terça-feira, 30 de novembro de 2021

LEONARDO DA VINCI – A OBRA OCULTA

 

Consistente, original e muito criativa. Esses três adjetivos poderiam definir a dramaturgia de Leonardo Da Vinci – A Obra Oculta de autoria do italiano Michele Santeramo.

O que mais poderia se inventar ou escrever sobre o gênio Leonardo Da Vinci (1452-1519), tão admirado, incensado, estudado e biografado há mais de cinco séculos? Santeramo coloca Da Vinci dialogando com duas figuras presentes em suas obras, nada mais nada menos que Mona Lisa e Jesus.

A questão do polímata é que a morte não devia existir e que todo humano deveria ser eterno. Tempo é algo fundamental para quem é mortal, mas não tem a menor importância para quem está para sempre imortalizado em uma obra de arte. Enquanto os primeiros almejam mais tempo por estas paragens, os segundos se entediam diante de tanta eternidade.

Em certo momento a peça propõe uma pesquisa sobre quem gostaria de viver no país onde nunca se morre. Milhares de mortais se apresentam, mas à medida que vão se impondo restrições quanto ao amor, à imaginação, ao dinheiro, ao sexo e à memória as pessoas vão desistindo.

Esse brilhante texto do dramaturgo italiano tem uma encenação brasileira à sua altura assinada por Márcio Medina, na forma de filme realizado nas dependências da Casa das Caldeiras.

A interpretação, em parte na forma de leitura dramática, cabe ao sempre excelente Cacá Carvalho que faz as vezes de Da Vinci e de seus interlocutores. Mais um grande momento do grande ator.

Destaque para a importante e bela direção de fotografia de Junae Andreazza.   

30/11/2021 

SERVIÇO:

Temporada de 19/11 a 08/12

Segunda a sábado às 20h

Domingo às 18h 

Acesso: https://www.youtube.com/corporastreado

Gratuito

domingo, 28 de novembro de 2021

HUMILHADOS E OFENDIDOS

 

INTRODUÇÃO 

Não há como não lembrar do romance de Dostoievski ao chegar no Teatro Cemitério de Automóveis. É muito triste testemunhar a agonia final do espaço com as portas semicerradas, o bar, antes cheio de vida e de cerveja, agora fechado e as instalações literalmente caindo aos pedaços, por descaso do síndico e de alguns moradores do prédio. Fui carinhosamente recebido pelo Lucas Mayor que me relatou parte das humilhações sofridas por Mário Bortolotto e o grupo.

Em qualquer país onde a cultura tem importância, Bortolotto seria personagem cultuada por sua importância como autor, ator e incansável batalhador pelos direitos humanos, tema sempre presente em suas obras. Não é por certa marginalidade à sociedade proposta pelo autor tanto em sua obra como em sua vida que ele deveria ser tratado assim.

Dessa maneira aquele espaço que durante mais de dez anos abrigou o grupo Cemitério de Automóveis fecha suas portas para dar lugar a mais um mercadinho. Teatro, música e outras obras de arte trocadas por pimentões, bananas, mandiopans e muita Coca Cola.

O espetáculo que fecha esse ciclo do Cemitério de Automóveis sugestivamente tem a humilhação como tema. 

HUMILHAÇÃO – O ESPETÁCULO 

Este espetáculo segue o mesmo esquema de Corpo, também dirigido por Lucas Mayor e Marcos Gomes no início de 2020.  São cenas curtas com dois atores tratando de um mesmo tema, neste caso a humilhação, a partir de um ensaio do norte americano Wayne Koestenbaum.

Aqui se comprova na plenitude a característica que só o teatro tem: basta um ator, um espectador e uma boa história e a magia se realiza. Não há um adereço em cena! Recursos básicos de iluminação e uma trilha sonora discreta complementam a atuação das atrizes e atores que compõem o homogêneo e talentoso elenco.

Lucas Mayor é o autor da primeira cena onde um pai é linchado virtualmente por ter deixado a filha Manu sozinha em um parque enquanto tomava um café. Texto sutil que vai se construindo aos poucos nas interpretações de Vanessa Bruno (a mãe) e Ernani Sanchez (o pai).

Na segunda cena, escrita por Carla Kinzo, uma tímida mulher (Maura Hayas) se candidata a um emprego onde é submetida a um vexatório procedimento pela contratante (Daniela Schitini).

A curta terceira cena é de Claudia Barral e mostra um escritor (Walmir Pavam) que tem o lançamento de seu livro dependente de seu ex-caso (Pablo Perosa) que o humilha e o abandona.

