diretores de todo o mundo.
 
 
 
        Nestes dias de quarentena assisti em DVD ao espetáculo filmado e tenho que esclarecer que a fruição total do mesmo ficou prejudicada por três razões:
        1ª – O filme é falado em francês muito rápido com legendas em inglês que também entram e saem rapidamente, além disso, havia muitas palavras que meu inglês incipiente não conhecia (cheguei a pausar o filme para ver o significado de algumas palavras chaves).
        2ª – Conhecimento superficial da história da França e, em especial, da Revolução Francesa. Entre os conhecidos Marat, Mirabeau, La Fayette, alguns nomes que eu nunca tinha ouvido falar como Necker e Grucchus Babeuf, figuras importantes na trama, inclusive com uma fala deste último que fecha o espetáculo. Pesquisei mais profundamente sobre eles após ver a peça.
        3ª – Esta última é sinal do tempo: as interpretações são exageradas e até histéricas durante os 135 minutos da peça, além de haver muitos recursos teatrais envolvidos que tornam o espetáculo over (pantomimas, marionetes, bonecos gigantes a la Bread and Puppet, teatro de sombras, circo, malabarismo, teatro caricatural e trilha óbvia com trechos da Sinfonia nº1 de Mahler – o Soleil ainda não sabia da existência de Jean-Jacques Lemêtre! - ). Tudo isso podia ser novidade em 1970, mas foi tão utilizado e imitado que se tornou datado. Ariane Mnouchkine comenta sobre isso no documentário que acompanha o DVD.   

        Apesar dessas restrições, creio que posso fazer algumas considerações sobre 1789.
        O texto do espetáculo é resultado de criação coletiva (novidade na época) e é todo focado na população pobre e na opressão sofrida por ela pela nobreza. É uma peça de tendência esquerdista onde Jean Paul Marat tem papel muito importante e como já citei termina com uma frase de Babeuf, considerado um dos precursores do socialismo.
        A encenação é bela e dinâmica (às vezes, até demais) com o elenco se movimentando entre o público e se deslocando de um tablado para o outro. Algumas cenas acontecem no espaço onde está o público com participação do mesmo (a interatividade acontecendo em 1970). Há uma cena que merece destaque: o elenco se divide entre o público, cada ator reunindo em torno de si um grupo de espectadores para falar dos preparativos da Tomada da Bastilha. A princípio murmuradas, as falas vão aumentando de volume até a explosão da vitória! Nesse momento os atores dirigem-se aos diversos tablados com cenas de circo, malabarismos, tochas e muita festa para comemorar a Tomada da Bastilha. Era o dia 14 de julho de 1789.      
 
 
     23/04/2020
 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO



        Nem todos os dias da quarentena se parecem. Em alguns o céu está azul e o sol entra pela janela, em outros o céu está alaranjado no final da tarde, ás vezes há muitas nuvens e ainda em outros a noite é iluminada pela lua. Os domingos parecem ser mais solitários porque não há a companhia dos programas de rádio que acompanho durante a semana e as pessoas parecem estar mais recolhidas e distantes do Facebook e do Whatsapp. Além disso, os dias diferem principalmente pelo meu estado de espírito que a cada dia pode estar diferente, assim como o humor da Valentina.

        Tudo isso para notar que no último domingo eu estava bastante emotivo. Não estava triste. Eram emoções gostosas que fizeram brotar lágrimas em meus olhos em diversos momentos.

        A primeira vez foi ao ouvir algumas canções de Ao Sul do Pacífico (South Pacific), musical de Rodgers e Hammerstein: Bali Hai preparou minha emoção que explodiu durante Some Enchanted Evening. E como não chorar ao ouvir Climb Every Mountain (The Sound of Music) e, principalmente, You’ll Never Walk Alone (Carousel).

        Com o coração devidamente sensibilizado escolhi dois filmes para assistir que de antemão eu sabia que iriam me levar às boas lágrimas.
 
