segunda-feira, 29 de outubro de 2012

MYRIAN MUNIZ 81 ANOS.

            O que esperar de um sujeito de 28 anos, engenheiro, pós-graduado em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas e trabalhando numa multinacional holandesa, senão o retrato perfeito de um futuro “executivo burguês bem sucedido”? Não fossem as constantes escapadelas para as artes (cinema, teatro e música), a indignação com a ditadura brasileira e a Myrian Muniz, isso teria acontecido.  Corria o ano de 1972 e esse jovem sentia a necessidade de algo que mudasse o rumo de sua vida: nos fins de semana dirigia um grupo de teatro na PUC e buscava algo mais. Foi então que o Sesc Consolação abriu um curso intitulado “Teatro – Comunicação e Criatividade” ministrado por Myrian Muniz e seu então marido Sylvio Zilber. Eu já havia assistido a algumas peças com Myrian (O Inspetor Geral, La Moschetta e Marta Saré, entre outras) e admirava muito aquela atriz com interpretações viscerais e dona de voz inconfundível, então resolvi me inscrever no curso.   No prospecto anunciava-se que “as aulas visam exercitar o autoconhecimento físico e psíquico, o inter-relacionamento e a dinâmica do comportamento”. Enquanto Sylvio cuidava do físico por meio de aulas de ginástica e expressão corporal, Myrian cuidava de mexer com nossos corações e mentes por meio de exercícios de comunicação e criatividade e de laboratórios de sensibilidade e interpretação. Já no primeiro dia, durante a costumeira apresentação individual, Myrian solicitou que as pessoas se apresentassem cantando, a seguir propôs exercícios de toque físico, encerrando com a solicitação de que cada um indicasse três de suas qualidades e três de seus defeitos. Houve quem chorou nesse primeiro encontro e até quem desistiu do curso. Com muita sensibilidade, mas também com certa agressividade, Myrian pegava pesado, criticando individualmente posturas e ações dos integrantes.


            E assim sucederam-se as aulas. Eram aulas de três horas e meia, três vezes por semana. Na primeira hora e meia havia esquentamento físico com o Sylvio e nas duas horas seguintes Myrian desenvolvia exercícios com o uso de objetos, de instrumentos musicais (principalmente castanholas), de poemas e textos teatrais. Esses exercícios eram de tal maneira viscerais que saíamos das aulas, literalmente, cambaleando. Por meio desses exercícios o grupo ficou muito unido e até íntimo, uma vez que nos desnudávamos durante a realização dos mesmos. Não foram poucos os preconceitos e os sentimentos de culpa que deixamos naquela sala do Sesc Consolação. Tudo jogado no lixo, que era o local mais apropriado para tais coisas. Nunca mais fui o mesmo após esses quatro meses.
            Myrian era transgressora e corajosa. Naquele período ela foi convidada para dirigir um grupo de teatro no Clube Harmonia, ponto de encontro da alta burguesia paulistana. Escolheu um texto de Brecht para montar com o grupo (seria bem mais cômodo ter selecionado um vaudeville ou algo do gênero) e nada menos que “O Casamento do Pequeno Burguês”! Claro que foi um escândalo e ela convidou o nosso grupo para assistir ao espetáculo junto com as senhoras bem casadas do clube. Essa era a Myrian Muniz.
            Nunca mais perdi o contato com ela. Em cada peça que ela atuava, eu ia até o camarim cumprimentá-la e reafirmar que ela tinha sido muito importante na minha formação humanista; ela, então, dava aquela gargalhada tão sua e me abraçava.
            A última vez que a vi foi na homenagem que ela recebeu no Teatro de Arena no dia 20 de outubro de 2004. Emocionada e bastante fragilizada fisicamente, Myrian ajoelhou-se e beijou aquele chão, testemunha de grandes momentos de sua carreira. Dois meses depois Myrian partia, deixando em cada de nós um pouco de sua irreverência e coragem. Obrigado, Mestra!

Foto de Vania Toledo


terça-feira, 16 de outubro de 2012

FICÇÃO É A REALIDADE DA COMPANHIA HIATO

     A Companhia Hiato está de volta. Houve um bem sucedido espetáculo em 2007-2008(Cachorro Morto), seguido do premiado Escuro (2009-2010) culminando com O Jardim (2011), espetáculo de muita sensibilidade com uma concepção cênica arrojada e inovadora que também recebeu plena aceitação do público e da crítica. Todos esses trabalhos mostraram o talento tanto do diretor/dramaturgo Leonardo Moreira como do jovem elenco que em grande parte está presente desde o primeiro espetáculo e ainda da equipe técnica com destaque para a cenógrafa e iluminadora Marisa Bentivegna. E eis que agora temos Ficção, voltando o grupo a se superar e a nos surpreender.
     Os temas caros ao grupo como os limites entre ficção e realidade, os assuntos pessoais de cada integrante, a relatividade do tempo e as questões da memória voltam a ser trabalhados desta vez por meio de solos dos atores Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Thiago Amoral e Paula Picarelli. O espetáculo é dividido em dois solos de uma hora cada por noite, sendo necessário três deslocamentos ao Sesc Pompeia para assistir a todo o trabalho. Garanto que vale as viagens!