A quarta e última cena é assinada por Marcos Gomes que também atua ao lado de Andrea Tedesco. A cena é impactante é mostra todo o processo de humilhação e vergonha sofrido pelo grupo com a destruição do espaço Cemitério de Automóveis maquiavelicamente programada pelo síndico do prédio. Vazamentos de água, de urina e de detritos fecais estão sendo uma constante na vida do grupo, com danificação de equipamentos, infiltrações e a triste sensação de que “estão cagando nas nossas cabeças”.

Há uma fala memorável de Andrea durante a cena onde ela diz mais ou menos o seguinte: “Tanta humilhação serviu, pelo menos, para que fizemos esta peça”.

Será que um dia este país vai deixar de ser subdesenvolvido?

Humilhação é um espetáculo potente e urgente. De uma maneira (especulação imobiliária) ou de outra (quase um despejo de um inquilino indesejado) nossa cidade vai perdendo seus espaços culturais como aconteceu recentemente com o Viga Espaço Cênico e agora com o Cemitério de Automóveis.

A torcida é que, qual Fênix, eles renasçam em outro lugar.

E VIVA O MÁRIO BORTOLOTTO!! 

29/11/2021

  

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

SUEÑO


Foto João Caldas

Existem obras que já nascem clássicas. Escrevi essa frase ao assistir a Cais ou Da Indiferença das Embarcações de Kiko Marques em 2012 e não tenho a menor dúvida de repeti-la para este Sueño de Newton Moreno.

         Moreno é autor muito presente nos palcos paulistanos desde o início do século quando estreou Deus Sabia de Tudo... em 2001. A partir daí foram mais de 20 textos encenados, entre eles obras significativas como Agreste (2004), Assombrações do Recife Velho (2005), Jacinta (2013), Um Berço de Pedra (2016) e As Cangaceiras (2019), mas nada se compara a Sueño que para mim é uma obra prima.

         Harmonizar Shakespeare e sua peça Sonhos de Uma Noite de Verão com as ditaduras latino americanas do último quarto do século 20 para retratar o Brasil de 2021 não é para qualquer um! Esse grande mérito não é o único: a forma como o encenador Moreno se utilizou para mostrar o conteúdo da peça do dramaturgo Moreno é também, no mínimo, deslumbrante.

         A peça é dividida em dois atos.


Assim começa SUEÑO

O primeiro ato inicia com uma cena digna de qualquer antologia que se faça sobre dramaturgia que é o diálogo entre um hilário Shakespeare (Paulo de Pontes) com Vine, um encenador chileno (José Roberto Jardim) no ano da queda de Allende e início da sangrenta ditadura chilena (1973). A partir daí mesclam-se cenas da peça de Shakespeare com o drama do casal revolucionário Laura (Michele Boesche) e Vine que tem que abandonar o Chile de Pinochet. A mãe de Laura (Denise Weinberg) e um representante dos torturadores (Leopoldo Pacheco) são figuras importantes desta parte da trama. Como não poderia deixar de ser, Puck está presente em vários momentos, na interpretação deliciosa de Simone Evaristo.

O segundo ato se passa vinte anos depois em 1993 quando Vine/Lisandro retorna ao Chile em busca de sua Laura/Hérmia. Aqui o tratamento é de melodrama com um desfecho que remete ao destino inexorável presente nas tragédias gregas e o autor/encenador o faz de modo brilhante, sem jamais resvalar para a pieguice e, mais importante, mantendo acesa a chama da reflexão no espectador sobre a situação socio política do Brasil atual.

Como não se emocionar até as lágrimas com o diálogo entre Vine e o velho ator que foi preso e torturado durante o regime militar? O público comunga com o elenco de um minuto de silêncio em homenagem a tantos mortos e desaparecidos em governos opressores. Estamos ali unidos lembrando dos mortos não só nas masmorras da ditadura, mas também daqueles que foram vitimados pela covid 19 por negligência desse vergonhoso desgoverno brasileiro.

A peça só podia terminar como começou: o encontro de Shakespeare com o agora envelhecido e desiludido encenador. Aos poucos a música cessa e as luzes vão se apagando.

O resto é silêncio!

Ao escrever estas linhas eu volto a me emocionar com a pujança e a beleza desse espetáculo. 