 
        O primeiro foi Ladrões de Bicicletas (1948), a obra prima do neo realismo italiano, dirigida por Vittorio De Sica realizada com atores não profissionais e filmada numa Roma devastada pela pós guerra onde imperava o desemprego e a pobreza. Assusta pensar que poderemos ter situação parecida ao final dessa pandemia trazida pelo novo corona vírus.
        Leonardo Maggiorani está ótimo como o pai desesperado à procura da bicicleta, sua ferramenta de trabalho que foi roubada, mas quem carrega o filme e provoca lágrimas é o garoto Enzo Staiola, então com nove anos no papel do filho Bruno. Hoje Staiola é um belo senhor de 80 anos que se tornou professor de matemática, uma vez que sua carreira cinematográfica não deslanchou como a de tantos outros atores infantis que surgem com grandes interpretações apenas no primeiro filme (assisti a uma entrevista dele no youtube, logo depois de ver o filme). O filme me remete à minha infância e ao Cine Nacional onde meu tio Amadeu o assistiu por volta de 1952 e comentou que o garoto lembrava muito o Zezinho (eu!!).
 

        A segunda escolha recaiu em outro italiano: Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), um dos grandes filmes de Ettore Scola e que tem um dos títulos mais belos que se tem notícia, tanto em italiano (C’Eravamo Tanto Amati), como na tradução dada em português que me soa ainda mais bonita do que aquela original.
 

        O filme trata de três jovens que se conheceram durante a segunda guerra mundial e de seus encontros e desencontros até a velhice. Um deles conhece e se apaixona por uma bela jovem (Stefania Sandrelli, esplendorosa como sempre) que terá papel importante na vida dos três. Um belo filme sobre como na maioria das vezes os sonhos da juventude não se realizam e como as pessoas podem mudar ao longo da vida. A trama me lembrou daquela decepção que sentimos ao reencontrar antigos companheiros de juventude naqueles encontros comemorativos do ano de formatura no colégio ou na faculdade.
        Nino Manfredi, Vittorio Gassman e Stefano Salla Flores representam os três amigos e o elenco ainda conta com Aldo Fabrizi, ícone da comédia italiana. O filme ainda conta com deliciosas participações de Federico Fellini e Marcelo Mastroianni numa reconstituição da famosa cena na Fontana di Trevi de A Doce Vida e de Vittorio De Sica numa palestra sobre o filme Ladrões de Bicicletas. Todos falecidos.

        E assim passei mais este domingo que tive a oportunidade de viver.

- FIM -

        20/04/2020

sábado, 18 de abril de 2020

MEMÓRIAS DE UM ESPECTADOR APAIXONADO


 
 
Grandes descobertas musicais e culturais através do teatro e do cinema.

         Nestes tempos de recolhimento nossas lembranças mais remotas vêm à tona e depois que escrevi sobre como descobri Begin the Begin e Cole Porter, tenho pensado muito sobre como a música teve fundamental importância em minha formação de receptor/espectador.  Uma viagem desde a primeira infância até os dias de hoje demonstram como tomei contato e descobri a beleza da música em muitos espetáculos a que assisti.
 

         Eu morava na Rua Joaquim Ferreira, travessa da Rua Carlos Vicari, próximo        de onde hoje está o SESC Pompeia e ia constantemente visitar a Nonna Carmella, minha avó paterna que morava do outro lado da rua, onde hoje está o supermercado Sonda.        Todo sábado o Nonno Mimi (apelido de Domenico) jogava baralho com o Benjamin, o Menegho (também apelido de Domenico) e outros companheiros e lembro que eles fumavam muito tanto charuto como cachimbo e cuspiam numa escarradeira de madeira cheia de areia; o cheiro daquele fumo me vem ao olfato até hoje, setenta anos depois, assim como a visão nada agradável daquela escarradeira.
         Eles jogavam baralho na copa enquanto eu e a nonna ficávamos na cozinha ouvindo rádio e dividindo uma garrafinha de guaraná da Brahma, que se distinguia daquele da Antartica por ser mais azedinho (agora o paladar me trouxe outra lembrança!). A nonna ouvia uma novela que tinha o patrocínio do Óleo de Peroba e o prefixo da mesma era uma música lacrimosa chamada A Lenda do Beijo. Essa talvez seja a lembrança musical mais antiga que eu tenho. Devia ter cerca de sete anos e já tinha experiência sensorial considerável!
 