Antessala

     O espaço concebido por Marisa Bentivegna está bem de acordo com o intimismo do espetáculo. Há uma antessala onde ficam as mesas de som e luz e muitas fotos de diversas fases da vida dos atores, em seguida podemos passear pelo camarim com dois lugares onde os atores da noite deixam os seus pertences e preparam-se à vista do público (referência muito bem vinda ao que é feito pelo grupo francês Théâtre du Soleil). O espaço cênico em si contém de um lado as paredes de tijolinho e as janelas (por onde se avista os passantes na rua) e do outro um cenário que imita não só as paredes “de verdade” como uma janela com a projeção de passantes. É nesse espaço nu de objetos de cena que os atores farão os seus solos para 45 privilegiados espectadores.

Luciana Paes e Paula Picarelli preparando-se no camarim.

     Os solos são independentes, mas possuem alguns elos como Paula Picarelli passeando no camarim com um traje que tem a ver com a cena da Luciana Paes, ou a frase “No more” que é repetida em três das cenas ou ainda outros pequenos detalhes que não vale a pena citar sob pena de tirar as sensações de surpresa e descobrimento reservadas a  cada espectador. É preciso estar atento e forte, já dizia Caetano Veloso.

Parte do espaço cênico com vistas das paredes-cenário e do camarim.

     Todos os solos foram criados a partir da experiência pessoal de cada ator mesclando realidade com ficção, nunca ficando claro o limite entre uma e outra. A maioria dos conteúdos tem a ver com relações familiares não resolvidas (uma irmã que tem diferenças com outra irmã, um filho não aceito pelo pai, uma pessoa que perdeu um ente querido, outra que não gosta de sua aparência física). Em se tratando das experiências desses seis jovens de classe média, pelo espetáculo pode-se concluir  que a eles incomodam mais as questões individuais do que aquelas políticas (apesar que tudo é político) e isso não deixa de ser um reflexo da atual juventude brasileira . O fato é que da maneira como estão encenados, esses solos extrapolam o individual fazendo o espectador refletir sobre o coletivo.
     O interesse pelos solos varia em função de seus conteúdos, da identificação do espectador com este ou aquele e pela forma como os mesmos são apresentados, incluindo neste último ponto o desempenho do ator.
     O trabalho do elenco é primoroso merecendo todos os prêmios de interpretação do ano e os conteúdos variam, sendo o mais consistente -no meu ponto de vista- aquele feito pela Luciana Paes (que também é a melhor em cena), seguido do realizado pela Aline Filócomo e daquele interpretado pelo Thiago Amoral. Repito que esses são os meus destaques, sem absolutamente ter deixado de gostar e de me emocionar, principalmente com as interpretações, dos outros três solos.
     Corajoso e comovente, Ficção arranca lágrimas e faz pensar. Perfeito equilíbrio entre razão e emoção. E não é para isso que servem as artes?
     Ficção está em cartaz no Sesc Pompeia de terça a sábado às 21 horas e aos domingos e feriados às 19 horas até 04/11/2012.
     Escala dos solos: Terças e sábados: Luciana e Paula / Quartas e domingos: Maria Amélia e Thiago / Quintas e sextas: Fernanda e Aline.
     Corra para garantir o seu privilegiado lugar. IMPERDÍVEL.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

EU SOU "SOE IKIN EY"

     
     Após o bem sucedido Prometheus – A tragédia do fogo, a Cia. Balagan dirigida por Maria Thaís está de volta com um novo espetáculo. Trata-se de Recusa, em cartaz em muito bem vindo novo espaço teatral situado na SP Escola de Teatro na Praça Roosevelt.
     Louve-se em primeiro lugar o trabalho vocal e corporal de Eduardo Okamoto (ator convidado) e seu bem sucedido contraponto interpretado por Antonio Salvador.