Literalmente deslumbrado com este magnifico trabalho, por obra e graça de Dionísio eu o assisti duas vezes em dois dias seguidos e na segunda noite pude apreciar de perto a performance de Gregory Slivar. Ele pontua todo o espetáculo com sons, ruídos e músicas, muitas delas compostas pela imortal Violeta Parra (1917-1967). Admirar a performance de Slivar é um espetáculo em si.


Seriam muitos os nomes envolvidos com a encenação de Sueño a serem elogiados aqui, haja vista a excelência da dezena de profissionais presentes na ficha técnica; sem querer esgotar enumero alguns deles:

Em primeiríssimo lugar, o elenco! Denise Weinberg é sempre poderosa quer como Elisabeth I, quer como a tragicômica mãe de Laura, quer como a patética Titânia. Leopoldo Pacheco tem a difícil função de humanizar o asqueroso militar torturador e se incumbe também de Oberon e de um funcionário de uma multinacional. Como já citado, Simone Evaristo se encarrega de Puck e também de uma feiticeira guerreira das florestas. Michele Boesche interpreta duas personagens antagônicas com extrema versatilidade. José Roberto Jardim é o único do elenco que interpreta um único personagem, ou melhor, dois (Vine e Lisandro) e o faz de maneira brilhante com sua costumeira elegância corporal, adquirindo neste caso ares de sofisticada coreografia. E o que dizer de Paulo de Pontes? Suas interpretações de Shakespeare, do operário minerador, de Píramo e do velho ator são absolutamente geniais. Existe alguma premiação que contempla coletivamente o elenco? Em caso positivo, este é o principal candidato. Sem esquecer de incluir a performance sonora de Gregory Slivar que é parte fundamental da encenação.

Mais elogios para a escolha da ambientação cênica no jardim do Teatro João Caetano, sob uma árvore ancestral, testemunha, sabe Deus, de quantos alegres ou tristes acontecimentos e o toque de mestre de Chris Aizner (cenógrafo) para emoldurar esse cenário natural. Aizner também assina os sugestivos figurinos junto com Leopoldo Pacheco. À luz natural do fim da tarde soma-se aos poucos a delicada iluminação de Wagner Pinto. Não há como esquecer da importante matéria de Ricardo Cardoso contida no programa da peça que muito auxilia a compreensão das várias camadas que compõem o texto e a encenação de Newton Moreno.

Esta matéria procura transmitir todas as sensações positivas e todas as reflexões em torno da temática proposta por este fundamental espetáculo que provoca perfeito equilíbrio entre coração e mente do espectador.

São pouquíssimos lugares (pouco mais de 20) e a peça tem apenas mais sete apresentações até o fim da temporada em 05/12: domingo (28/11) e na próxima semana de terça (30/11) a domingo (05/12). PROGRAME-SE E CORRA para assistir ao mais importante e belo espetáculo de 2021. Ingressos gratuitos distribuídos uma hora antes da apresentação.

 

25/11/2021

 

 

domingo, 21 de novembro de 2021

NOSSOS OSSOS

 

 

O batalhador Kleber Montanheiro reformou a sede da sua Cia. da Revista e a reabre ao público com Nossos Ossos, primeiro espetáculo da trilogia Conexão São Paulo – Pernambuco por ele idealizada.

Nossos Ossos, adaptação do romance homônimo de Marcelino Freire realizada por Daniel Veiga, trata da saga do dramaturgo pernambucano Heleno - incensado, mas também tragado, pela cidade de São Paulo - que obsessivamente procura enterrar um garoto de programa com quem teve um relacionamento. A trilogia deve seguir com Trindade, adaptação teatral do filme homônimo e fecha com João que será escrita por Marcelo Marcus Fonseca, outro batalhador da cena teatral paulistana. As duas últimas deverão estrear em 2022 comemorando os 25 anos da companhia.

A bela sala de espera da Cia. da Revista foi toda renovada e a sala de espetáculos foi alterada para receber a proposta de Montanheiro para Nossos Ossos. Doze cabines com dois lugares cada recebem os espectadores para testemunharem o drama vivido por Heleno.

Vitor Vieira tem mais um grande momento em sua carreira com sua interpretação de Heleno. Seus dotes de ator me impressionam desde Mateus, 10 quando eu o vi pela primeira vez nos palcos em 2012. Toda a sua trajetória com o grupo Tablado de Arruar foi marcada por excelentes trabalhos. Brilhou como dançarino em Carmen (2017), onde compartilhava a cena com Natalia Gonsales e Flávio Tolezani. Atuou e até cantou no coro de Lazarus (2019). Em Nossos Ossos, Vitor interpreta com grande intensidade o dramaturgo que obsessivamente, tal qual uma Antígona, quer ver enterrado o michê por quem se apaixonou. E novidade: ele canta! E canta muito bem! Mais um degrau para esse excelente ator/dançarino e agora cantor. Sem esquecer seus dotes de fotógrafo, extra palco.