         Nessa época eu fazia de vitrola uma caixa vazia de sabão Campeiro na qual rodava discos de papelão cantando para minha outra nonna (Agnesa) ouvir.
         Mais tarde meu pai comprou uma vitrola de verdade e com ela os primeiros bolachões em 78 rpm: A Ilha das Lágrimas (música muito triste cantada em italiano que levava meu pai, em geral durão e circunspecto, até as lágrimas e que, apesar de muito pesquisar, nunca consegui encontrar), canções de Nicola Paone alegres (Ue, Paesano/Signora Maestra) ou tristes (Babbo, si me vuoi benne, damme la mamma mia).
         Certo dia ele chegou com dois discos que continham o Bolero de Ravel em três dos lados e O Poeta e o Camponês no quarto lado. Aquilo foi uma revelação para mim e posso dizer que essa foi a minha verdadeira entrada para o mundo maravilhoso da música.
 

 
         As novelas da Rádio São Paulo que minha mãe ouvia eram recheadas de músicas dramáticas para embalar as emoções que elas queriam transmitir e muito mais tarde descobri que muitas dessas músicas pertenciam a obras de Tchaikovsky e, quem diria, Mahler!
          Preciso confessar que a descoberta da música clássica tem muito a ver também com os dois LPs ‘S Concert de Ray Conniff que apresentavam versões pobres e popularescas de grandes obras clássicas, mas que me despertaram a curiosidade para procurar conhecer essas obras no original.
 

         E a memória vai trazendo outras situações onde a descoberta de certas músicas me trouxe grandes surpresas e alegrias.

         Como não se lembrar da primeira vez que ouvi as canções de Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal ao assistir extasiado a Arena Conta Zumbi em 1965? E no mesmo ano a descoberta de Chico Buarque com a trilha de Morte e Vida Severina?
 

         Em 1967, a antológica encenação de Marat/Sade por Ademar Guerra vinha acompanhada da magnífica trilha de Richard Peaslee, curiosamente não creditada na ficha técnica do espetáculo. Segundo Yan Michalski “essa música ocupa um lugar de enorme destaque dentro do espetáculo, sendo mesmo responsável por uma parte importante de sua magia”. Durante anos cantarolei essas canções, até que tive acesso à sua versão original presente no filme homônimo de Peter Brook.
 
 
            Em 1971 levei um gravador portátil no Circo Irmãos Tibério para gravar as belas músicas de Múrilo Alvarenga Júnior que compunham a trilha de O Evangelho Segundo Zebedeu de autoria de César Vieira.
 


 
         Encantado com a trilha de O Balcão, a encenação histórica de Victor Garcia realizada por Ruth Escobar em 1970, tive que fazer uma peregrinação por lojas de disco (as saudosas Breno Rossi e Bruno Blois) para descobrir que se tratava da Missa da Coroação de Mozart.
 

         De uma maneira ou de outra tenho todas essas músicas comigo para ouvi-las e relembrar os grandes momentos em que tomei conhecimento delas. Uma exceção e grande frustração é a hipnótica trilha de O Terceiro Demônio (1972) de Carlos Hartlieb e Hermes de Aquino que não foi gravada e que nunca mais tive acesso. Recordo-me agora de outra trilha potente realizada com instrumentos de percussão curiosamente composta por um italiano, Frederico Pietrabruna, encenador do estranho e malogrado Os Gigantes da Montanha em 1969; esta também só ficou na lembrança (eu havia feito uma gravação amadora da mesma que se perdeu entre tantas fitas cassete que me desfiz)
 

         Em relação a gravações amadoras realizadas dessa maneira em salas de teatro ou de cinema, fiz o mesmo com a trilha do filme Um Dia, Um Gato (1963). Essa música (um dos mais belos solos de fagote que já ouvi em toda minha vida) tornou-se uma verdadeira obsessão e cinquenta anos depois eu ainda estava procurando por ela em lojas de disco de Praga quando visitei a República Tcheca em 2002. Tudo em vão. Pouco reprisado no cinema, só realizei meu sonho quando foi lançado o DVD com o filme que chego a colocar no DVD player só para ouvir a música durante os créditos iniciais.
 

