quarta-feira, 21 de outubro de 2015

PERGUNTE AO TEMPO



E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Não serei nem terás sido
Tempo, tempo, tempo, tempo...

        Esses lindos versos de um Caetano Veloso dos bons tempos poderia servir de epígrafe para o belo espetáculo escrito e dirigido por Otávio Martins em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil. A relação do tempo e o espaço que a física elementar define simplesmente como velocidade já foi uma simples fórmula nos tempos inconsequentes de estudante, mas à medida que a vida avança, os lados filosófico e existencial de todos nós começam a questionar passado, presente, futuro, tempo e espaço. E foi nessa aventura que o dramaturgo embarcou para escrever Pergunte ao Tempo por meio da história de um jovem perdido numa véspera de ano novo que tem ao seu lado uma estranha mulher que parece ter sido sua namorada em algum lugar (olha o conceito de espaço) de certo ano (olha o conceito de tempo). Para deixar a situação mais complexa surge um senhor cuja identidade o espectador vai descobrir com o desenrolar da trama. Tudo é enigmático e aquele que espera um final concreto para a peça é no mínimo ingênuo.
        O texto tem postura de fantasia e a tradução cênica do próprio autor é fiel a essa postura. A iluminação de Pedro Garrafa, em certos momentos valendo-se apenas de lanternas, é minimalista e discreta focando em planos precisos e decorando o belo cenário de Cássio Brasil que inclui um sugestivo tapete de água e uma cortina metálica. A música de Ricardo Severo de clara inspiração em Philip Glass é bonita e emoldura perfeitamente a ação.


        Sob a batuta da direção o elenco atua em perfeita harmonia interpretativa: o jovem Giovani Tozi desincumbe-se do longo monólogo inicial e mantém a garra e a indignação (é ele que tem tantas perguntas e tão poucas respostas durante a ação) até o final; Guta Ruiz tem voz poderosa e forte presença cênica sendo que em certos momentos impõe-se além da conta sobre as demais personagens; Luiz Damasceno é talento já conhecido e depois de uma atuação bastante equivocada em Aula Magna Com Stálin volta a brilhar como o homem que surge em algum lugar do tempo e do espaço. Há um momento particularmente belo e poético do espetáculo quando esse homem recorda como seu pai sofria ao preencher a cada ano uma nova agenda telefônica que tinha cada vez menos nomes...
        Muita literatura, muito cinema e muito teatro já abordaram a questão do tempo e o espaço; esta incursão de Otávio Martins é um bom exemplo de que o assunto é inesgotável, sempre bem vindo e nos conduz a profundas divagações sobre “onqotô”, “qeqosô” e “prondeuvô”.
        O luxuoso programa da peça contém uma frase do autor com a qual encerro esta matéria: “Nem toda física, nem toda a relação de espaço e tempo, nem todas as crenças do mundo, preenchem o coração de um homem”.

        Pergunte ao Tempo está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de 21/10 a 16/12 às segundas e quartas às 20h (às terças feiras o espaço não abre).

Fotos de Edgard Tadeu Tavares.
 
21/10/201

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

GODOFREDO E ALICE


        Ele a ama e ela o ama. Seria relativamente simples e bem aceito se ele não se chamasse Alice e ela não se chamasse Godofredo. Ela, Alice, uma mulher em um corpo de homem e ele, Godofredo, um homem em um corpo de mulher... Perdidamente apaixonados! Como resolver esse impasse e como enfrentar a intolerância da família e da sociedade?
        Essas são as questões que Newton Moreno nos coloca de maneira suave e até engraçada neste drama que trata de questões e dúvidas que afetam todos os jovens, em especial, os homossexuais.
        Um elenco jovem enfrenta com coragem as personagens propositalmente estereotipadas que devem interpretar: as "bichinhas" efeminadas, as "sapatas" masculinizadas, a mãe intolerante, a avó compreensiva e até o hetero que é apaixonado por Godofredo. O bonito disso tudo é que todos se revelam seres humanos dotados de sentimentos muitos deles bastante nobres e aí está a grande lição de tolerância e humanidade que o espetáculo dirigido por Cecília Schucman e Tatiana Caltabiano nos passa. Num momento particularmente bem resolvido da peça o casal vai a um desses programas de TV para solicitar dinheiro para que ambos façam cirurgia de mudança de sexo e um apresentador canibalesco como tantos que presenciamos na realidade (ótima intervenção de Luiz Gustavo Jahjah) explora ao máximo a situação envolvendo o público nas propostas de solução do assunto. Na sessão a que assisti um casal da plateia nas mesmas condições de Godofredo e Alice deu um depoimento sobre seu relacionamento.
        Godofredo e Alice soma-se a Luís Antonio, Gabriela, Maria Que Virou Jonas ou A Força da Imaginação e BRTrans na delicada e necessária discussão sobre travestismo, transexualismo e mudança de sexo e tem importância adicional por tratar do universo jovem e a ele se dirigir.
        A direção optou por apresentar o espetáculo na forma de musical utilizando de maneira bastante criteriosa canções de Lulu Santos cujas letras se encaixam na trama apresentada.
        Godofredo e Alice trata de assuntos delicados e polêmicos que nos fazem refletir e tomar posição sobre os mesmos, mas o faz de maneira poética e até divertida resultando também em ótimo entretenimento.
        Lamentavelmente a peça cumpriu temporada somente até 14/10 no Centro Cultural São Paulo. Fique atento se ela voltar ao cartaz e leve seus filhos adolescentes.