O elenco é completado por Aivan, Evas Carretero, Demian Pinto (também pianista), João Victor Silva e Cezar Rocafi: paulistas e pernambucanos fazendo jus ao título da trilogia. Destaque para a presença vigorosa da travesti Aivan, cantora pernambucana que faz seu primeiro trabalho como atriz e se sai muito bem.

Além da direção, Kleber Montanheiro assina a cenografia que procura fazer uma conexão da noite marginal paulistana com o sertão nordestino. Os figurinos do jovem Marcos Valadão acompanham o mesmo conceito e há de se destacar a bela solução dada para o corpo em decomposição do garoto de programa.

Mais um destaque dessa importante encenação: as sugestivas canções criadas pela pernambucana Isabela Moraes, que têm importante função no desenvolvimento da narrativa. A ficha técnica não especifica se as letras são também de sua autoria.

Nossos Ossos está em cartaz aos sábados (19h e 21h30) e domingos (19h) com lotações esgotadas até o final da temporada de 2021, mas a boa notícia é que a peça volta ao cartaz em janeiro de 2022 com a plateia expandida para os cem lugares habituais da Cia. da Revista.

 

21/11/2021

 

sábado, 20 de novembro de 2021

NEBLINA

 

Autor de mais de 20 textos teatrais, Sérgio Roveri pode ser considerado um dos dramaturgos mais importantes da cena brasileira contemporânea. Seus textos sempre surpreendem tanto na forma quanto no conteúdo, exigindo do leitor/espectador atenção muito especial para procurar captar todas as nuances contidas em suas complexas tramas que não oferecem desfechos tradicionais, oferecendo mais perguntas do que respostas sendo que a maioria dessas peças é formada por ágeis diálogos de apenas dois intérpretes.

Neblina não é exceção à regra. Dois acidentes estão presentes na narrativa: em um deles uma mulher bate numa pedra e seu carro fica avariado e ela busca socorro na casa de um homem solitário, no outro um casal sofre um acidente mais grave ficando preso nas ferragens do veículo.

O que esses acidentes e esses casais têm em comum? Muita neblina, um amanhecer que nunca chega e muitas perguntas!

Esse é o teatro de Sérgio Roveri!

Yara de Novaes capta admiravelmente esse clima misterioso com o auxílio do intrigante e muito belo cenário de André Cortez que é banhado pela sugestiva iluminação de Wagner Antônio e a poderosa trilha sonora de Dr. Morris.

A peça de Roveri é um excelente exercício para atriz e ator talentosos e a escolha não podia ter sido mais acertada: Fafá Rennó e Leonardo Fernandes desincumbem-se de maneira brilhante de Sofia, Diego, Júlia e Rafael; essas personagens circulam pelo misterioso cenário que pode sugerir vários ambientes, mas também um imenso vazio onde está presente uma imensa bola que pode ser ao mesmo tempo aliada e inimiga. Mais perguntas, não é?

Fafá e Leonardo têm em Eliatrice Gischewski uma poderosa aliada em suas interpretações. Ela fez a preparação corporal de ambos, fazendo-os literalmente rolar pelo palco numa coreografia que se assemelha a um vigoroso balé.

A neblina que envolve palco e plateia parece ser uma metáfora do ambiente sufocante que o Brasil tem vivido nos últimos anos e os sentimentos de luto e de perda presentes nos diálogos de Júlia e Rafael são, no meu modo de ver, uma prova disso.

Muitas perguntas, poucas respostas.

E não é essa a função social do teatro, ou seja, fazer o espectador refletir sobre nossa realidade e, a partir daí, procurar soluções como cidadão consciente?

Neblina é teatro responsável da melhor qualidade e precisa ser visto por quem ama o teatro e acredita nele como mola de transformação.

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de 12 de novembro a 12 de dezembro de 2021 e de 14 a 23 de janeiro de 2022, às sextas (18h30) e sábados e domingos (17h)

Fotos de Guto Muniz. 