         Em 1985 foi a vez de descobrir outra maravilha. Uma música mágica era o fundo musical da entrevista com Jorge Luis Borges realizada por Walter Salles para o programa Conexão Internacional na extinta TV Manchete. Que música era aquela? A Mariana lembra que dias depois ao assistir ao filme Koyaaniskatsi junto com ela no antigo Cine Majestic (hoje dividido nas três salas do Espaço Itaú-Augusta) em certo momento eu dei um pulo na poltrona e exclamei que aquela era a música que eu estava procurando. Vi nos créditos que se tratava de Philip Glass e a partir daí virei um grande admirador dele e da música minimalista.
 

         Em 1989 reencontrei a emocionante música dos filmes bíblicos tão em voga nos 1950. No memorável e incomparável Paraíso Zona Norte, Antunes Filho ilustrou os dramas das personagens rodrigueanas Zulmira e Tuninho de A Falecida e Seu Noronha, Aurora e Silene de Os Sete Gatinhos com músicas de Os Dez Mandamentos, Ben-Hur e O Manto Sagrado e é inacreditável que mistura tão insólita tenha dado tão certo.
 

         Da icônica Walk on the Wild Side de Lou Reed eu tomei conhecimento no Rio de Janeiro em 1995 coreografada pela divina Eloina no show de travestis A Noite dos Leopardos.
 
 
 
         Que eu me lembre a última música que conheci através de uma peça de teatro foi a linda Why Does My Heart Feel So Bad de Moby que ilustrava magnificamente a emocionante cena final de Os Sete Afluentes do Rio Ota em 2003.
 


         Gonzaguinha dizia que a arte da vida está em sermos eternos aprendizes e eu nos meus 76 anos quero ainda muito me surpreender com o que a arte tem para me oferecer, quer seja através da música, que é o objeto desta matéria, mas também do teatro, do cinema, da dança, da literatura, das artes plásticas, da fotografia e da escultura.

         Vivemos tempos difíceis, mas como escreveu Nietzsche, a arte existe para que a realidade não nos destrua.
 
         ARTE É CULTURA!

         18/04/2020

quarta-feira, 15 de abril de 2020

CARNÉ, GIRARDOT e CORDERY


        Nesses últimos dias tenho visto vários filmes de Marcel Carné (1906-1996). Surpreendi-me com As Portas da Noite (1946), Caís das Sombras (1938) e voltei a me encantar com a obra prima absoluta Les Enfants du Paradis (1945) todos eles com roteiro do poeta Jacques Prévert (1900-1977) e com o toque de realismo poético presente principalmente nas externas de Paris reconstituídas em estúdio.
        Assisti também a Trágico Amanhecer (1939), Hotel do Norte (1938), o ótimo Thérèse Raquin (1953) com Simone Signoret (1921-1985) no auge da beleza e do talento e Três Quartos em Manhattan (1965) que é o alvo desta matéria.

        Após Thérèse Raquin, Carné passou por período de ostracismo com apenas um filme bem sucedido comercialmente que foi Os Trapaceiros (1958). Em 1965 ele resolve filmar nos Estados Unidos Três Quartos em Manhattan que apesar do cenário novayorquino e da excelente trilha sonora jazzística é um filme bastante francês.
        O roteiro é baseado em romance de Georges Simenon (1903-1989) e a interpretação está a cargo de dois ícones do cinema francês, ambos transbordando talento, beleza e juventude apesar das personagens serem problemáticas e de certo modo depressivas. São eles Maurice Ronet (1927-1983) e a maravilhosa Annie Girardot (1931-2011). É impressionante a maneira como os dois brilham, malgrado a trama e os diálogos serem bastante fracos.
 
 
        Cinco anos antes Girardot já havia atuado em Rocco e Seus Irmãos (1960), onde dividia o brilho com elenco estelar formado por Katina Paxinou, Alain Delon e Renato Salvatore (que depois foi seu marido); aqui ela divide o brilho unicamente com Ronet e temos a ocasião de comprovar seus imensos talento e carisma.

        Na ocasião em que assisti a Rocco eu não conhecia Nicole Cordery, mesmo porque ela ainda não estava presente neste mundo. Ontem ao assistir a Três Quartos em Manhattan fiquei verdadeiramente impressionado com a semelhança entre essas duas grandes atrizes. Ao longo do filme, várias vezes eu achava que estava vendo Nicole em cena. Para comprovar minha impressão pesquisei fotos das duas em momentos que talvez tivessem a mesma idade e está aí a prova dos nove. Alguém contesta?