     A partir de notícia de jornal sobre os dois últimos sobreviventes de uma tribo indígena que recusaram a fazer contato com a dita civilização, Luís Fernando de Abreu (responsável pela dramaturgia do espetáculo) realiza um trabalho ousado ao abandonar a narrativa tradicional e enveredar pela chamada narrativa fragmentada expondo momentos de vários duplos (Kuarahy e Jasy, Macunaíma e Piá, Pud e Pudleré) por meio de seus hábitos e lendas.
     A encenação de Maria Thaís é vigorosa e concentra-se nas ações dos dois atores, apesar de ter grandes aliados em Marcio Medina (cenografia e figurinos), Marluí Miranda (direção musical, supervisionando os elementos instrumentais  que são os atores) e Davi de Brito (iluminação).
     O programa da peça é muito informativo e tem belas fotos de Ale Catan. Entre as muitas informações uma curiosidade: o grupo fez uma viagem à Rondônia em 2011 e no contato com os índios da clã Paiter confrontaram hábitos e palavras, sendo que “os velhos conversaram entre si para escolherem algumas palavras do seu vocabulário que pudessem equivaler aos termos teatrais. Para espectadores, escolheram: SOE IKIN EY. Perguntamos o sentido da palavra e eles responderam: OS CURIOSOS.”

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

MAIS UMA VEZ ALICE... Que bom!

     A Alice de Lewis Carroll é fonte de inspiração inesgotável para os artistas. No teatro Alice já foi usada de todas as maneiras possíveis: infantil, abusada, estigmatizada, drogada (afinal, o que é aquele chá?); sendo Alice Através do Espelho (1999) da Armazém Companhia de Teatro dirigida por Paulo de Moraes a mais memorável (ali por meio de recursos cênicos, o público atravessava o espelho, aumentava e diminuía de tamanho e escorregava pelo buraco, sentindo as mesmas sensações da protagonista).
     Eis que surge uma nova Alice, agora sob a ótica de René Piazentin e o Núcleo Imaginário e ela continua nos surpreendendo. Clássico é isso aí; quando bem tratado, rejuvenesce e se torna atual. Uma produção bastante simples cujo cenário é composto de caixas de papelão que contém os brinquedos de Alice e que se sustenta na interpretação dos sete jovens e talentosos atores. Há momentos bastante engraçados que remetem ao teatro do absurdo e outros extremamente poéticos como o diálogo entre Alice e o pássaro Dodô cuja raça se extinguiu por não saber voar. Tudo gira em torno do que é real e o que é imaginário. E nossa vida não é mais ou menos assim? Afinal se você não sabe para onde quer ir, pode ir para qualquer direção. Qual o sentido da direção? Também não importa.
     Uma Alice Imaginária em cartaz no Teatro Commune às quintas e sextas  às 21h até 26/10/2012.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

NAVEGANDO PELOS RIOS DE SÃO PAULO (DO CENTRO ATÉ SANTO AMARO)

     Mais um espetáculo itinerante pelas ruas da cidade soma-se ao extremamente bem sucedido Barafonda da Cia. São Jorge de Variedades (já saiu de cartaz) e ao Bom Retiro 958 metros do Teatro da Vertigem. Desta vez é a Companhia Auto Retrato que nos propõe uma viagem na peça Origem/Destino circulando não pelas ruas, mas pelos rios e córregos de São Paulo! Explico: O trajeto é o mesmo dos fluxos de água que foram canalizados, soterrados e hoje muitos deles estão sob os nossos pés. O que seria de São Paulo se esses rios ainda estivessem na superfície e servissem como vias de transporte para a cidade? Essa é uma das questões levantadas pelo espetáculo que tem momentos de rara poesia como aquele das lavadeiras esfregando suas roupas no Córrego Anhangabaú, enquanto um Prestes Maia inflamado do alto do viaduto (aqueduto segundo a nossa guia) gasta sua retórica a favor da canalização dos rios e Saturnino de Brito defende a posição contrária.

     O trajeto inicia-se exatamente ao meio dia nas escadarias da Catedral da Sé e segue até a Ladeira da Memória, tendo como fio condutor a personagem Alice (baseada em relatos colhidos pelo grupo) que teve um namorado chamado Domenico e agora vai visitar a viúva do mesmo; outras histórias entrelaçam-se com essa, sempre com grande interação com os acompanhantes e os passantes, que às vezes se confundem com as personagens interpretadas pelos atores. Esse trajeto dura aproximadamente duas horas e, sob meu ponto de vista, poderia ser encurtado em pelo menos meia hora, uma vez que ainda haverá mais uma hora de percurso com o ônibus. Há um belo número musical interpretado por um quarteto no final desta fase do espetáculo. A seguir o grupo segue de ônibus até Santo Amaro, porém não os acompanhei até o final. O programa da peça dá uma boa ideia dos trajetos a pé e de ônibus. VALE A PENA CONFERIR!


ORIGEM DESTINO – Espetáculo da Companhia Auto-Retrato 
QUANDO: segundas e quartas-feiras, de 17 de Setembro a 31 de Outubro, sempre às 12h
LOCAL DE SAÍDA: Praça da Sé, em frente à Catedral
CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA : Livre
QUANTO: Gratuito
É necessário trazer seu bilhete único ou R$3,00 trocado [sujeito a lotação do ônibus].
Em caso de chuva, não haverá espetáculo.
INFORMAÇÕES: producao@ciaautoretrato.com.br