20/11/2021

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

CARTAS DA PRISÃO

 

Permito-me repetir aqui a frase que abria a matéria que escrevi em 2019 sobre a peça Duosolo: “Nanna de Castro não é autora constante em nossos palcos, o que só se pode lamentar, pois suas incursões dramatúrgicas já resultaram em notáveis espetáculos como o infantil ‘Vô Doidim e os Velhos Batutas’ (1999), o exercício de metateatro ‘A Bala na Agulha’ (2013) e, principalmente, o excepcional ‘Novelo’ que Zé Henrique de Paula encenou em 2010”. Este Cartas da Prisão só vem confirmar o talento dramatúrgico da autora.  

Inspirando-se em cartas que mulheres escreveram para indivíduos presos por assassinato e/ou abuso e fazendo uso de parte dessas cartas Nanna produz poderoso libelo na forma de teatro documentário contra a violência sofrida pelo sexo feminino.

Quatro personagens estão presentes na trama idealizada pela dramaturga: M, Sueli, Lucia e a narradora Rita, todas elas interpretadas por Chica Portugal que é também a idealizadora do projeto. Com bastante versatilidade, Chica se transforma em cada uma das personagens sem usar quase nenhum recurso material como adereços pessoais, perucas ou chapéus. Os recursos usados pelo encenador para identificar as personagens foram, por um lado projetar na tela o nome daquela que estaria entrando em cena e por outro identificar cada uma das mulheres com objetos como uma caneta, um bombom, uma fita e um estojo de pintura, recurso este, no meu modo de ver, bastante gratuito e inútil.

Com muita delicadeza e enfatizando as características de teatro documentário presentes no texto, Bruno Kott dá o toque masculino nesta obra bastante feminina e feminista isentando o espaço cênico de qualquer coisa que poderia tirar o foco da vigorosa interpretação de Chica Portugal.

Pelo talento do trio - Chica, Nanna, Bruno - e, principalmente, pela importância do tema, Cartas da Prisão é um espetáculo que merece e precisa ser visto. 

17/11/2021 

Serviço – Nova temporada do espetáculo ‘Cartas da Prisão’

Datas: De 08 de novembro a 1º de dezembro (às segundas, terças e quartas).

Sessão extra: 25 de novembro (quinta-feira), em comemoração ao Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher.

Horário: 20h00.

Onde assistir:  Youtube/ProjetoAMeiaLuz

Legendado Em: Português, Inglês, Espanhol

Lives: O projeto contará também com lives no dia 11 e 18 novembro, trazendo especialistas sobre as temáticas do abuso. Mais informações no perfil @cartasdaprisao

domingo, 14 de novembro de 2021

PROTO HENRIQUE IV

 

Mais uma noite memorável para a minha coleção!

A sensação de caminhar pela Rua dos Ingleses, depois de um longo período, a caminho do Teatro Ruth Escobar já foi bastante estimulante. Quantas e quantas vezes eu fiz esse percurso nos áureos tempos daquele teatro, passando pelas lojas de antiguidades e pelas belas casas, incluindo aquela do saudoso Serginho Mamberti.

Esse teatro é um monumento para mim! Lá eu vi Bethânia, quase menina, em Opinião; Marília Pêra em Roda Viva; Feira Paulista de Opinião; Fernanda Montenegro em Dona Doida e grande parte das loucuras empreendedoras da guerreira que lhe dá o nome incluindo a loucura maior que foi a montagem de O Balcão em 1969.

Entrar naquele hall deu um aperto no meu coração. Ser recebido por um sorridente e simpático Claudio Fontana apertou ainda mais e reencontrar amigas queridas como a Tina Cavalcanti, a Tuna Dwek e a Lilian Blanc só não fizeram o coração transbordar porque eu reservei o transbordamento para o que viria a seguir.

Testemunhar um ator em pleno domínio do seu ofício é algo que faz as delícias de um espectador apaixonado. Quando esse ator é dirigido por um grande diretor que enriquece suas montagens com aqueles figurinos e cenários belíssimos que lhe são tão característicos o gozo é ainda maior.

Chico Carvalho, um ariano com pouco mais de 40 anos, é sem dúvida um dos melhores e mais versáteis atores de sua geração. Carreira teatral marcada por interpretações marcantes de personagens como Ricardo III, o memorável Ariel (o mais etéreo Ariel a que já assisti em meu longo percurso como amante de teatro) de A Tempestade e o Caveirinha e a grã-fina Maria Luísa em Boca de Ouro, as duas últimas dirigidas por Gabriel Villela.