 
        Duas grandes belezas, dois grandes talentos.

       15/04/2020

 

quinta-feira, 9 de abril de 2020

‘S WONDERFUL


 
        Em 1960 eu tinha 16 anos e estava no 4ª série do ginásio no Instituto de Educação Anhanguera no bairro da Lapa. Época de muitos sonhos dourados e que antecedeu os bailinhos do colégio, onde iriam reinar Elvis Presley, Bill Halley e seus Cometas e Ray Conniff que é, de certa maneira, o protagonista desta crônica.
        Todo final de tarde eu ouvia um programa, acho que era na Rádio Bandeirantes, que tinha um prefixo que eu simplesmente adorava. A música vinha num crescendo e tinha gran finale com um triunfante “u la la”. Às vezes, no final do programa, essa música era cortada antes do fim o que me deixava muito frustrado. Mas que música era aquela? Quem tocava? Muitas vezes eu vinha correndo da rua para ouvir só o final do programa. Eu era verdadeiramente obcecado por aquela música.
        Há 60 anos não havia meios de pesquisar a origem daquela música e não sei como descobri que quem executava era a orquestra de um tal Ray Conniff, maestro que fazia muito sucesso nos Estados Unidos. Com a soma do dinheiro da minha mesada e daquele gentilmente dado pela minha mãe fui até uma loja de discos na Lapa (acho que era o Bazar Lapeano) e perguntei por um disco daquele senhor. Havia um único LP (long playing, para os mais jovens) dele. Pedi para ouvir e a atendente foi colocando um trecho de cada faixa e meu coração quase pulou para fora na introdução da sexta faixa do lado A.

        - É essa, é essa!! - disse eu emocionado e feliz - pode tirar o disco. Eu vou levar!

        Saí da loja com meu trunfo debaixo do braço. Era o primeiro LP que eu comprava. Só havia um pequeno problema: a vitrola de casa só tocava discos de 78 rpm (rotações por minuto, para os mais jovens) e o LP era em 33 rpm. Onde ouvir o disco?
        Lendo o rótulo do disco fiquei sabendo que a música em questão chamava-se Begin the Beguine de um autor naquele momento desconhecido para mim e que viria a se tornar um dos compositores norte americanos que mais amo: COLE PORTER!

 

        Eu olhava para aquele disco todos os dias e sonhava com o momento em que poderia ouvi-lo. Conversando com minha prima Dirce comentei o fato e ela me disse que o inquilino que morava no fundo do quintal da sua casa tinha uma vitrola “moderna” e que ela ia conversar com ele para que eu pudesse ir lá ouvir o disco. Olha a logística armada para que meu sonho se concretizasse!
        Após alguns dias de ansiedade recebi o sim e lá fui eu para ouvir na íntegra o meu tesouro. Era um casal de meia idade quieto, mas simpático e me deixou à vontade para desfrutar do meu disco. Ainda hoje consigo me imaginar de olhos semicerrados me deliciando com aquelas músicas. Permitiram até que eu tivesse um bis, ouvindo Begin the Beguine pela segunda vez.

        E o resto é história. Mais tarde meu pai mandou adaptar nossa velha vitrola para que ela tocasse as demais rotações além daquela de 78; eram as rotações 45 (para os discos compactos da época) e a já citada 33. Ali eu ouvi muitos dos discos que encantaram a minha juventude e que ajudaram a formar o espectador/receptor apaixonado que sou hoje.

        Foram incontáveis as vezes que dancei ao som desse disco e de todos os outros de Ray Conniff, mas o primeiro Ray Conniff ninguém esquece e hoje, nesses tempos de pandemia, ao reorganizar um armário dei de cara com o tal LP número um e resolvi ouvi-lo na vitrola. Revivi toda aquela emoção da primeira vez na casa do casal de meia idade quieto, mas simpático... e pedi bis para Begin the Beguine!

        09/04/2020

terça-feira, 7 de abril de 2020

A MORATÓRIA



        É sempre alvissareiro tomar conhecimento que está sendo montada uma peça de Jorge Andrade (1922-1984), um dos mais importantes dramaturgos brasileiros, injustamente esquecido pelos nossos encenadores e pelos grupos de teatro.
 