14/10/2015



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

DO AMOR


O PRIMEIRO MINYANA A GENTE NÃO ESQUECE... TAMPOUCO O SEGUNDO!


         No ano de 2006 a Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba apresentou em São Paulo a peça Suíte 1 do dramaturgo francês Philippe Minyana. Foi uma grata descoberta ver e ouvir aquele texto, uma verdadeira partitura regida (dirigida) por Márcio Abreu tendo como instrumentos as inflexões vocais dos atores. Escrita em 2002 a ela seguiram-se Suíte 2 e Suíte 3 nunca montadas por aqui. Instaurou-se a curiosidade de conhecer melhor a obra do autor, mas além de pouco montadas, com exceção de Suíte 1, suas obras também não foram publicadas no Brasil.
         Agora por iniciativa de Amanda Banffy (produtora, tradutora e atriz) nos chega Do Amor (De l’Amour), peça escrita em 2011 por Minyana. Apresentada de forma não linear a peça pipoca flashes da vida do casal Cristina e Bob que esporadicamente é visitado pelo casal Milene e Ted. As ações interpretadas são intercaladas por outras narradas. São momentos da vida cotidiana desses quatro e de quaisquer seres que se relacionam: afetos, discordâncias, amizade, amor, nascimento, morte, falta de dinheiro, viagens, doenças, velhice.
         A estimulante montagem de Francisco Medeiros é marcada pela excelente trilha sonora de Dr. Morris que comanda a movimentação e o tempo dos atores. Outra vez o texto de Minyana conduz a uma montagem na forma de partitura que exige muita concentração por parte dos quatro intérpretes para que o todo não saia do ritmo.

Gustavo Duque (substituido por Leonardo Antunes)/Amanda Banffy/Laís Marques/Carlos Baldim.
Foto: Marília Scarabello

         Por detrás de aparente fragilidade física, Amanda Banffy revela forte presença cênica quer quando interpreta, quer quando narra ou mesmo em suas entradas e saídas de cena. Laís Marques inicia a peça num tom alto e discursivo, mas no decorrer da peça alcança o tom desejado. Carlos Baldim tem bom desempenho e talvez seja aquele que melhor revele a fragilidade dos idosos. Mérito especial para Leonardo Antunes que com poucos ensaios (substituiu o ator Gustavo Duque) e apenas três apresentações alcança ótimo resultado tanto na interpretação como na complicada movimentação cênica. Nominei cada um deles, mas cabe lembrar que como um todo o elenco é homogêneo e harmonioso. Em certo momento os atores trocam de personagem (indicação do autor ou do diretor?) o que acentua que aquilo que ocorre em cena pode ocorrer com qualquer ser humano. Em conversa com os atores ao final do espetáculo soubemos que naquele fim de semana nasceu a filha de um elemento do grupo e naquele mesmo dia havia falecido a mãe de outro. Coisas que acontecem com você e comigo. Coisas da vida mostradas de forma tão original por Minyana neste DO AMOR.
         Os figurinos de Marichilene Artisevskis abusam dos capotes, sobretudos e boinas indicando que a peça tem ação em ambientes muito frios, mas penalizando os atores nestes dias tão quentes de primavera do hemisfério sul.
         DO AMOR é um impecável exercício de teatro orquestrado por Francisco Medeiros que pessoas sensíveis e curiosas por novas linguagens teatrais não podem perder. Está em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade às quintas, sextas e sábados às 20h com ingressos gratuitos. SÓ ATÉ 24 DE OUTUBRO.