Agora ele enfrenta com galhardia seu primeiro monólogo interpretando duas personagens: aquele que em sua loucura se diz Henrique IV e sua mulher Dona Matilde. As outras personagens são apenas citadas nesta feliz adaptação condensada realizada por Claudio Fontana.

Mais que um contrarregra, Breno Manfredini participa ativamente da ação, cantando, interpretando um delicioso títere e interagindo com o protagonista.

Tudo é esplendor nesta montagem de Gabriel Villela: cenário, adereços de cena (Jair Soares Jr.), belíssimos figurinos, maquiagem (Claudinei Hidalgo), participação de Breno Manfredini e a estonteante interpretação de Chico Carvalho, precisa na voz poderosa e nos pequenos e nos grandes gestos (poucos atores sabem usar as mãos como ele).

A peça está sendo apresentada virtualmente, mas também pode ser apreciada presencialmente até domingo, dia 14, pelos privilegiados espectadores que se dirigirem à Sala Dina Sfat do icônico Teatro Ruth Escobar, que volta a acender seus holofotes dignamente para iluminar essa obra de arte que é Proto Henrique IV.

Gabriel Villela promete a montagem da peça completa para 2022. 

Fotos de João Caldas

14/11/2021

Temporada virtual até 05 de dezembro de sexta a domingo às 20h com ingressos gratuitos disponíveis na plataforma Sympla.

Link: https://www.sympla.com.br/produtor/protohenriqueiv

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

LA NOCHE QUE JAMÁS EXISTIÓ

 

Encontros imaginados (ou imaginários?) entre personalidades reais sempre rendem bons textos teatrais e La Noche Que Jamás Existió não foge à regra. Neste caso trata-se do encontro da rainha Elisabeth I da Inglaterra com o dramaturgo William Shakespeare.

Elisabeth I (1533-1603) reinou de 1558 até a sua morte, famosa por sua castidade ficou conhecida pela alcunha de “Rainha Virgem”; em seu reinado houve significativo desenvolvimento do drama inglês liderado por dramaturgos como Shakespeare (1564-1616) e Christopher Marlowe (1564-1593).

Levando em conta a questão da castidade da rainha, é muito interessante o enfoque dado pelo dramaturgo mexicano Humberto Robles que coloca Elisabeth recebendo Shakespeare nos aposentos reais à noite para que ele discorra sobre o amor com toda a liberdade, com a única condição que eles não se toquem.

O bardo aceita o desafio e através de um jogo de cartas manipulado por ela, eles interpretam o jogo amoroso em quatro situações: ele homem, ela mulher/ele mulher e ela homem/ ambos mulheres/ambos homens. Nesses jogos há cada vez mais uma aproximação física entre eles que acaba resultando, por iniciativa dela, em um ato amoroso. Shakespeare se desculpa, mas a rainha diz que a responsabilidade é dela e que tudo está bem desde que ambos saibam que aquela noche jamás existió!

Essa engenhosa narrativa é entremeada com trechos de peças e de poemas de Shakespeare e Alexandre Brasil a dirigiu de forma bastante delicada e também engenhosa dando o maior enfoque no trabalho do elenco: Cacau Merz interpreta com muita categoria uma rainha descontraída e irreverente, responsável pelos bem-vindos momentos de humor da peça (cabe notar que seria interessante que a atriz evitasse um repetido som que ela emite ao final de cada frase); Conrado Caputo tem o physique du rôle para o papel de Shakespeare e o faz com muita delicadeza e poesia.

A ambientação cênica de Felipe Apolo, os figurinos de Alexandre Brasil e a música original de Dan Maia complementam de forma exemplar este belo espetáculo que merece ser visto virtualmente neste momento (só até sábado, dia 13/11)  e no futuro em um palco da cidade com a presença dos espectadores.

Apenas uma questão: Por que manter o título da peça em espanhol?

Fotos: Natan Carrara e Alison Falconeres 

12/11/2021 

Serviço
La Noche Que Jamás Existió

Local: Teatro Sérgio Cardoso - (Rua Rui Barbosa, 153 - Bela Vista)

Dia: 5 de novembro a 13 de novembro. Segunda a sábado, 21h. No domingo, também haverá sessão às 18h.

Ingressos: Entrada gratuita

https://site.bileto.sympla.com.br/teatrosergiocardoso/
Duração: 45 min
Classificação indicativa:  14 anos

 

Parte deste projeto foi realizada com recursos da Lei Emergencial Aldir Blanc para a Cidade de São Paulo.