 
        O interessante seria montar algumas das peças nunca encenadas em São Paulo como As Confrarias, Senhora na Boca do Lixo (montada apenas no Rio de Janeiro em 1968 com Eva Tudor sob a direção de Dulcina de Morais), O Sumidouro e O Incêndio, mas de qualquer maneira a revisita à emblemática A Moratória é muito importante.

        Montada em 1955 pela Cia. Maria Della Costa, a encenação revelou Fernanda Montenegro para o público paulistano no papel de Lucília; a direção era de Gianni Ratto que também assinou a elogiada cenografia em dois planos exigida pela peça. A peça voltou a ser encenada por Emílio Di Biasi em 1976 inaugurando o Teatro FAAP e em 2008 pelo Grupo TAPA, dirigida por Eduardo Tolentino de Araújo. Diga-se que o Grupo TAPA é um dos maiores difusores da obra de Jorge Andrade tendo encenado também Rasto Atrás (1995) e O Telescópio (1999).
 
 
 
        Após o sucesso de A Moratória, o Teatro Brasileiro de Comédia, em fase nacionalista, encenou Pedreira das Almas (1958) dirigida por Alberto D’Aversa, A Escada (1961) dirigida por Flávio Rangel, o grande sucesso Os Ossos do Barão (1963) dirigida por Maurice Vaneau e o grande fracasso Vereda da Salvação (1964) dirigida por Antunes Filho, que culminou com o encerramento das atividades da companhia sediada na Rua Major Diogo. Antunes revisitou Vereda em 1993 com interpretações antológicas de Laura Cardoso (Dolor) e Luís Mello (Joaquim).
        Sessenta e cinco anos nos separam da primeira montagem de uma peça de Jorge Andrade. Além das citadas (cerca de 10 montagens), outras menos significativas podem ser incluídas (talvez cinco), mas convenhamos que 15 montagens é muito pouco para um período de 65 anos! Uma a cada quatro anos, sendo que a última ocorreu há mais de dez anos!
        Por tudo isso é digna de celebração esta nova montagem de A Moratória, principalmente por estar inaugurando um novo teatro paulistano e por estar sendo encenada por Grupo, diretor e elenco tão importantes para os nossos palcos.
        O aconchegante Teatro Lumiar fica no coração do Bixiga na Rua Conselheiro Ramalho, bastante próximo de onde um dia funcionou o saudoso Teatro Bela Vista no espaço hoje ocupado pelo Teatro Sérgio Cardoso. O teatro possui 247 poltronas bem distribuídas, palco e camarins dotados de todas as condições técnicas com projeto assinado pelo arquiteto João Carlos Pedroso.
        A produção do espetáculo é responsabilidade do Grupo Quarador, que realiza esta nova montagem depois da bem sucedida encenação de Tio Vânia (2019) de Tchekhov.
        A encenação é assinada por Renan Lafayette que já nos ofereceu tantas montagens memoráveis como Rei Lear (2014) de Shakespeare e Perdoa-Me Por Me Traires (2018) de Nelson Rodrigues, que abocanhou todos os prêmios do ano e revelou o talento de Lucelia Loyola no papel de Glorinha.
        A cenografia em dois planos é de autoria de Hildebrando Cassol e os figurinos de época (a ação se passa no início dos anos 1930) levam a prestigiada assinatura de Diogo Sobral. A sugestiva trilha sonora composta por suaves ruídos e músicas de época é de autoria de Leandro José.
        A essa requintada ficha técnica some-se a excelência do elenco: Lucelia Loyola volta a brilhar no papel da sofrida Lucília, confirmando o talento revelado em Perdoa-Me Por Me Traires. Sonia Deloupe tem excelente performance como a discreta mãe Helena. A arrogante Elvira é interpretada com muito empenho por Dalila Del Poggio, especialista nesse tipo de papel. É sempre um grande prazer rever Augusto Duran em nossos palcos, aqui em grande momento como o pai Joaquim. Completam o harmônico elenco Luís Thiago (Marcelo) e Dagoberto Muniz (Olímpio).

        A MORATÓRIA está em cartaz no Teatro Lumiar até 17 de maio. Sessões ás terças, quartas, quintas e sextas às 21h. Vesperal das moças às quintas às 17h. Sábados às 18h e 21h e domingos às 19h. Descanso da Cia. ás segundas feiras. Preço: R$ 60,00 (meia entrada para estudantes e idosos). NÃO DEIXE DE VER.
 