12/10/2015
        


domingo, 4 de outubro de 2015

A MÁQUINA TCHEKHOV



TIO VÂNIA, QUEM DIRIA, ACABOU NA ILHA DE SACALINA!

         O espetáculo A Máquina Tchekhov oferece leituras distintas para quatro tipos de público:
         1 - Aquele que está indo pela primeira vez ao teatro por curiosidade ou para acompanhar uma amiga.
         2 - Aquele que frequenta teatro, conhece sua linguagem, mas não está familiarizado com a obra de Anton Tchekhov (1860-1904).
        3 - Aquele que conhece a obra do autor russo, assim como as personagens de suas peças.
         4 - Aquele que além de conhecer a obra de Tchekhov já leu também a peça do dramaturgo romeno Matéi Visniec (1956-).
         Pelas qualidades do texto e da tradução cênica realizada pelas atrizes, agora diretoras, Clara Carvalho e Denise Weinberg arrisco afirmar que qualquer que seja o caso o prazer do espectador está garantido.
          A primeira vez a que assisti ao espetáculo eu me incluía no grupo 3 e foi uma delícia jogar o quebra cabeças de descobrir qual personagem de qual peça tratava determinada cena. Instigado pela criativa encenação fui em busca do texto que sorvi numa golada incluindo o glossário no final que dá algumas informações sobre as personagens. Tudo “parcialmente” decifrado voltei ontem ao Instituto Capobianco para rever a primorosa montagem de Clara e Denise.
         Visniec demonstra conhecer plenamente a obra de Tchekhov colocando em cena as personagens do russo em ações que sucedem aquelas das peças. O melhor exemplo é aquele em que Tchekhov em sua viagem à ilha de Sacalina encontra com Tio Vânia que após o término da peça da qual é protagonista realizou o sonho de assassinar Serebriakov, viúvo de sua irmã e casado com a bela Helena. Pelo crime Tio Vânia é levado para Sacalina, local de envio dos criminosos russos sobre o qual Tchekhov escreveu um livro quase científico. Outro instigante momento é aquele em que os médicos de três peças distintas velam o corpo de Tchekhov (esta é a cena 7 do original, mas as encenadoras sabiamente a transferiram para o início do espetáculo  introduzindo o público no universo do absurdo  de Visniec). Visniec se propõe até a colocar uma aula de dramaturgia dada por Tchekhov ao frágil e inseguro candidato a dramaturgo Treplev de A Gaivota.
         Movidas por suas sensibilidades e pelos seus plenos conhecimentos do fazer teatral Clara e Denise realizaram espetáculo maduro que enriquece o texto de Visniec. Elementos essenciais de cena criados pelo talento de Chris Aizner e personagens vagantes são banhados pela belíssima iluminação de Wagner Pinto.


         Mariana Muniz que já foi Nina na inesquecível montagem de Lago 21 realizada em 1988 por Jorge Takla tem momentos preciosos como a empregada Anfissa (de As Três Irmãs) que aqui assiste ao próprio Tchekhov e, principalmente, como Liuba (O Jardim das Cerejeiras) quase ao final da peça. Emmilio Moreira brilha como o dócil Tio Vânia não arrependido do crime que cometeu. Brian Penido interpreta Tchekhov frágil à beira da morte, mais “doente” do que “médico”. Muito bonita a participação de Fernando Poli como Firs, o criado esquecido de O Jardim das Cerejeiras. Michel Waisman compõe com delicadeza o andarilho em busca de novos caminhos talvez representando a revolução russa que estava para chegar. Ariana Silva, Dinah Feldman e Fernando Rocha completam o homogêneo elenco.
         A lamentar apenas a não inclusão da cena onde Tchekhov morto visita sua casa em Ialta, agora um museu que é cuidado por Bobik que nem aparece em As Três Irmãs, mas é apenas citado pela personagem Solioni (Se esse menino fosse meu, eu o fritaria numa frigideira e o comeria). Esta é a cena final do original que, segundo as diretoras, por razões técnicas, não foi incluída na montagem.
         Espetáculo intimista para apenas 50 privilegiados com apenas duas sessões semanais só pôde ser realizado pelo fato do projeto ter sido aprovado pelo Prêmio Zé Renato. É triste constatar que terminado o patrocínio espetáculo tão belo e importante não consiga se manter em cartaz. “Teatro, esse enjeitado”, como já dizia Oswald de Andrade. Pobre cultura brasileira!
         A MÁQUINA TCHEKHOV está em cartaz no Instituto Capobianco aos sábados (21h) e aos domingos (19h) apenas até o dia 25/10. Como já escrevi no início desta matéria o espetáculo é IMPERDÍVEL para qualquer tipo de público... agora, se você ama e/ou faz teatro é INCONCEBÍVEL perdê-lo!