 

 

 

 

domingo, 7 de novembro de 2021

ESTILHAÇOS DE JANELA FERVEM NO CÉU DA MINHA BOCA

 

A ousadia da A Digna Companhia parece não ter limites!

 Em 2014 quando da encenação de Condomínio Nova Era, dirigida por Rogério Tarifa, o espaço cênico da Sala Beta do Sesc Consolação já se mostrava pequeno para abrigar as várias cenas que clamavam por maiores áreas.

Entre Vãos de 2016, dirigida por Luís Fernando Marques exigiu a locação de três espaços não teatrais e a montagem compreendeu viagem de metrô, uma moto para conduzir uma das personagens e um encontro final na Estação Sé do metrô.

Agora chegou a vez de Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca, dirigida por Eliana Monteiro, que necessita de doze motoristas de aplicativos, cinco ciclistas entregadores, elenco, pessoal da produção e uma complexa logística para harmonizar o transporte dos espectadores, a chegada sincronizada ao local de encontro e o tour pelo assustador e artificial (alguém pode achar paradisíaco!) Parque Jardim Perdizes que concentra prédios de alto luxo guarnecidos devidamente com varandas gourmet com vista para o parque. Obviamente o entorno abriga indesejados moradores de rua e pedintes.

Completa-se assim a trilogia do despejo concebida pelo dramaturgo Victor Nóvoa. Nota-se que a escolha dos três diretores recaiu em profissionais que preferem conceber seus espetáculos em espaços não convencionais.

Seguindo essa tendência, a próxima montagem de A Digna compreenderá uma viagem em uma nave pelo espaço sideral, sem deixar de lado a crítica e a denúncia sobre possíveis desigualdades sociais existentes em ares extraterrestes. 

Estilhaços acontece em seis etapas distintas:

1.   O espectador recebe em sua casa mensagens sobre a montagem.

2.   Viagem da casa do espectador até o local de encontro. Nessa viagem o diálogo entre o motorista e o espectador já faz parte do espetáculo. Notícias são veiculadas por uma estação de rádio.

3.   Chegada ao local de encontro. Tour pelo Jardim Perdizes.

4.   Chegada ao local onde supostamente haverá a festa de lançamento de um luxuoso empreendimento imobiliário. Apresentação de uma cena que tem a ver com cenas recebidas na etapa 1.

5.   Ida ao local onde jaz um entregador que foi atropelado e morto, com discurso inflamado de um de seus companheiros.

6.   Viagem de volta até a casa do espectador.

Fica difícil descrever as sensações e reflexões que este trabalho provoca: a desigualdade social, a ganância do setor imobiliário bastante alimentada pela arrogante classe média abastada que sonha com uma varanda gourmet, a exclusão das classes menos favorecidas das, ditas democráticas, áreas urbanas empurrando-as para uma periferia que com o passar do tempo será um novo Jardim Perdizes. O Tatuapé está aí para comprovar isso. Alguns chamam isso de progresso.

Na etapa 4 são apresentadas duas cenas gravadas. A mim coube assistir uma cena entre uma mãe (Maria Joseita) e uma filha (Maria Aparecida) onde se mostra o pensamento burguês e mesquinho de uma e o trauma da outra com as atividades do pai durante o regime militar. Eliana Bolanho e Ana Vitória Bella dão um show de interpretação como mãe e filha. A outra cena é interpretada por Helena Cardoso e Paulo Arcuri.



Um agradecimento muito especial à Luala: gentil, simpática e bonita motorista que me conduziu na ida e na volta. 

Apresentada para apenas 24 espectadores, a peça tem tido sessões concorridas e lotadas e fica em cartaz até 28 de novembro, apenas aos sábados, domingos e feriados, portanto CORRA para adquirir o seu ingresso.

Ingressos: R$20 e R$10 (meia-entrada)

Reserva e compra: https://adigna.com 

07/11/2021

sábado, 6 de novembro de 2021

ONDE VIVEM OS BÁRBAROS

 

Um livro pode ser BÁRBARO, de tão bom!

Um ser humano pode ser BÁRBARO, de tão bonito; mas também pode ser BÁRBARO, de tão selvagem!

BARBARIDADE! Pode ser uma exclamação de boa surpresa perante um acontecimento formidável, mas também pode ser uma exclamação de terror diante de um fato desesperador, ou mesmo de espanto, ao saber que alguém come Chokitos enquanto observa passivamente uma mulher ser estuprada e morta.