     Que bom se fosse verdade!

        07/04/2020

       

 

quarta-feira, 1 de abril de 2020

SOPRO – MITsp 2020



        Esta peça do encenador português Tiago Rodrigues foi a única do eixo “Mostra de Espetáculos” da MITsp 2020 que foi cancelada em razão da pandemia do corona vírus. Havia uma grande expectativa em relação a ela porque além da sinopse que prometia muito, o outro espetáculo do diretor (By Heart) foi muito bem sucedido, daí a grande decepção com seu cancelamento.
        Por intermédio da minha querida amiga Rosario fiquei sabendo que a peça estava disponível na Vimeo e hoje tive a chance de assisti-la. Apesar das limitações do “teatro filmado” visto no note book foi um prazer enorme tomar conhecimento da mesma.

        Para realizar o seu criativo espetáculo de meta teatro, Tiago baseou-se na memória de Cristina Vidal que por cerca de 30 anos trabalhou como ponto (aquele componente que sopra as falas para os atores, principalmente quando estes se esquecem das mesmas) no Teatro Nacional D. Maria II em Lisboa; função importante para as montagens no início do século XX que desapareceu no Brasil ao final da década de 1940, mas parece que em Portugal durou mais tempo.
        Duas atrizes dão vozes aos pensamentos de Cristina, outra interpreta a diretora com quem ela trabalhou e dois atores se revezam nos outros papeis, sendo um deles o alter ego de Tiago Rodrigues. Durante toda a apresentação a própria Cristina simula soprar o texto para o elenco.
        Nas lembranças de Cristina vão surgindo cenas de Antígona, de As Três Irmãs e de outras peças nas quais ela trabalhou como ponto ao longo desses trinta anos e as cenas dessas peças se entrelaçam com fatos da companhia vivenciados por ela. A estrutura parece complexa ao explicar, mas extremamente simples e prazerosa quando em cena.
         O elenco é ótimo e espontâneo com dicção em um português lusitano claro e entendível. Desse elenco original (Beatriz Brás, Cristina Vidal, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Sofia Dias e Vitor Ruiz) se apresentariam no Brasil apenas Cristina Vidal e Isabel Abreu, sendo os outros quatro substituídos por Beatriz Maia, Marco Mendonça, Romeu Costa e Sara Barros Leitão.
        O cenário clean formado por poucos adereços e cortinas brancas que esvoaçam ao sabor da natureza é banhado por sugestivo desenho de luz, ambos (cenário e luz) assinados por Thomas Walgrave. Imagina-se que ao vivo esses efeitos sejam ainda mais belos. A trilha sonora é também digna de nota.
        O diretor brinca ao comentar que a peça poderia terminar em dois momentos, mas reserva uma emocionante surpresa com o terceiro e definitivo final, que não vou revelar para não ser desmancha prazer para quem vai assistir.
        Em vários momentos a peça me remeteu a alguns trabalhos dirigidos por Enrique Diaz, especialmente, Ensaio. Hamlet (Cia. dos Atores - 2004) e Gaivota – Tema Para Um Conto Curto (2007).

        Essa montagem teria sido um dos grandes momentos da MITsp 2020 e esperemos que Tó Araujo e Guilherme Marques a reprogramem para uma próxima MITsp. Na classificação que fiz sobre os dez (agora onze) a que assisti, ela estaria logo abaixo da primeira colocada que foi Casa Mãe, mas esta pode ser considerada hors concours.

        Só como curiosidade e brincadeira: Considerando a semelhança física com os atores do vídeo, numa eventual montagem brasileira eu escalaria  Alejandra Sampaio no lugar da atriz de cabelos longos que interpreta o ponto,  Claudia Missura no lugar da atriz de cabelos curtos que também interpreta o ponto e  André Garolli no lugar do ator que interpreta o alter ego de Tiago Rodrigues. Na direção poderiam estar o Enrique Diaz ou o Kiko Marques.

         LOGO VAMOS NOS VER EM ALGUM TEATRO.
AH, SE VAMOS!

VIVA O TEATRO!

        01/04/2020