04/10/2015


quinta-feira, 1 de outubro de 2015

PRIMAVERA TEATRAL 2015


Chico Carvalho (Ariel) em A Tempestade

        Apesar de todos os percalços, São Paulo oferece uma rica temporada teatral neste início de primavera indo desde espetáculos de grupos alternativos até grandes produções com astros globais. Neste segundo caso inserem-se as surpreendentes interpretações de Tarcisio Meira em O Camareiro (direção de Ulysses Cruz) e de Chistiane Torloni em Master Class (direção de José Possi Neto); são produções bem sucedidas artística e comercialmente a partir de textos convencionais já considerados clássicos do teatro de língua inglesa. Gabriel Villela perfila-se com esses diretores de renome nos cartazes da cidade oferecendo aquele que talvez seja o espetáculo mais bonito do ano: A Tempestade de Shakespeare ambientada numa paisagem repleta de objetos e canções mineiras que remetem a outro trabalho antológico do encenador (Romeu e Julieta de 2001 com o Grupo Galpão). Chico Carvalho tem atuação não menos que excepcional como o diáfano e etéreo Ariel (ao que eu saiba nunca houve intérprete que incorporasse tão bem fisicamente o “espírito do ar” criado pelo bardo inglês). Menos famoso que seus colegas acima citados, o encenador Hugo Coelho faz divertida e eficiente montagem de Morte Acidental de Um Anarquista(*) com interpretação irreverente de Dan Stulbach.

        Máquina Tchekov é um instigante texto de Matéi Visniec que se junta a Ronaldo Ciambroni e a Mário Bortolotto como um dos autores mais montados em São Paulo. Ironia à parte, o dramaturgo romeno em boa hora tem várias de suas peças montadas por aqui. Esta peça trata do que aconteceu com as personagens de várias peças do autor russo em função do destino que ele lhes reservou; descontentes com seus desfechos elas vêm tirar satisfação com seu criador em seu leito de morte. A tradução cênica de Clara Carvalho e Denise Weimberg é límpida e acerta esteticamente ao colocar essas personagens como espíritos vagantes pelo ambiente.

        Ao Pé do Ouvido é uma nova experiência do Núcleo de Teatro Experimental dirigido por Zé Henrique de Paula: atores ouvem com fone de ouvido relatos de migrantes nordestinos e tentam reproduzir seus sentimentos por meio de voz e gesto. Tem a marca de qualidade do talentoso grupo da Rua Barra Funda.

        Tanto Faz é uma gostosa incursão de Mário Bortolotto no universo pop de Reinaldo Moraes. 23 atores dão conta das inúmeras personagens presentes no livro com destaque para Eldo Mendes como o protagonista Ricardo e para o próprio Bortolotto como o divertido amigo Chico.

        Bonecas Quebradas (*) foi a grande surpresa do mês de setembro e motivo de matéria deste blog.

      Zabobrim, O Rei Vagabundo. Mesclando elementos da Commedia Dell’Arte com a forma do circo teatro a dupla Esio Magalhães e Tiche Vianna criou este divertido espetáculo que conta a história de um pobre diabo que por obra de uma “genia” transforma-se em rei, mas para não fugir do seu destino de palhaço, é um rei cheio de percalços e trombadas.

        Agreste. Revisto depois de onze anos o espetáculo conserva a beleza, a surpresa e a frescura de quando estreou. Texto, direção e interpretações perfeitos. Montagem clássica do teatro brasileiro.

       Espetáculo criado por elementos da comunidade de Heliópolis, A Inocência do Que Eu (Não) Sei (*) é uma séria reflexão sobre os deficientes sistemas educacionais da “Pátria Educadora”.

        Encerrando a resenha Incêndios (*), o pungente espetáculo do grupo mexicano Tapioca Inn com a grande atriz Karina Gidi, que cumpriu curta temporada de duas semanas no Sesc Pompeia. QUEM VIU, VIU!!

(*) Vide matérias sobre essas peças neste blog consultando o marcador pelo título das mesmas.

30/09/2015