A instigante peça do jovem dramaturgo chileno Pablo Manzi trata de bárbaros selvagens e primitivos, unindo de forma bastante criativa monólogos que podem se passar na Grécia antiga com os ágeis diálogos travados nas cenas capitais da peça, quando os primos (bárbaros?) se encontram e entram em conflito ao saber que um deles presenciou a tortura e assassinato de uma garota com tendências neonazistas. Um deles, aquele que comeu Chokitos, justifica sua passividade ao dizer que a mulher era uma prostituta e agora condena atitude semelhante do primo que, de maneira indireta, se desculpa pelo fato da menina ser neonazista. 

Ah! O ser humano! A civilização e a barbárie convivem dentro de cada um de nós e basta uma ameaça externa para que a violência se manifeste. A ameaça à sobrevivência física ou moral desperta nos animais racionais atitudes tão selvagens e bárbaras como aquelas que vemos nos irracionais.

A chave da peça está na última cena, na resposta que Elias dá a uma pergunta de Eugênia. É obvio que não vou citá-la aqui para não ser taxado de spoiler.

O elenco da peça é composto por quatro atores e uma atriz todos com excelente rendimento. Ton Ribeiro é Roberto, o primo anfitrião e os visitantes são Ignácio (Ernani Sanchez), Nicolas (Abel Xavier), Elias (Wallyson Mota) e Eugênia (Carol Vidotti, que se esforça para ficar feia em cena, mas jamais vai conseguir!!)

Wallyson Mota realiza direção discreta e eficiente, concentrando toda a atenção no trabalho do elenco. Louve-se também a direção de fotografia de Raphael B. Gomes.

Em seus oito anos de vida, o Coletivo Labirinto é bastante coerente com seu objetivo de “pesquisar o olhar para as relações do sujeito com o seu panorama social através da dramaturgia latino-americana contemporânea”. Seu primeiro espetáculo em 2014 foi Sem Título do argentino Ariel Falace, seguido em 2019 de Argumento Contra a Existência de Vida Inteligente no Cone Sul do uruguaio Santiago Sanguinetti.

Falace, Sanguinetti e Manzi. Todos contemporâneos. Todos rapazes latino-americanos. 

SERVIÇO: 

Temporada de 04 de novembro a 05 de dezembro de 2021

Gratuito.

Transmissão pelos canais do YouTube dos teatros distritais.

Informações em: www.coletivolabirinto.com.br

@coletivo.labirinto

06/11/2021

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

WEAPON IS A PART OF MY BODY

O que mais chama a atenção no espetáculo criado pela israelense Ruthie Osterman e o brasileiro Pedro Granato é o perfeito equilíbrio entre o público e o privado de cada um deles.

Apresentando-se em telhados das cidades onde vivem, Ruthie (em Liverpool) e Pedro (em São Paulo) desfilam seus problemas e apreensões perante a realidade que os circunda.

Ele dividido entre suas atividades teatrais, seus afazeres domésticos - como cuidar da filha Rosa recém nascida e dar atenção à sua companheira Roberta (cito os nomes para comprovar o grau de intimidade com que o ator faz seu relato) - e as atividades político-culturais surgidas pouco antes do nascimento da filha.

Ruthie por sua vez relata as dificuldades com o parto de um de seus filhos e as lembranças de suas atividades de juventude em Israel, quando pertenceu ao exército israelense.

De maneira bastante harmoniosa os relatos vão se cruzando demonstrando que mesmo estando separados por terras, mares e oceanos, Ruthie e Pedro compartilham dúvidas e ansiedades bastante parecidas. No momento em que dialogam virtualmente há salutar confronto de ideias e questionamento que cada um faz diante do modo de pensar e de agir do outro.

É natural que, sendo artistas das artes cênicas, haja certo tom teatral em seus desempenhos, amenizado, porém, pela espontaneidade com que ambos interpretam a si mesmos.

Usando seus corpos como arma para se defenderem dos reveses que a vida traz (Pedro foi alvo de ofensas e ameaças por conta de suas atividades no poder público e Ruthie ainda traz na memória a violência que presenciou em sua juventude durante a Guerra do Golfo), a dupla dá lições de cidadania em seus depoimentos.

Ambos relatos são falados em inglês. Os sérios problemas de legendagem ocorridos na primeira apresentação (24/10), foram totalmente sanados na segunda (31/10).

Com apenas quatro apresentações (duas já acontecidas), ainda há chance de assistir a esse importante trabalho nos domingos 07 e 14 de novembro às 11h da manhã no YouTube da Contorno Produções. 

05/11/2021